22 Novembro 2016
“O cansaço mais tremendo é o de não poder descansar de si mesmo. Esse “Eu” tanto nutrido com alimento balanceado, digital, imaginário, informativo, apegado à exigência de nosso tempo: uma adaptabilidade infinita, uma disponibilidade 24/7, a permanente incitação ao prazer imediato e, sobretudo, a cobrança desarraigada e sem parâmetros claros pela conversão da vida inteira em desempenho, em performance. Dá-se como um dentro sem fora, que o ameaça com um horizonte de desespero”, constata o editorial Tiro al Blanco (rádio FM La Tribu), traduzido e publicado por UniNômade, 21-11-2016.
Eis o texto.
A partir de A sociedade do cansaço (Byung-Chul Han, 2010, ed. brasileira pela Vozes: 2010) e outras pistas
O nosso tempo apresenta uma sintomatologia que nada tem que ver com velhas patologias, não se inscreve numa história das fobias e não nos leva a discutir sobre o estranho, o desvio, o anormal. A sintomatologia está mais ligada à superestimulação, à excitação permanente ao prazer individual, à superabundância de informação e, sobretudo, a uma cobrança difusa e cada vez maior por desempenho, por performance. Byung-Chul Han fala de um “excesso de positividade”, uma violência da positividade. Por isso, a sua hipótese sobre a “sociedade do cansaço” parte de um rechaço ao modelo imunológico (encarnado, entre outros, pelo filósofo italiano Roberto Espósito), que ele considera adequado para o século passado, quando fazia mais sentido um pensamento do estranho e do familiar, do ameaçador e do seguro, como permanente demarcação das relações sociais.
Contudo, em nossas condições, Byung-Chul diz coisas como: “os imigrantes ou refugiados são considerados antes como um fardo do que como ameaça”. De fato, são somente os poucos e localizáveis neofascistas e as ligas ultradireitistas que mantêm a imagem desse outro ameaçador, pois o discurso bem-pensante realista, consciência que melhor exprime a racionalidade da nossa época, prefere a outra imagem, a do “fardo”, do que está sobrando. Um realismo que lança mão de metáforas patéticas, como a do “cobertor curto” demais.
Assim é levada também à crise a inimizade, enquanto categoria psíquica e política. Na era da pacificação, não se trata mais da eliminação do inimigo, mas da eliminação do próprio conflito. A novidade não está na repressão, mas na cobrança por um sucesso e um desempenho em condições a que, paradoxlmente, não temos acesso. De fato, as polarizações tornam ainda mais opaca a sintomatologia do tempo, ao desviar a nossa atenção para outras coisas. A violência da positividade, diz Han, não é a única, mas é a única que opera por saturação.
Um artigo publicado pelo The Guardian (a tradução brasileira pode ser conferida aqui) atribui as doenças mentais de hoje ao neoliberalismo, quando diz: “Bem vindos à distopia post-hobbesiana: uma guerra de todos contra si próprios.” É uma fórmula interessante que toca o nosso problema. O Leviatã, como imagem para a ordem social e força motriz das promessas no horizonte, foi montado ao redor da necessidade histórica de reunificar territórios, economias e expectativas; porém, no plano existencial, seu maior êxito foi conjugar uma paixão, o medo, com uma questão estratégica, a obediência ao soberano. Assim, a fórmula “homem lobo do homem” serviu de transição para a coesão social. Que é, então, que o social ordena em condições pós-hobbesianas? O que antes era ameaça, o “todos contra todos”, hoje se coloca como pedra angular da experiência, uma vez que a “competitividade” de todos contra todos já se tornou lugar comum. Em consequência, poderíamos seguir pensando no medo como fonte de coesão e obediência? Ou melhor, qual forma adquire o medo nas nossas condições hoje? Novamente, a positividade reaparece um como traço decisivo. A fantasia apocalíptica, a projeção do caos que a época do Leviatã construiu como o seu outro absoluto, já não arde nas consciências. A negatividade do outro, o seu caráter ameaçador, cedeu o lugar a uma ameaça que hoje é o norte dos comportamentos: a ameaça da indiferença generalizada e do fracasso. O medo da desorganização social de outrora perdeu peso, já que o neoliberalismo e o desbotamento da modernidade, em vez de desordenar os laços sociais existentes, simplesmente os desfizeram.
O outro, para além de situações específicas, não é nem lobo nem inimigo, mas um objetivo. O problema passou a ser como agradá-lo ou, pelo menos, como não o desagradar. O inimigo, o culpável, o deficiente, sou eu mesmo. Os dispositivos contemporâneos tendem, por um lado, a acentuar a dimensão neuronal e comportamental e, por outro, a condicionar os vínculos em termos de uma qualificação anímica. Tão banal quanto o é na realidade: você me cai bem ou mal, me interessa mais ou menos a sua existência, me agrada ou não, e eis carinhas alegres ou tristes (emoticons) para cá e para lá etc. Não se trata mais de colocar todos contra todos, como em Hobbes, mas todos na beira de sua própria implosão.
Da disciplina ao controle, e do controle ao desempenho. Em nosso tempo, um louco não é mais o anormal, mas o fracassado. Quer dizer, não está nem sequer em jogo o fracasso da sociedade como um todo, mas o fracasso do indivíduo. Byung-Chul diz que a depressão provocada hoje em dia pela pressão por desempenho passou a causar “infartos psíquicos”. É certo que, vinda tal reflexão de um filósofo coreano, – da Coreia do Sul, – poderíamos levantar alguma desconfiança a respeito do papel do desempenho nesse país, se levarmos em conta a pressão desmedida em aumentar a produtividade e, sobretudo, igualar a produtividade ao próprio sentido da vida. Mas, nesse caso, haveria que perguntar-se pelas distintas formas que o “desempenhismo” assume nas várias culturas e trajetórias coletivas, quando é tensionado pelo efeito da globalização. Em nosso caso, não podemos sustentar que se trata de produtivismo extremo, sempre difícil de impor em sociedades que insistem em recusar e resistir a esse conjunto de ditames, para além do avanço de uma meritocracia medíocre e hipócrita. De qualquer modo, a lógica das redes, por um lado, e a crescente adoção de técnicas espirituais prestes a massificar-se, por outro, assim como as tendências farmacológicas, abrem um sulco por onde pode seguir a pesquisa.
Um contraste de época: a sensação permanente que nada acontece simultânea à latência que pode acontecer qualquer coisa: um medo impossível de caracterizar, uma angústia inapreensível. Ataque de pânico. Como não evitar expor-se ao pânico numa vida que nos coloca permanentemente na borda da implosão? Somos como um carro com três pedais: acelerador, embreagem, acelerador de novo. As terapias propõem ações para mitigar os efeitos do excesso de ação.
Perdemos ao longo do caminho um discurso sobre a morte e, com ele, a possibilidade de habitar a morte, de torná-la vivível. Como reverso da moeda, morremos em vida pretendendo vencer a morte (como reza o livro do geneticista Laurent Alexandre: “A morte da morte”). Entroniza-se a exigência de uma saúde impossível, uma espécie de hipocondria latente que, para insistir com os paroxismos, nos deixa doentes.
A sociedade da superocupação alarga a sua cobrança por desempenho a todos os grupos e classes. Para as crianças, há períodos escolares duplos, atividades extra e conselhos para mães e pais sobre como mantê-los permanentemente ativos (uma recente propaganda publicitária de iogurte erige a principal inimigo infantil um simpático mas repudiável personagem: a “indolência”). Para os pobres, se multiplicam oficinas que oscilam entre a capacitação e uma ideia racista e classista de “reabilitação”, ainda que ultimamente também aterrissam nos bairros populares propostas ligadas ao espírito empreendedor. Enquanto isso, as classes médias, as médias “estúpidas” (como dizia Mafalda), e as médias acomodadas, passeiam em meio a terapias e assistências de problemas bem específicos, espaços de regozijo espiritual, cursos de liderança, coaching ontológico, disciplinas corporais e diversos retalhos de culturas orientais reintroduzidas nas velocidades de nossa metrópole.
Diante de um ativismo que nos é imposto como norma, da ativação automatizada, da atividade incessante, de todas as formas da positividade de nosso tempo, do modo como a potência é exigida pelos mercados, de um regime de exploração e produção sem fim que conjuga consumo, afetos e signos, diante de tudo isso, parece que debaixo da manga só nos resta resguardar a carta de um sacrossanto dizer “não”. Alguns o chamam “potência de não fazer”. A potência é positiva, a impotência é, pela força da deserção, defectivamente, o contrário da potência, isto é, se reduz a uma potência que não se cumpre ou que está impedida. Portanto, somente a potência de não fazer extrapola ou tem chances de suplantar o fazer enquanto imperativo. Isto significa desobedecer.
Ante a situação, Han contrapõe a figura da atividade contemplativa do zen que, levada às suas últimas consequências, se despoja de tudo isso que nos é imposto como uma exigência de época. É essa linha delgada que requer toda a nossa atenção, justamente uma capacidade que o excesso de positividade nos atrofia. Mas a potência do não fazer não pode confundir-se com o simples deixar-se estar, com um retiro alucinado alimentado por certo ressentimento ou com a passividade e nada mais. Pensamos, ao contrário, em atividades como escrever, pintar, pesquisar com devoção, travar conversas que inventem um tempo próprio, cultivar uma solidão capaz de fazer passar paisagens inteiras, juntar-se para ver o correr do rio, fundir-se no horizonte de uma rota…
O doping contemporâneo, ou seja, as drogas “inteligentes” ou suplementos nootrópicos se caracterizam por tonificar um aspecto do cérebro que não é, necessariamente, o mais importante para a sua própria vida orgânica, para a simples vida como parte do corpo. São tonificantes cognitivos, hiperestimulantes, reforçadores de memória (reduzindo assim a memória a depósito de informação), fortificantes da concentração, entre outros. Há médicos e cientistas que consideram uma banalidade o uso desse tipo de remédio. Eles alegam: por que não deveríamos beneficiar-nos deles se estão ao alcance, para que possamos render mais? Entretanto, em termos de produção de sentido, essa imagem de incremento (“augmentation”) já estava contida nas publicidades e produtos de uma maneira aparentemente simplória: o Speed (e sua combinação com Viagra nos jovens), as barras proteicas ou energéticas e todo tipo de aditivos ou suplementos retóricos e químicos à disposição no mercado de alimentos.
Como contrapartida, prolifera a automedicação dos que sofrem de depressão e dos apáticos. Toda uma fauna de zumbis a suportar a própria existência nas margens do desempenho.
Diz Han: “Se o doping fosse permitido nos esportes, teriam se convertido numa competição entre remédios.” O incremento farmacológico supõe uma diminuição de mundo. A complexidade de uma vida se reduz a funções simplificadas, mas desta vez nem tanto em virtude de uma fragmentação das capacidades (divisão do trabalho) ou da alienação no sentido clássico, mas por entregar-se toda inteira, com tudo o que é e o que pode vir a ser (sua potencialidade), ao dogma, e sem doutrina, do desempenho. Sorte da metafísica contrabandeada sob a aparência de uma pura praticidade indiferente às ideias, o “desempenhismo” que chega a superar em refinamento e risco algumas religiões. A “livre obrigação de maximizar o desempenho”. Já não se trata mais apenas de vender a força de trabalho, mas sim otimizar a vida.
Na paisagem do pós-fordismo, poucos foram os que enxergaram que o trabalho aparentemente desregulamentado e a precarização não tornariam a relação de exploração mais amável ou menos exploradora, ao contrário, ela foi sofisticada. Passou-se da luta pela redução da jornada laboral à total indeterminação sobre o quantum de trabalho necessário ou requerido para manter-se o posto de trabalho. Além disso, o comportamento volátil de boa parte dos trabalhadores contemporâneos parece confirmar a precarização, conforme um círculo vicioso. Sempre que tenhamos removido de nossa imaginação política toda alternativa ou alteração do capitalismo, o único critério remanescente coincidirá com o ponto de vista daqueles que nos subordinam ao desempenho, segundo uma relação de exploração, dívida e submissão a critérios indefinidos e disputáveis.
Em última instância, o cansaço mais tremendo é o de não poder descansar de si mesmo. Esse “Eu” tanto nutrido com alimento balanceado, digital, imaginário, informativo, apegado à exigência de nosso tempo: uma adaptabilidade infinita, uma disponibilidade 24/7, a permanente incitação ao prazer imediato e, sobretudo, a cobrança desarraigada e sem parâmetros claros pela conversão da vida inteira em desempenho, em performance. Dá-se como um dentro sem fora, que o ameaça com um horizonte de desespero. Apesar disso, não experimentamos imediatamente o que há de desagradável nessas cobranças e aspectos de nossa época, ao contrário, elas subsistem numa mistura libidinal que Han descreve como “excesso de positividade”.
Quando escutamos alguém ou nos escutamos exclamando “estou a mil” (e outras expressões sucedâneas), podemos perceber um tipo de gozo histérico. Por um lado, “estar mal” nos põe abaixo da altura do que o nosso tempo reconhece como válido: se você não está na borda do desborde, no limite do ilimitado, é porque a sua vida é aborrecida, improdutiva, nada interessante e até um tanto suspeita. Mas, por outro lado, nada que se conte por mil nesses termos é vivível por um corpo: mil amigos ou contatos, mil atividades, mil projetos, mil o quê? Novamente, o cansaço. O excesso de positividade não alimenta descontentamentos presentes e rebeldias futuras, não nos deixa tempo para fazer germinar a raiva, e se desenvolve até que cansemos ou fiquemos doentes. Voltamos ao nosso advérbio preferido: e então?
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O império do cansaço - Instituto Humanitas Unisinos - IHU