24 Janeiro 2017
Duas histórias esta semana, uma na Itália e a outra nos EUA, mostram oportunidades perdidas para uma verdadeira reforma contra os casos de abuso sexual clerical, e que o preconceito ideológico e a ignorância da complexidade da realidade podem ser mais prejudiciais à reforma e ao bem-estar infantil do que as figuras de espantalho que alguns escritores e organizações gostam tanto de atacar.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 21-01-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Duas histórias irromperam esta semana no tocante aos escândalos de abuso sexual cometido pelo clero na Igreja Católica, uma na Itália e a outra nos Estados Unidos e, de diferentes maneiras, expressam uma oportunidade perdida.
Na Itália, um livro foi lançado sob o título “Lussuria: Peccati, Scandali e Tradimenti di una Chiesa Fatta di Uomini” (Luxúria: pecados, escândalos e traições de uma Igreja feita de homens, em tradução livre), escrito pelo jornalista Emiliano Fittipaldi, um dos cinco réus no julgamento do ano passado conhecido por “Vatileaks 2.0” relativo aos documentos vazados de uma comissão papal sobre finanças.
Nos Estados Unidos, uma ex-funcionária da Rede de Sobreviventes de Pessoas Abusadas por Padres – SNAP (na sigla em inglês) processou o grupo acusando-o de ser, na verdade, uma entidade comercial financiada por propinas de advogados que processam a Igreja.
E aqui eu explico por que cada história sugere que se perderam oportunidades de realizar uma reforma verdadeira na Igreja.
O livro de Fittipaldi, por ele escrever sobre as finanças católicas, as pessoas esperavam que fosse expor mais falcatruas relacionadas ao dinheiro. Em vez disso, ele se voltou aos escândalos de abuso sexual.
Fittipaldi remonta às múltiplas audiências do Cardeal George Pell diante da Comissão Real Australiana. Cobre o escândalo no Chile envolvendo Fernando Karadima, o padre pedófilo mais conhecido no país, e a nomeação do Papa Francisco de um bispo conhecido como defensor de Karadima. O autor relata a história de Lawrence Murphy, padre americano que teria molestado cerca de 200 meninos em uma escola para surdos até meados da década de 1970.
Todas estas histórias foram extensivamente exploradas no passado, e Fittipaldi não acrescenta muita coisa ao que já se sabe.
Em certo nível, o livro deve causar um desalento por causa do tratamento equivocado dado aos fatos. Ele descreve o Cardeal Timothy Dolan como o “presidente” dos bispos americanos, posto que ele não tem liderado desde 2013. Chama Pell de “o braço direito do papa”, algo que qualquer analista do Vaticano atualmente sabe ser um exagero.
(Para constar, ele também me descreve como o “decano dos escritores americanos”, outra proposição discutível.)
Mais basicamente, o problema é que Fittipaldi caricatura a situação real da Igreja.
Qualquer pessoa honesta haverá de concordar que o catolicismo fez um enorme progresso ao longo da última década e meia.
Por exemplo, recursos enormes foram investidos no desenvolvimento de ações preventivas de abuso bem como em programas de detecção de abusos, a ponto de muitas outras instituições estarem hoje se esforçando para chegarem ao mesmo nível.
Dezenas de abusadores foram expulsos do sacerdócio, incluindo mais de 400 só no último ano do papado de Bento XVI.
Dioceses em muitas partes do mundo têm adotado políticas severas de “tolerância zero”, suspendendo qualquer padre que esteja sendo acusado de abuso e levando o caso às autoridades civis para investigação.
Lendo a obra de Fittipaldi, no entanto, jamais saberíamos que estas coisas estão acontecendo.
Ou seja, Fittipaldi afirma que a nova Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, criada pelo Papa Francisco, é uma farsa, escrevendo que até agora realizou “pouco ou nada”.
Sheila Hollins, membro inglesa da citada comissão, respondeu em carta ao jornal The Guardian: “Os membros tiveram mais de 50 atividades educativas em cinco continentes durante os últimos 12 meses (...) A intensidade do trabalho educacional e normativo mundial é bem diferente daquilo que Fittipaldi sugere”.
Poderíamos continuar com os exemplos, mas o que queríamos mostrar é que Fittipaldi conta só a metade da história.
No processo envolvendo a SNAP, a ex-funcionária Gretchen Hammond descreve uma organização fundada com propósitos nobres, mas que se perdeu no caminho em sua busca quase fanática por dinheiro.
“A SNAP não foca na proteção ou ajuda dos sobreviventes – ela os explora”, diz no processo judicial, aberto em 17 de janeiro no Tribunal do Condado de Cook, em Illinois.
“A SNAP diariamente aceita propina de advogados na forma de ‘doações’. Em troca, a organização remete a eles sobreviventes como clientes potenciais, que então abrem processos judiciais em nome dos sobreviventes contra a Igreja Católica”.
Segundo Hammond, assim que ela começou a levantar essa inquietação passou a represálias no local de trabalho, o que a trouxe sérios problemas de saúde, até ser eventualmente demitida.
SNAP disse que as acusações “não são verdadeiras” e diz que elas serão confrontadas no tribunal.
Enquanto isso, um outro problema de longa dada com a SNAP e outras organizações semelhantes não requer um procedimento jurídico: o fato de que elas muitas vezes são incapazes de saber quem é do bem e quem é do mau. O exemplo mais óbvio: se o Cardeal Sean O’Malley, de Boston, é o típico bispo-problema (como a SNAP repetidamente diz ser), então há algo de errado.
Certamente há grandes desafios na Igreja que precisam de reformas.
A nova comissão papal anti-abuso tem se esforçado para receber o apoio de que precisa, desde a aprovação de seus novos membros à autorização para demitir funcionários e acertar salários. Apesar do anúncio de uma nova seção judiciosa com a Congregação para a Doutrina da Fé para processar bispos que acobertem acusações de abuso, até agora ela só existe no papel.
Há conferências episcopais nos países em desenvolvimento que não adotaram as diretrizes anti-abuso, quem dirá implementá-las, e existem exemplos onde os padres acusados de abuso podem – impunes – trocar de jurisdição, em geral padres internacionais que trabalham no exterior e que voltam para o país de origem. Ainda hoje, há situações em que os bispos não agem de forma adequada quando as acusações surgem, por vezes não aplicando as políticas que eles mesmos aprovaram.
Além disso, a vigilância eterna é o preço do progresso: apesar do fato de que a Igreja fez um progresso histórico, sempre há o risco de letargia e revés caso alguém não seja pressionado a fazer o que lhe é devido.
A verdade, todavia, é que existem inúmeras pessoas na Igreja que entendem tudo isso, e que estão se esforçando a fazer a coisa certa. Uma reforma verdadeira significa identificar estas pessoas e apoiá-las, não demonizando “a Igreja” como o grande problema.
Um exemplo: na sexta-feira, uma comissão na Irlanda do Norte divulgou um relatório sobre pedofilia, elencando falhas significativas tanto por parte da polícia como da Igreja Católica. Dom Eamon Martin, de Armagh, primaz da Igreja irlandesa, aceitou os achados e disse: “Nós, na Igreja, devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para submeter-nos às demandas da justiça, e demonstrar que estamos falando sério quanto a fazermos reparações pelos pecados e crimes do passado”.
Defensores maduros das vítimas iriam querer trabalhar com Martin na aplicação deste objetivo, não ignorando-o a priori.
Ou seja, o preconceito ideológico e, ao mesmo tempo, a ignorância da complexidade da realidade podem ser mais prejudiciais à reforma – e, nesse caso, ao bem-estar infantil – do que as figuras de espantalho que alguns escritores e organizações gostam tanto de atacar.
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Duas oportunidades perdidas de uma reforma verdadeira contra abusos sexuais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU