24 Novembro 2016
“Do meu ponto de vista, queridos cardeais, o ensinamento do Papa Francisco na Amoris Laetitia é verdadeira fidelidade criativa e desenvolvimento orgânico que explicita o depósito da fé destacando que toda verdade, para que brilhe em sua atração, requer ser afirmada com misericórdia e com bondade”, escreve Rodrigo Guerra López, membro do Pontifício Conselho Justiça e Paz, da Pontifícia Academia pela Vida e da Equipe de Reflexão Teológica do CELAM, em artigo publicado por Vatican Insider, 23-11-2016. A tradução é de André Langer.
A fé cristã é um escândalo. Deus se fez carne frágil e decidiu que esse envolvimento com a vida de todo homem e mulher e de cada homem e mulher permanece dentro da história através da Igreja. A Igreja somos nós: frágeis, néscios, limitados. Deus mergulhou na nossa humanidade finita e torpe, e a humanidade de vocês e a minha, mergulhou no terno abraço desse mesmo Deus. Desde então, todo o caminho cristão está marcado pela pedagogia do seguimento de uma carne concreta, que me educa e acompanha. Não seguimos uma ideia, não seguimos um ideal de decência; seguimos uma Pessoa viva e o modo como esta Pessoa decidiu permanecer conosco, sem nos abandonar. A fácil tentação gnóstica é, dessa maneira, evitada: crendo que o Amor de Deus se inclinou sobre a nossa vida, compadecendo-se da nossa insignificância, reconstruindo por dentro a quem caiu, se afastou ou ficou ferido.
A fé torna-se ideologia quando a nossa certeza sobre o escândalo cristão se dá como evidente. Quando não é preciso recomeçar. Quando, sem nos darmos conta, concebemos a fé como um território já conquistado. Quando estamos mais certos de nós mesmos do que daquele que se deu a nós como lugar de verificação da nossa experiência.
Com efeito, Jesus escolheu Pedro, um pobre pescador, para nos guiar. Ele não era teólogo, nem um erudito. Lidava com peixes e redes. Não foi apesar da sua fragilidade e rudeza que se tornou rocha para apoiar a Igreja. Foi através delas que Deus mesmo decidiu educar e surpreender a todos.
Como crer naquilo que rompe todos os esquemas? Como crer que um Papa jesuíta, latino-americano, amigo de Rafael Tello, de Lucio Gera e de Methol Ferré, possui pleno, supremo e universal poder que pode exercitar sempre com inteira liberdade?
Parece-me que esta certeza de fé se educa na adesão fiel à companhia que nos é proporcionada para viver o mistério da Igreja: o bispo, o pároco, o fundador da comunidade de discipulado na qual nos encontramos instalados, o irmão mais velho que me aconselha e me cuida, etc. Deus coloca ao nosso lado pessoas que são como um fator de verificação, como um caminho para a adesão de fé. Através do sinal sensível de sua amizade e companhia, meu coração descobre que ser Igreja nunca é uma proposta formal, abstrata ou desencarnada. Ser Igreja é sempre viver em uma companhia guiada, em uma obediência e uma disponibilidade. Prescindir da mediação sensível desmorona a Igreja como sacramento. Novamente, gostaria de insistir: não seguimos ideias. Seguimos um acontecimento vivo, atuante e carnal que permanece na história. E embora pareça difícil de acreditar: este é um grande consolo.
O que eu posso pensar, como fiel leigo, pecador e ignorante, quando vejo quatro importantes cardeais da Igreja questionar o Papa sobre seu Magistério ordinário? Como dirigir-me a eles arriscando uma meditação em voz alta? Será suficiente escrever “queridos senhores cardeais” para que parem um segundo para ler estas linhas?
A carta que os cardeais Burke, Caffarra, Brandmüller e Meisner escreveram a Francisco com cinco “dúvidas” sobre a doutrina exposta na Amoris Laetitia, certamente é cordial. Lamento que a tenham tornado pública tão cedo. Parece ser um ato de pressão. Mesmo assim, declarações complementares a ela envolvem-na em um tom de ameaça. O cardeal Burke afirma que se Francisco não responder aos seus questionamentos, eles vão recorrer a “um ato formal de correção” do sucessor de Pedro.
Pergunto-me, com todo o respeito, senhores cardeais: não se dão conta de que seus questionamentos, agora públicos, fortalecem direta e indiretamente aqueles que há anos desconfiam de Paulo VI, de João Paulo II e de Bento XVI e do Concílio Vaticano II? Não se dão conta de que alguns dos setores mais associados a fantásticas teorias da conspiração, a conservadorismos ideológicos alheios ao Evangelho e o moralismo – tão denunciado pelo Papa Ratzinger – celebram a sua tomada de posição? Talvez não haja consciência em vocês de tudo isso. Talvez o minimizem. Talvez desejem, simplesmente, sair das “dúvidas” e se aproximar do Papa com desejos de aprender e não de questionar o seu Magistério.
Do meu ponto de vista, queridos cardeais, o ensinamento do Papa Francisco na Amoris Laetitia é verdadeira fidelidade criativa e desenvolvimento orgânico que explicita o depósito da fé destacando que toda verdade, para que brilhe em sua atração, requer ser afirmada com misericórdia e com bondade. O silêncio do Papa diante das suas perguntas pode responder a duas coisas. A primeira, de que estas questões já foram respondidas tanto na Amoris Laetitia como nas importantes homilias, mensagens e catequese com as quais Francisco exerce o seu “munus docendi” dia após dia.
Vocês perguntam “se é possível agora conceder a absolvição no sacramento da Penitência e, em consequência, admitir à Santa Eucaristia uma pessoa que, estando unida por um vínculo matrimonial válido, convive ‘more uxorio’ com outra”. Parece-me que em algumas circunstâncias se poderá dar a absolvição e admitir à comunhão e em outras não. Tudo dependerá de se existe autêntico pecado mortal ou se existem atenuantes que façam da falta um pecado, embora não desta índole. “O discernimento deve ajudar a encontrar os possíveis caminhos de resposta a Deus e de crescimento em meio aos limites”.
Em segundo lugar, vocês se perguntam se “o ensinamento de João Paulo II sobre a existência de normas morais absolutas, válidas sem exceção alguma, que proíbem ações intrinsecamente más continua sendo válido”. Queridos cardeais, a resposta é “sim”, continua válido. Existem atos que em si mesmos são sempre gravemente ilícitos por causa do seu objeto. Mas, como João Paulo II recorda, “se os atos são intrinsecamente maus, uma intenção boa ou determinadas circunstâncias particulares podem atenuar sua malícia” mesmo quando não a suprimam inteiramente.
A terceira questão é “se depois da Amoris Laetitia n. 301, é possível ainda afirmar que uma pessoa que vive habitualmente em contradição com um mandamento da lei de Deus, como, por exemplo, aquele que proíbe o adultério, encontra-se em situação objetiva de pecado grave habitual?” Aqui a resposta merece algumas distinções: uma “situação de pecado grave habitual” refere-se a uma conduta obstinada contrária objetivamente à norma evangélica. Portanto, não faz alusão à imputabilidade, mas à natureza da ação em si mesma considerada. “Pecado mortal” é aquela ação que envolve matéria grave, pleno conhecimento e deliberado consentimento. Por isso, para que uma ação objetivamente má seja pecado mortal são necessárias determinadas condições subjetivas que o tornem imputável. A proibição de ter acesso à Eucaristia em situação de pecado grave descansa na possibilidade de afetar a ordem da comunidade, provocar escândalo e situações parecidas. Ou seja, descansa sobre uma norma disciplinar, não doutrinal e que o Papa pode modificar.
Pelo contrário, a impossibilidade de ter acesso à Eucaristia em pecado mortal é da ordem doutrinal, não meramente disciplinar. Por isso, já não é possível afirmar que toda pessoa em situação de pecado grave por definição encontra-se cometendo pecados mortais. Basta pensar em pessoas que vivem em situações de escravidão sexual e nas quais, evidentemente, existe uma situação de pecado grave (a prostituição) sem que por isso signifique que os atos que realizam são imputáveis a tal grau que possam ser considerados com “pleno conhecimento” e “deliberado consentimento” (uma vez que há escravidão). Pelo visto, os cardeais se aproximam disto ao reconhecer que uma pessoa em situação de vida objetiva de pecado “subjetivamente poderia não ser plenamente imputável, ou não sê-lo absolutamente”.
A quarta pergunta que os referidos cardeais fazem ao Papa é: “depois das afirmações da Amoris Laetitia n. 302 sobre as ‘circunstâncias que atenuam a responsabilidade moral’, deve-se considerar ainda válido o ensinamento de São João Paulo II, segundo o qual: “as circunstâncias ou as intenções nunca poderão transformar um ato intrinsecamente desonesto por seu objeto, em um ato subjetivamente honesto ou defensável como opção”? Sim. A circunstância ou a intenção modificam apenas acidentalmente a espécie moral da ação. Mas ambas são relevantes para a determinação da imputabilidade. Por isso, o Papa Francisco está correto ao afirmar que “um juízo negativo sobre uma situação objetiva não implica um juízo sobre a imputabilidade ou a culpabilidade da pessoa envolvida”.
A quinta pergunta versa sobre se “se deve considerar ainda válido o ensinamento de São João Paulo II, em que exclui uma interpretação de criação do papel da consciência e afirma que esta nunca está autorizada para legitimar exceções às normas morais absolutas que proíbem ações intrinsecamente más por seu objeto”. Sim, a “Amoris Laetitia não propõe exceções às normais morais absolutas. O que existe são atenuantes que em alguns casos podem fazer com que o pecado cometido não seja imputável a um sujeito com as características necessárias para poder considerar sua ação um pecado mortal.
Com o que foi dito, não se resolve toda a questão. Estou consciente de que minhas respostas são muito breves. Gostaria de terminar acrescentando uma segunda possível razão que poderia explicar o silêncio do Papa. Na Misericordia et Misera, Francisco fala várias vezes do “silêncio”. Ao explicar o encontro de Jesus com a mulher adúltera, assinala que a quem gostaria de “julgá-la e condená-la à morte, Jesus responde com um longo silêncio, cujo intuito é deixar emergir a voz de Deus tanto na consciência da mulher como nas dos seus acusadores. Estes deixam cair as pedras das mãos e vão-se embora um a um”. Não será esta a razão do silêncio do Papa? Não estará esperando que os homens que juraram fidelidade à sua pessoa reconsiderem sua posição e se coloquem novamente no caminho pedagógico que assinalamos no começo deste artigo?
Queira Deus que, com diálogo e boa fé, com oração em comum e abraço sincero, todos possamos caminhar junto com o Sucessor de Pedro e junto com os bispos em comunhão com ele. Assim poderemos dar testemunho vivo de que, para além de algumas diferenças de sensibilidade, a comunhão sempre é possível, se redescobrirmos existencialmente a primazia do amor misericordioso de nosso Deus, que ama a todos e que sempre nos perdoa.
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“Queridos cardeais...”. Teólogo leigo responde aos quatro cardeais que contestam o Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU