15 Dezembro 2016
"Se os silogismos nos satisfazem, a experiência não nos encanta assim como encanta a Francisco. Se acharmos que a conversa madura que começou no Vaticano II e continuou com Papa Paulo VI corre o risco de formular perguntas difíceis e exige que nos abramos intelectualmente, então veremos o esforço do Papa Francisco em reavivar essa conversa madura com suspeita ou pavor".
O comentário é de Michael Sean Winters, colunista do National Catholic Reporter e pesquisador visitante do Instituto para Pesquisa em Políticas Públicas e Estudos Católicos da Universidade Católica da América, em Washington, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 14-12-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Nota: Esta é a parte 3 de uma série de três artigos que discutem as teologias dos papados do Papa Francisco e do Papa Paulo VI. As partes 1 e 2 intitulam-se respectivamente: “Críticas a Francisco têm origem em incompreensão do Vaticano II” e “A grandeza de Paulo VI está na sua condução da Igreja pós-Vaticano II”.
Eis o artigo.
Os italianos têm um ditado: “Depois de um papa gordo, um papa magro”. Homens diferentes trazem qualidades pessoais diferentes à tarefa, e a percepção deles para com os problemas que enfrentam e a compreensão que têm do próprio ministério petrino haverão de ser moldadas pelas experiências de vida que tiveram. Não deve surpreender que existam diferenças de um papa para outro. Assim como é raro o povo americano eleger um candidato presidencial do mesmo partido mais de duas vezes seguidas, os cardeais tendem a movimentar o pêndulo a cada 30 anos aproximadamente, entre papas que estão determinados a fazer avançar reformas e papas que pensam ser a hora de consolidar os ganhos e esclarecer algum desenvolvimento equivocado.
Importa observar que as tensões em torno do pontificado do Papa Francisco são muitas vezes o resultado da fidelidade à inteireza do ensino conciliar. Tomemos, por exemplo, o tema que se tornou o mais polêmico durante os sínodos sobre a família (outubro de 2014 e outubro de 2015): a relação de consciência e lei moral para determinar se os fiéis divorciados e recasados podem discernir um caminho para os sacramentos.
De acordo com o historiador Massimo Faggioli, da Villanova University, “as tensões entre a soberania da consciência dos fiéis (a partir do documento conciliar Gaudium et Spes, nº 16) e da religiosum obsequium (submissão religiosa ao magistério autêntico da Igreja no documento conciliar Lumen Gentium, nº 25) já fazem parte do ensinamento do Vaticano II: nesse sentido, o Vaticano II deixa claro e não resolve os paradoxos dentro da experiência católica”.
“Existem tensões que não podem ser resolvidas pelo magistério ou pelo direito canônico”, continua Faggioli. “O cristianismo em geral e o catolicismo em particular nos ensinam a viver com essas tensões sem (se possível) fazer desses paradoxos um padrão de hipocrisia”.
Faggioli acredita que Francisco está restaurando o equilíbrio entre consciência e a submissão religiosa. Também acha que uma das maiores diferenças entre os papas desde o Vaticano II (1962-1965) é a forma como lidaram com as conferências episcopais.
“Conferências episcopais são a inovação institucional singular mais importante do Concílio Vaticano II”, ele disse ao National Catholic Reporter. “Elas tiveram uma década de expansão imediatamente após o Concílio Vaticano II sob o comando de Paulo VI; [este período] é a lua de mel entre o papado e as conferências episcopais. Essa lua de mel termina com João Paulo II e Bento XVI, quando há uma redução programática da influência delas. Porém o efeito descentralizador da criação das conferências episcopais não pode ser revertido”.
Faggioli afirma que Francisco reconheceu os limites de se tentar colocar esse gênio de volta à garrafa.
“A Igreja Católica hoje é globalmente grande e diversa demais para abrir mão desta nova ferramenta de governo. Em grande parte, o magistério do Papa Francisco baseia-se no magistério anterior das conferências episcopais (nacionais e continentais) e, de certa forma, este é o jeito de o Papa Francisco encorajá-las a desenvolver e reclamar o seu próprio papel na Igreja. Algo assim não está acontecendo ainda: as conferências dos bispos hoje estão presas na mudança paradigmática entre a era Wojtyla-Ratzinger [papas João Paulo II e Bento XVI] e o futuro. Mas esse é um problema muito mais para as igrejas europeias e norte-americanas do que para o restante da Igreja Católica”.
O Pe. Lou Cameli, o delegado do arcebispo de Chicago para a formação e a missão, reconhece as diferenças de visão e estilo entre os papas dos últimos 50 anos, mas vê pontos de continuidade subjacentes e fundamentais na era pós-conciliar. Quando solicitado a identificar estes pontos, destacou seis:
• O cristocentrismo: uma recuperação da centralidade de Cristo na Igreja (evidente na evangelização, na liturgia e na formação espiritual pessoal).
• A comunhão: a Igreja é um conjunto de relações entrelaçadas e dinâmicas entre as pessoas e com o Deus Trino (em contraste com um modelo essencialmente organizacional, institucional e estrutural da Igreja).
• O diálogo: a Igreja é o lugar onde os crentes falam e ouvem uns aos outros, e é a comunidade de fé que escuta e fala com o mundo. (É ecclesia discens et docens e, portanto, é uma comunidade dinâmica em vez de um “recipiente de verdade” estático).
• O engajamento com o mundo: a Igreja sente uma responsabilidade pelo mundo não simplesmente como uma outra presença institucional, mas como um movimento de sal, luz e fermento para a transformação do mundo.
• O desprendimento a Igreja: dois mil anos de história é uma bênção mista que, ao longo do caminho, resultou elementos que sobrecarregam a missão, e portanto existe a tarefa de purificação e de focar no que é necessário para tornar a missão mais ágil e eficaz.
• A proeminência concedida a experiências mais imediatas de fé e de Igreja: cada renovação em 2 mil anos (por exemplo, os santos Bento, Francisco, Inácio) promoveu uma recuperação das experiências imediatas de fé e de discipulado na Igreja.
Cameli encaminha-se para descobrir importante. Tomemos o Papa João Paulo II. O texto conciliar que ele citou mais do que qualquer outro em seus próprios escritos magistrais foi Gaudium et Spes, nº 22, que coloca Cristo no centro da antropologia cristã.
Como observei no primeiro artigo dessa série, João Paulo foi profundamente influenciado pela teologia da comunhão. O que ele achava sobre o valor do diálogo era mais forte fora da Igreja do que dentro dela, mas esteve plenamente familiarizado com as principais tendências intelectuais e políticas de seu tempo. Ele se envolveu com o mundo, visitando muitos países que nós outros ignoramos. Recusou-se a ser coroado com uma tiara e declinou muitos dos apetrechos da corte papal.
E, de formas variadas, ele destacou as “experiências imediatas de fé”, segundo Cameli, sem falar no apoio dado aos novos grupos eclesiais que cresceram a bom termo desde o Concílio, como o Comunhão e Libertação e o Movimento dos Focolares, ambos os quais concentram-se em inculcar uma espiritualidade leiga que traz a fé para a vida cotidiana.
Não é difícil ver como o Papa Bento XVI encarnou essas seis pedras de toque da vida pós-conciliar.
“Bento XVI adotou os mesmos temas do cristocentrismo, da comunhão, do diálogo, do engajamento mundano, do desprendimento da vida da Igreja e da recuperação de experiências mais imediatas de fé e de Igreja”, diz Cameli. “Entretanto, ele fez isso principalmente na qualidade de teólogo. Nisso, talvez a sua maior contribuição foi associar todos esses temas de renovação à Palavra de Deus contida nas Escrituras. Por causa de sua erudição e representação oficial da tradição, deu peso a esses elementos de renovação”.
Para Francisco, com sua longa experiência como pastor, Cameli acredita que “os elementos de renovação delineados acima assumem ramificações práticas e um envolvimento no mundo real (...) a menos que possam assumir a forma real em um mundo real, eles são de importância insignificante. Na verdade, grande parte de seu magistério (por exemplo, Amoris Laetitia, ou ‘A Alegria do Evangelho’, exortação apostólica do Papa Francisco emitida após os dois sínodos de bispo sobre a família) é direcionada nesse sentido, o caminho da vida real em um mundo real”.
“Depois de um papa gordo, um papa magro”. Algunas que fazem oposição a Francisco estão entre os que esquecem que um pêndulo pode somente permanecer verdadeiro se balançar para a frente e para trás. Ele não continua oscilando em uma direção somente. (Se assim for, então é um sinal de que o pêndulo estragou.) A tensão entre um papa que expande os limites e aquele que os reforça faz parte das dificuldades de alguns que se opõem a Francisco.
Mas existe algo diferente acontecendo também. Aqui, a discussão sobre a continuidade versus descontinuidade é diferente da forma como Bento usou esses dois polos em seu famoso discurso de 2005 à Cúria. Segundo Faggioli, este discurso foi “muito mais matizado do que uma pura oposição ‘continuidade versus descontinuidade’: tratava-se da continuidade e reforma versus descontinuidade e ruptura’. Bento XVI não disse que na Igreja nada muda. Disse que a mudança acontece de um certo modo, em continuidade e não em ruptura”.
Faggioli afirma que este discurso foi, não obstante, problemático porque entrou num debate teológico de um jeito que os papas geralmente não fazem. “O debate do Papa Bento XVI era um debate hermenêutico altamente sofisticado apresentado para toda a Igreja e foi mal utilizado por ideólogos”.
Este comentário de Faggioli aponta para a fonte da oposição mais feroz a Francisco: os ideólogos, e não simplesmente qualquer ideólogo, mas aqueles cujos problemas reais não são com Francisco, mas com o Vaticano II. No livro “What Happened at Vaticano II”, em que conta a história do Concílio, o padre jesuíta John O’Malley escreve sobre a minoria no Concílio, que eram, em geral, proponentes de um tipo particular de “teologia romana”, descrita pelo autor como “fortemente condicionada pelo direito canônico, indiferente aos problemas levantados pelos métodos históricos e muitas vezes hermeneuticamente ingênuo. [Os bispos em minoria] haviam sido formados para desdenhar as abordagens modernas em teologia como novidades passageiras ou, ainda influenciados pelos documentos Pascendi e Lamentabili [respectivamente uma encíclica e um decreto emitidos pelo Papa Pio X que condenavam o ‘modernismo’], para atacá-los como perigosamente subversivos”.
Não é por acaso que muitos, embora certamente não todos, daqueles que tem uma afinidade com a missa tradicional em latim ou com o culto ad orientem alinham-se à oposição a Francisco.
O’Malley passa a observar estes bispos minoritários no Vaticano II: “A eles a maioria pediu muitas coisas. Ao tentar convencê-los a seguir essa ou aquela posição, a maioria essencialmente lhes pedia que adotassem uma nova mentalidade e um novo sistema de valores e que reafirmassem as suposições que temiam e abominavam”.
Francisco está pedindo o mesmo, talvez mais, a eles. Mas sejamos claros: é o Vaticano II aquilo a que eles apresentam resistência, um concílio que ainda está sendo recebido e sobre o qual os futuros papas, bispos, fiéis leigos e teólogos terão mais a dizer.
Se odiamos a história, ou ignoramos as suas afirmações, ou se pelo menos vemos a época que vivemos com escárnio, o compromisso de Francisco de envolver-se com o mundo é aterrorizante; mas o Concílio convidou a um engajamento. Se adotamos uma teologia excessivamente influenciada pelo direito canônico, então Francisco é uma ameaça; mas também o é o Concílio. Se os silogismos nos satisfazem, a experiência não nos encanta assim como encanta a Francisco. Se acharmos que a conversa madura que começou no Vaticano II e continuou com Papa Paulo VI corre o risco de formular perguntas difíceis e exige que nos abramos intelectualmente, então veremos o esforço do Papa Francisco em reavivar essa conversa madura com suspeita ou pavor.
Mas o problema não é ele, é o Vaticano II, e este não foi um problema, não é um problema: foi um concílio. Com caridade, devemos tratar de recepcionar este concílio, não fazê-lo objeto de discussão novamente, e é isso o que alguns opositores na verdade querem.
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Papas diferentes, personalidades diferentes – e uma continuidade subjacente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU