25 Janeiro 2017
"Para além da frieza das leis, contra as quais se contratam torturadores que as maltratam até que percam seu significado original, há ainda a dor de quem faz as contas para saber quanto vai perder. Por tudo isso, é desrespeitosa e indecente a proposta da Precious Woods de vender aos agricultores as terras que já ocupam", escreve Maiká Schwade, geógrafo, mestre em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia e doutorando em Geografia Humana da USP, em artigo publicado por Casa da Cultura do Urubuí, 16-01-2017.
Eis o artigo.
Perdida entre folhas sujas, a empresa Precious Woods, popularmente conhecida como Mil Madeireiras, tenta se esquivar da responsabilidade de ter comprado terras griladas e evita falar em conflito com as 6 comunidades rurais da BR-174. Após publicarmos um texto, em dezembro de 2016, a empresa publicou sua resposta, mas apenas reforçou nossa tese. Neste novo artigo, demonstro item por item a fragilidade dos 5 argumentos da empresa.
1º) “todos os títulos expedidos respeitaram rigorosamente o limite constitucional para concessão de áreas, e nem a constituição e nem a lei dispunham que era vedada a concessão de mais de um título para integrante da mesma família;”
A intenção de fraudar com o uso de familiares e outros laranjas configura não apenas corrupção, mas também organização criminosa. A fraude ficou bem evidente com a aglutinação que sucedeu a titulação. Mesmo atingindo o teto constitucional de três mil hectares, os lotes se somaram até atingir inigualáveis propriedades. Todos os lotes foram administrados da mesma forma, ou seja, nenhum recebeu qualquer benfeitoria, nem mesmo logradouros que permitissem seu acesso.
2º) “eventual ausência de demarcação dos limites é mera irregularidade passível de correção por meio do georreferenciamento geodésico;”
Aqui concordamos em algo: ocorreram irregularidades! Fraudes estão sempre rodeadas de irregularidades. Continuamos desafiando a empresa e seus melhores topógrafos a encontrarem o terreno conforme descrito na caderneta de campo que foi falsificada e que deu origem aos títulos da grilagem.
3º) “o decreto-lei de federalização de áreas estaduais foi editado após a emissão dos títulos pelo Estado do Amazonas, motivo pelo qual não se aplica a eles (o decreto-lei se aplicava apenas às terras devolutas);”
Nosso artigo não citou o decreto de federalização. Citamos apenas o decreto estadual Nº 1.127, de 22 de abril de 1968, proibindo a utilização das terras ao longo da BR-174 e 319. O decreto estadual é três anos mais antigo a da Precious Woods cometer tal equívoco.
Por outro lado, após o decreto de federalização ser citado pela Precious Woods, tivemos o cuidado de verificar novamente a data de expedição dos títulos da grilagem. O Decreto-Lei Nº 1.164, que federalizou as terras nas margens das rodovias federais é de 1º de Abril de 1971. Mas, segundo os dados fornecidos pelo extinto Instituto de Terras do Amazonas, os lotes 63, 64, 69, 70, 99 e 100 foram emitidos pelo governo do estado em favor de M. da Costa Lima, J. A. da Costa Lima, A. J. da Costa Lima, que o decreto que federalizou as terras devolutas ao longo das rodovias federais. Muito nos espanta a assessoria jurídica L. C. da Costa Lima, R. da Costa Lima e E. R. do V. da Costa Lima, respectivamente, datam de 25 e 26 de maio daquele mesmo ano, após a federalização das terras. Isso corresponde a 18 mil hectares de terras federais tituladas ilegalmente pelo governador do Estado do Amazonas. Portanto, são terra federais griladas, cujos títulos de propriedade foram utilizados exclusivamente como objeto de especulação.
4º) “os títulos de propriedade foram expedidos em caráter irrevogável e irretratável;”
Nenhum contrato está acima das leis em vigor. O não cumprimento das condicionantes estabelecidas pela Lei de Terras do Amazonas (Lei 89, de 31 de dezembro de 1959) também tornam o contrato nulo. A condição número “um” estabelecida pela Lei é ocupar a terra e torná-la produtiva. Isso porque, o objetivo dessa lei era garantir função social a terra, evitando seu uso especulativo. Sem esse princípio, que perpassa todos os capítulos da lei, ela não teria qualquer sentido de existência. Se a Precious Woods e seus antecessores não deram qualquer função social a terra, não ocuparam, não a tornaram produtiva, como farão para cumprir as condicionantes se a terra está ocupada por agricultores? Essa questão tem somente um caminho legalmente possível: anulação dos títulos grilados.
5º) “eventual pretensão de invalidação dos atos administrativos praticados já estaria prescrita, eis que passados mais de 40 (quarenta) anos da emissão dos títulos.”
Aqui caberiam vários comentários, mas uma frase basta: crimes contra o patrimônio público não prescrevem.
É verdade que a Precious Woods não deu origem a grilagem, mas se tornou a atual beneficiária de um processo corrupto e conflituoso de grilagem. Pior que isso, comprou terra já ocupada por posseiros, dando origem a um conflito sem precedentes na história do Amazonas. Dos 66 mil hectares adquiridos pela empresa, 45 mil estão ocupados por pequenos agricultores. A empresa comprou as terras para especular?
Para além da frieza das leis, contra as quais se contratam torturadores que as maltratam até que percam seu significado original, há ainda a dor de quem faz as contas para saber quanto vai perder. Por tudo isso, é desrespeitosa e indecente a proposta da Precious Woods de vender aos agricultores as terras que já ocupam. Conhecemos dezenas dos posseiros, muitos dos quais são jovens agricultores que cresceram e até nasceram ali, e não há argumentos decentes que permitam sustentar a proposta da Precious Woods. Também não será fácil a tarefa de dar alguma legitimidade jurídica a empresa nesse conflito, pois “suas leis” ainda não existem, será preciso muito mais que advogados, será preciso contorcionistas, lobistas, talvez.
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A Mil tenta amenizar, mas é grilagem! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU