02 Novembro 2016
"Era preciso um papa subtraído dos duros condicionamentos históricos da velha Europa, um papa como Francisco, que encontrou um protestantismo mais vivo do que o europeu, para fazer um gesto de paz tão clamorosamente concreto como o de hoje."
A opinião é da historiadora italiana Lucetta Scaraffia, membro do Comitê Italiano de Bioética e professora da Universidade de Roma "La Sapienza". O artigo foi publicado no jornal Corriere della Sera, 01-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A presença do Papa Francisco em Lund justamente no dia 31 de outubro, dia em que, em 1517, foram afixadas em Wittenberg as teses de Lutero, marca uma novidade fundamental na história das relações complexas e predominantemente conflituosas entre as duas confissões.
Como escreveu Enzo Bianchi, mais do que uma novidade, ela pode ser considerada como um verdadeiro sinal profético, graças ao qual o diálogo entre católicos e luteranos é posto em condições de ir além das divergências teológicas.
Não por acaso esse gesto imprevisto, aceito com generosidade também pela Igreja Luterana, é obra de um papa sul-americano. Na Europa, de fato, ainda temos presentes na memória história as devastações provocadas na primeira metade do século XVII por 30 anos de guerras religiosas, de fogueiras de hereges decretados por ambos os lados, de ódios e concorrência que, às vezes, pareciam nunca ter fim.
Ainda hoje, em muitas igrejas católicas europeias, a sangrenta Batalha da Montanha Branca de 1620, que freou o avanço protestante na Boêmia, é lembrada como um evento providencial por quadros e estátuas, como o Menino Jesus de Praga, grande símbolo protetor do exército católico. E, se visitarmos o Rijksmuseum de Amsterdã, ficamos espantados, dando-nos conta de que, até a metade do século XVI, as obras expostas – quase todos de assunto religioso, como em toda a Europa – são de dimensões modestas, senão modestíssimas: mas nenhuma legenda explica que as telas de grandes dimensões, embora presentes na época em todas as igrejas holandesas, estão ausentes porque foram despedaçadas pela fúria iconoclasta dos calvinistas, enquanto as menores foram conservadas no segredo das habitações privadas.
E quem se lembra de que, ainda no fim do século XIX, depois do fim do poder temporal, foram muitos os pastores protestantes enviados à Itália – bem providos de meios – com a certeza de que, naquele ponto, já, o proselitismo obteria sucessos consistentes? A ideia difundida nos ambientes protestantes, de fato, era que, sem o poder temporal, a Igreja Católica decairia, senão desapareceria, em um curto espaço de tempo.
Até mesmo nos novos bairros de Roma, por algum tempo, a luta entre protestantes e católicos se tornou acirrada. Para nós europeus, em suma, é mais difícil esquecer, perdoar, embora hoje muitos dos profundos desacordos que causaram a cisão da Igreja não têm mais razão de ser: o problema da salvação – só por graça divina, como dizia Lutero, ou através das obras e da mediação do clero, como queria a Igreja Católica – não persegue mais ninguém. Assim como as indulgências desapareceram do nosso horizonte, e até mesmo o além, há décadas, parece ter desaparecido.
Por que, então, brigar ainda sobre tudo isso? E como brigar ainda sobre o livre acesso aos textos sagrados, se hoje até mesmo os católicos estão acostumados a ler a Bíblia nas edições que preferem, em grupos de leitura e de comentário animados por uma grande vivacidade? É claro, permanecem em aberto questões teológicas, como os sacramentos – reduzidos numericamente pelos luteranos –, mas essas são, acima de tudo, questões que não afetam muito os fiéis. Que, em vez disso, estão mais envolvidos em temas controversos como o divórcio, o controle da natalidade, a homossexualidade, ou seja, sobre as questões bioéticas nas quais as Igrejas protestantes, no século XX, tomaram uma posição quase sempre oposta à católica.
E, naturalmente, sobre o papel das mulheres. Mas aqui a questão é complexa: se é verdade, de fato, que, a partir dos anos 1960, quase todas as Igrejas protestantes aceitaram a nomeação das mulheres como pastoras e, depois, posteriormente, como bispas – mas é preciso lembrar que os pastores não são sacerdotes, já que, de acordo com a a Igreja Católica, o sacramento da ordem sobreviveu apenas no mundo ortodoxo –, quem olha para as diferentes confissões com olhar histórico descobre, em vez disso, uma realidade diferente.
Como destacou a historiadora judia Natalie Zemon Davis, nas sociedades protestantes, as mulheres desempenharam um papel público apenas no momento inicial, depois foram relegadas ao papel de esposa do pastor, privadas, portanto, também daquele protagonismo religioso, que, em vez disso, as monjas e as freiras puderam exercer na Igreja Católica. Não é por acaso que, na história luterana, faltem figuras como as de uma Teresa d’Ávila ou de uma Edith Stein.
Era preciso um papa, em suma, subtraído dos duros condicionamentos históricos da velha Europa, um papa como Francisco, que encontrou um protestantismo mais vivo do que o europeu, atento como os católicos, e, às vezes, ao lado dos católicos, dos problemas sociais e dos pobres, um papa que conheceu, sim, a concorrência no proselitismo, mas não as violências dos confrontos de arma branca entre católicos e reformados, para fazer um gesto de paz tão clamorosamente concreto como o de hoje.
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As teses de Lutero e o pontífice que apaga séculos de conflitos. Artigo de Lucetta Scaraffia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU