Por: Patricia Fachin | 28 Outubro 2016
O desafio, diante da atual crise política brasileira e das tensões vividas no país, é avançar “na perspectiva de uma construção democrática”, mas também não vivemos um “momento apocalíptico” como outros do passado, diz Adriano Pilatti à IHU On-Line. O importante na atual conjuntura, frisa, “é persistir e tentar encontrar, no meio da névoa, referências efetivamente capazes de iluminar os caminhos a seguir”.
Na avaliação dele, a novidade no campo político “é que, pela primeira vez, em décadas, nós temos uma direita de massa, que é também juvenil, que ‘saiu do armário’ (...). Isso, evidentemente, coloca novos desafios e claros movimentos de luta por direitos”. Diante desse novo cenário e num contexto de crise e disputa entre as esquerdas, “o que importa, justamente, é encontrar formas de buscar uma nova articulação entre os movimentos autônomos e as instituições representativas que estão em crise”. Também é preciso “ponderar”, diz, “que as esquerdas brasileiras sempre foram muito mal acostumadas, porque se relacionaram, nos seus conflitos e nas suas disputas com o campo de direita, com base no pressuposto que à direita são todos ignorantes, toscos, primários – o que não deixa de ser verdade. Mas o que os últimos anos estão revelando é que existe também uma direita capaz de compreender a importância ou a incotornabilidade de certas questões que são transversais às ideologias tradicionais, e que podem ter, também, discursos e políticas para setores excluídos, dependendo da questão, como do ponto de vista dos costumes, sobretudo”.
Um exemplo disso, que “nem é novidade no resto mundo”, é a existência de “uma direita que é laica e desenvolvida do ponto de vista dos costumes, que tem posições muito saudáveis em relação a questões como drogas”. O ponto, acentua, é que esse novo cenário “exige que as esquerdas se tornem melhores, se aperfeiçoem, se acostumem a disputar um campo que até então parecia todo seu”. Apesar de não vislumbrar um futuro apocalíptico, Pilatti afirma que “será difícil restabelecer um diálogo na esquerda enquanto certos discursos continuarem sendo cultivados, como, por exemplo, o de que 2013 tem algo a ver com 2015. Quer dizer, isso determina cisões e abismos, em certos setores da esquerda, que são difíceis de superar”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line pessoalmente, depois de sua participação no V Colóquio Internacional IHU e VII Colóquio da Cátedra Unesco – Unisinos de Direitos Humanos e Violência, Governo e Governança, Pilatti comenta alguns temas que têm gerado tensões no país, como a proposta do governo federal de instituir a PEC 241 e os desdobramentos da Lava Jato. Sobre a medida que sugere a instituição de um limite para os gastos públicos nos próximos 20 anos, Pilatti afirma que ela “atenta contra toda a arquitetura e a lógica da Constituição de 1988, embora, do ponto de vista estritamente normativo, falar em uma inconstitucionalidade geral da proposta é complicado. A Operação Lava Jato, de outro lado, pontua, “tem se caracterizado por um reiterado excesso, uma reiterada desproporção nas medidas que têm sido tomadas e na forma de sua articulação e divulgação, inclusive, que marcam uma página triste do Judiciário e do MP brasileiro, se nós levamos os direitos e garantias constitucionais a sério”.
Adriano Pilatti em conferência no IHU
Foto: Luisa Boéssio | IHU
Adriano Pilatti é graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Ciências Jurídicas pela PUC-Rio e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - Iuperj, com pós-doutorado em Direito Público Romano pela Universidade de Roma I - La Sapienza. Foi assessor parlamentar da Câmara dos Deputados junto à Assembleia Nacional Constituinte de 1988. Traduziu o livro Poder Constituinte - Ensaio sobre as Alternativas da Modernidade, de Antonio Negri (Rio de Janeiro: DP&A, 2002). É autor do livro A Constituinte de 1987-1988 - Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como o senhor está compreendendo o momento que se vive no país hoje, dada a crise política, econômica e a crise da esquerda? Esse momento já estava anunciado ou não?
Adriano Pilatti – Vamos começar por um lugar comum: é um momento extremamente difícil, extremamente complexo, talvez o mais difícil desde que nós saímos da Ditadura Militar, desde o início do processo de transição, e é um momento em que as coisas estão muito enevoadas. Nada parece ser o que parece ser. Há muitas metamorfoses em curso e é um momento de radicalização, de muita exasperação e de muito ódio. Tudo isso tem se traduzido em uma polarização, em um binarismo que, a rigor, mais serve para complicar a compreensão das coisas do que propriamente para esclarecê-las. Temos um grande desafio a ser vencido na perspectiva de uma construção democrática, mas também não é um momento apocalíptico. Este país já enfrentou situações piores e conseguiu sair delas, e provavelmente sairemos dessa também, com muitas sequelas, mas o importante é persistir e tentar encontrar, no meio da névoa, referências efetivamente capazes de iluminar os caminhos a seguir.
Tenho a impressão de que todos nós estamos vivendo um pouco dessa perplexidade, que é a perplexidade que vem do esgotamento de uma experiência de construção de bem-estar e de conciliação política. Para usar uma velha expressão da tradição e do pensamento de esquerda, que é de Gramsci, esse é um daqueles momentos em que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer; estamos em uma situação como essa.
IHU On-Line – O que é distintivo nesse momento de crise política em relação a momentos anteriores, como o da Ditadura, por exemplo, dado que hoje nós não vivemos numa ditadura? Esse sentimento de insegurança e medo que se percebe de modo mais acentuado em alguns setores da sociedade é algo generalizado ou ele está mais presente naquelas pessoas que viveram o período da Ditadura Militar e sentem medo de voltarmos a um momento como aquele?
Adriano Pilatti – Não me atrevo a fazer interpretações das motivações subjetivas dos outros, mas é claro que há muitas diferenças hoje, porque nós vivemos em uma democracia limitada, que tem sido limitada mesmo depois da reconstitucionalização. Costumo dizer que o regime autoritário acabou para nós, os incluídos, conforme a nossa origem étnica, a nossa classe social etc. A democratização realmente se efetivou nos escalões superiores da sociedade, mas nos bolsões de pobreza e exclusão, a rigor, o autoritarismo nunca terminou. A submissão das comunidades pobres à violência que vem do crime, à violência que vem do Estado, sobretudo por meio das polícias militares e das milícias articuladas com os aparelhos de Estado, a violência que é, ao mesmo tempo, crime e Estado, nunca acabou, ao contrário, ela persistiu e tem persistido. E o Estado de Direito, nesses territórios, é simplesmente uma miragem.
Estreitamento da democracia
Também não acho que estejamos vivendo uma situação de golpe e pós-golpe, como a que o país viveu em 1964 ou 1968. Dizer que a situação é essa, me parece, é “forçar demais a barra”. Esses componentes autoritários, a rigor, já vinham de anos anteriores, eles começaram a se manifestar em todo o ciclo repressivo que se iniciou em 2013, inclusive com várias reformulações de legislação. E agora ele parece estar se agudizando ao ritmo de um governo que é, hoje, não mais uma frente que une conservadores e a antiga esquerda, mas é uma oposição nitidamente conservadora, nitidamente descompromissada com as pautas que, tradicionalmente, caracterizaram os movimentos e as lutas sociais do país até aqui. Isso coloca a possibilidade, que está em curso, de um estreitamento ainda maior dessa democracia limitada. Mas, ao mesmo tempo, temos hoje uma capacidade de resistência de amplos setores da sociedade, que não se configurava nos momentos anteriores.
Um indício disso são os recorrentes recuos que o próprio governo tem feito em algumas de suas pautas mais excludentes ou conservadoras. Isto é, o jogo continua, em condições muito desfavoráveis, mas os movimentos e os desejos de mudança e transformação estão aí. O que há de novo é que, pela primeira vez, em décadas, nós temos uma direita de massa, que é também juvenil, que “saiu do armário”, que não tem pudor de expor seus preconceitos, seus ódios e seus apetites de exclusão. Isso, evidentemente, coloca novos desafios e claros movimentos de luta por direitos e por quem quer que se coloque em defesa daqueles que defendem seus direitos contra privilégios.
IHU On-Line - O fim da conciliação política é algo positivo, embora hoje se viva um momento de tensão, ou a conciliação seria necessária, mesmo ela tendo sido criticada, tal como foi nos governos Lula e Dilma?
Adriano Pilatti – Nós devemos ter um respeito pelo curso dos acontecimentos; aconteceu. Esse último projeto de conciliação se esgotou já faz alguns anos, não apenas porque o componente progressista transformador dos governos do PT foi se diluindo, sobretudo, a partir do relançamento de uma estratégia que muitos chamam de neodesenvolvimentista - essa coisa do Brasil Maior, que é uma expressão que vem de Francisco Campos, do Estado Novo -, mas também porque os setores conservadores estão se sentindo em condições de desenvolver um projeto próprio que dispensa qualquer concessão em relação a outras forças.
A desilusão dos iludidos
É um momento de desilusão para os iludidos. A rigor, tudo isso estava no horizonte desde 2013. Costumo dizer, numa alegoria, que em 2013 a multidão jovem, pobre, progressista e transformadora que tomou as ruas, disse, claramente - e essa era uma expressão que corria em muitas manifestações -, que acabou o amor, acabou a conciliação. Ou, como diria o novo rock brasileiro, “a gente não quer só comida”, há outras demandas que os limites postos pela conciliação não podem ou não querem mais atender, e é preciso reorientar os rumos.
A mim parece que o governo do PT não entendeu, não quis entender e fez questão de não entender isso e continuou achando que havia amor entre o governo do PT e as elites, mas no ano seguinte foi a vez de as elites dizerem que era isso mesmo, que o amor tinha acabado, e aí, “deu no que deu”. Claro que, em função disso, se estabeleceu uma competição de narrativas, como se a história devesse ser capturada pelos “estudos e letras”. Mas eu não me coloco – e isso é evidente – entre aqueles que achavam que vivíamos antes um horizonte paradisíaco de democracia e igualdade, então chegaram os homens maus e agora estamos nas trevas. As trevas que vivemos começaram a ser semeadas nos últimos governos do PT, inclusive do ponto de vista da repressão: da legislação repressiva, do armamento das guardas municipais, dos desrespeitos às comunidades indígenas e ribeirinhas, da paralisação da reforma agrária. Enfim, toda uma agenda igualitária foi, progressivamente, sendo abandonada, sem que, ao afirmar isso, precisemos deixar de reconhecer os grandes avanços que os dois primeiros governos do PT representaram em termos da redução das desigualdades mais brutais da sociedade brasileira. Mas, evidentemente, isso não era suficiente.
O que as ruas colocaram em 2013 — as ruas de 2013 são completamente diferentes nos seus objetivos, na sua composição e na sua relação com o Estado e a repressão do Estado — foi uma agenda de transformação de problemas reais da sociedade brasileira, que poderiam ter motivado o governo de então a reorientar a sua agenda nesse sentido. Naquele momento, com o apoio das ruas, teria sido possível obter novos avanços. Lastimavelmente o governo do PT tomou o lado do conservadorismo e, hoje, em alguma medida, podemos entender, lamentavelmente, o porquê.
IHU On-Line - Por quê?
Adriano Pilatti – Porque havia muitos interesses envolvidos; é o que os fatos estão demonstrando. Se tomarmos o Rio de Janeiro como exemplo, tudo aquilo que as ruas do Rio criticavam em termos de gasto público e remoções de moradores, veremos que se tratava de um grande negócio, que interessava a setores do capital, a setores conservadores e à aliança conservadora que estava no governo.
IHU On-Line – Hoje alguns avaliam que a crise política é mundial. Qual é a natureza da crise política mundial e quais suas peculiaridades da crise brasileira nesse contexto mais amplo?
Adriano Pilatti – Podemos distinguir duas coisas: pelo menos desde o século XVIII, desde que o abade Emmanuel-Joseph Sieyès, no panfleto “O que é o terceiro estado?”, publicado em fevereiro de 1789, denunciou a falta de representatividade do órgão representativo de então, falar de representação política é falar de sua crise. Então, podemos entender a representação como um conceito e uma articulação institucional que é, em si mesma, tensa e sujeita a crises recorrentes, que se configuram, justamente, quando os resultados, ou seja, os corpos representativos que decidem, se desprendem de sua fonte, da vontade e das aspirações dos representados, daqueles que querem se representar.
O mal-estar da representação
A difusão entre nós, nos últimos anos, a partir do discurso “isso me representa, aquilo não me representa”, é um índice desse mal-estar com relação à representação política, que, em grande parte, é coisa nossa e tem a ver com as deficiências do próprio modelo brasileiro, mas que, em grande parte, também expressa uma crise que é mundial, que é global. A representação não vai bem em todo lugar: em todo lugar se desconfia dos políticos e dos parlamentos; em todo lugar se considera que essa forma de expressar a vontade dos diferentes estratos sociais não está dando conta de cumprir devidamente suas funções. Isso é multifatorial, mas penso que uma das hipóteses explicativas esteja, justamente, no fato de que todas essas estruturas de representação, não só a representação política, parlamentar e eleitoral, mas a representação sindical ou a representação estudantil, ou seja, todas essas formas tradicionais de representação que foram se construindo a partir do final do século XIX e das lutas pelo sufrágio, têm a ver com uma própria transformação do capitalismo, da sociedade capitalista, da economia capitalista e das formas de articulação e socialização que se desenvolvem nessas sociedades.
Parlamento, partidos, sindicatos, centros acadêmicos, correspondiam perfeitamente à organização fordista-taylorista do trabalho e da produção. Sala de aula, fábrica, cárcere, hospital e parlamento, com seus lugares distribuídos, com sua fixação coordenada em espaços temporais, entraram em crise ao mesmo tempo em que o modelo fordista-taylorista começou a entrar em crise no segundo pós-guerra. O primeiro índice desse mal-estar é o primeiro ciclo de revoltas de 1968 e, de certo modo, o ciclo de revoltas que recomeça com as rebeliões de Seattle, em 1999, e Gênova, em 2001, questionando o verdadeiro centro do poder mundial hoje, que é o G-8. Esses grupos começam a expressar uma nova insatisfação com essas formas, a qual se espraiou por toda a Europa nos idos da década que estamos vivendo, sobretudo, a partir do final de 2010 e início de 2011, chegando ao Brasil em 2013. Existe aí uma conjugação de fatores que são nacionais e locais, com fatores globais, que faz com que, em todas as metrópoles do mundo e em todos os ambientes políticos metropolitanos do mundo, hoje, essa crise, e a disposição de aceitar o desafio de pensar em novas construções institucionais para dar conta dessa crise, se colocam.
IHU On-Line – As pessoas parecem, de um lado, querer mais representatividade, mas, de outro lado, não há um engajamento massivo de participação em situações locais, nas quais elas poderiam decidir sobre questões básicas, como uma simples reunião de condomínio, por exemplo. O que seriam, então, novas construções institucionais para instituir um novo modelo de representação que desse conta, inclusive, das divergências sociais e dessa necessidade de representatividade e que despertasse as pessoas para de fato querer participar mais das decisões políticas?
Adriano Pilatti – Obviamente todo mundo está procurando as alternativas, ninguém ainda as têm, até porque elas só podem nascer do curso dos acontecimentos e não da mente iluminada de quem quer que seja. Mas, do ponto de vista de uma ação política cujo objetivo seja a defesa e a conquista de direitos, a redução das desigualdades, a liberação da potência de viver, produzir e se relacionar entre as pessoas, o grande desafio não é cultivar a aspiração infantil de que se pode abolir, de repente, as instituições representativas, dispensar completamente os espaços institucionais organizados até aqui. Mas, repensá-los e, sobretudo, buscar uma nova articulação entre essas novas instâncias de organização representativa com os movimentos.
Existe uma demanda séria por horizontalidade, por tomada da palavra dos mais diferentes setores explorados e oprimidos, que não encontram eco nas estruturas existentes, sequer nos chamados partidos de esquerda, que estão em crise no mundo todo. Então, é preciso primeiro considerar que tende a haver alguma instância de mediação, até porque não podemos deliberar o tempo todo sobre questões públicas, porque precisamos trabalhar e construir nossas vidas; a ideia de um cidadão total, permanentemente mobilizado politicamente, é também algo meio fantasioso.
O que importa, justamente, é encontrar formas de buscar uma nova articulação entre os movimentos autônomos e as instituições representativas que estão em crise nesse momento. E me parece que uma das formas de se chegar a isso é observar como, nesse momento, esses novos movimentos se organizam e se articulam, porque é daí que poderão vir as novas formas. Há muita coisa interessante acontecendo se acompanharmos e levarmos a sério, por exemplo, o movimento das ocupações que estão acontecendo agora: as formas de organizar, de deliberar, de mobilizar, de criar consenso ou trabalhar o conflito dentro do movimento. Ali estão os experimentos que, mais adiante — isso tanto aqui, como em Barcelona ou Roma ou Atenas ou Nova York ou Istambul —, poderão levar a novas formas, que nenhum de nós ainda tem; ninguém tem um modelo para tirar do bolso.
IHU On-Line - Quais as diferenças entre as ocupações secundaristas e as mobilizações do passado?
Adriano Pilatti – Sobretudo, essa exigência de autonomia, essa demanda por horizontalidade, por igual acesso à palavra, por essa recusa de hierarquias estabelecidas a priori, de linhas de comando verticais ou de captura desses movimentos por organizações partidárias ou de qualquer outra ordem. Isso é uma característica, inclusive, geracional. Se analisarmos toda a literatura sobre o chamado “mundo corporativo”, a grande angústia dos intelectuais que pensam pelas empresas é, justamente, encontrar formas de fixar nas empresas essas novas gerações, que não aceitam comando, que não aceitam hierarquia, que não têm a fidelidade que os antigos tinham com a companhia, que mudam de emprego toda hora.
No mundo corporativo se busca a todo o tempo maquiar o comando, a verticalização e a hierarquia, construir simulacros de autonomia e horizontalidade, porque não se pode abolir, no caso deles, as hierarquias. Isso está em toda a parte hoje e considerar isso uma infantilidade ou algo juvenil, alegando que depois esses jovens crescerão, me parece uma grande bobagem. Precisamos levar a sério os novos movimentos e as novas formas de organização, e tentar aprender com elas, sem também cair na ilusão de que o espontaneísmo, o horizontalismo radical e o assembleísmo resolverão tudo.
IHU On-Line – Um tema polêmico das últimas semanas é a aprovação da PEC 241 na Câmara dos Deputados. Muitos afirmam que ela é inconstitucional. A PEC 241 fere os princípios da Constituição? Quais?
Adriano Pilatti – A PEC 241, a rigor, é uma monstruosidade, uma excrecência, é uma forma de resolver o déficit público que, até onde se sabe, não foi adotada por nenhum outro país. Nesse sentido é uma “jabuticaba” na acepção mais negativa do termo. É uma violência, é um jogo de cartas marcadas, porque na medida em que se fixa um teto geral para o gasto do poder público, na distribuição do pouco que restar se dará uma vantagem de saída às corporações mais poderosas, em detrimento dos interesses mais difusos ou desorganizados: dificilmente os juízes perderão seus automóveis ou suas gratificações etc. por causa da PEC 241, mas alunos perderão bolsas, projetos de pesquisa importantes perderão financiamentos, hospitais perderão remédios e assim por diante. Nesse sentido é algo que atenta contra toda a arquitetura e a lógica da Constituição de 1988, embora, do ponto de vista estritamente normativo, falar em uma inconstitucionalidade geral da proposta é complicado, até mesmo porque se trata de uma Proposta de Emenda à Constituição, que tem que obedecer a certos limites, mas que também tem um amplo poder de alteração da estrutura de elaboração orçamentária que, nesses termos, não é em si cláusula pétrea — esse é um mau argumento para defender uma boa causa.
Nos seus efeitos a PEC 241 pode ferir alguns direitos fundamentais, fere o chamado princípio do não retrocesso e, em muitos casos, vai ferir o chamado princípio do mínimo existencial, mas, serão sempre, do ponto de vista técnico e formal, inconstitucionalidades que os juristas costumam chamar de oblíquas, e não diretas.
O problema maior é, justamente, o sentido dessa proposta, a violência política e social que ela representa e a questionável legitimidade daqueles que irão adotá-la: nós temos um Congresso desmoralizado, que não goza da confiança de amplos setores da sociedade brasileira, mas que está tomando decisões estruturais, propostas por um governo de ocasião — um governo, na melhor das hipóteses, acidental e, na pior das hipóteses, golpista.
IHU On-Line – Outro assunto polêmico nos últimos meses tem sido a Lava Jato. Alguns dizem que há ilegalidades na atuação da Operação e do MP. Há irregularidades jurídicas? Se há, quais são?
Adriano Pilatti – Evidentemente que há, e a crítica aos métodos da Lava Jato, à especulação em torno das eventuais motivações dos que movem essa operação, obviamente, não precisa e nem deve ser confundida com qualquer menosprezo em relação à necessidade de combate à corrupção. Mas corrupção é um mal que atinge todas as sociedades e que pode ser combatida democraticamente; é isso que a sociedade mais desenvolvida tem demonstrado.
A Operação Lava Jato tem se caracterizado por um reiterado excesso, uma reiterada desproporção nas medidas que têm sido tomadas e na forma de sua articulação e divulgação, inclusive, que marcam uma página triste do Judiciário e do MP brasileiro, se nós levamos os direitos e garantias constitucionais a sério. Há abuso na utilização das prisões preventivas e provisórias e abuso de conduções coercitivas, quando a simples intimação poderia resolver esse tipo de situação. Há ainda uma série de violações penais, e isso, de maneira indireta, quem acaba de dizer é o TRF do Rio Grande do Sul, que estabeleceu que pelo seu “ineditismo”, a Lava Jato não estaria ou não poderia ser “constrangida” a observar plenamente a legislação penal e processual penal. A rigor, nessa manifestação judicial, atestou-se e certificou-se que em grande parte essa operação está se movendo no campo da ilegalidade. Se você diz que por conta do seu “ineditismo” uma operação não pode ensejar plena aplicação da lei, você está dizendo que ela está operando à margem da lei.
IHU On-Line – A função de constranger a Lava Jato é do Supremo Tribunal Federal, mas como ele pode fazer isso considerando apenas as questões jurídicas envolvidas no caso, e não as questões políticas, como o interesse político dos envolvidos?
Adriano Pilatti – Em última instância essa função é do Supremo Tribunal Federal, que embora seja um órgão judicial, também é um órgão político que está sujeito a todas as injunções a que estão sujeitas as demais instituições inferiores do Judiciário e do MP. Mas há uma atuação expansionista, de cruzada, que não é ocultada nas manifestações processuais e extraprocessuais. Há um certo messianismo e uma autoatribuição de uma função purificadora, que faz lembrar os tenentes dos anos 20, só que agora são tenentes togados, sem armas, mas que proporcionam espetáculos patéticos.
IHU On-Line – E como o senhor reage à interpretação de que essa é uma nova geração de juízes, promotores e procuradores, que têm outro modo de agir, que inclusive quer romper com as relações de beneficiamento de políticos?
Adriano Pilatti – Ainda que se considere que há um outro modo de se colocar, isso não significa que ele seja melhor ou mais positivo. Quando uma autoridade começa a extrapolar no exercício de seus poderes, isso deve colocar todo mundo de sobreaviso, porque quem abusa dos direitos humanos de uns, amanhã poderá abusar do direito de outros, a menos que se tenha a garantia de que tudo isso vale para um determinado setor. Essa é uma satisfação que os atores envolvidos nessa operação estão carentes de dar à sociedade, porque até aqui a operação tem sido efetivamente seletiva do ponto de vista partidário. Como se diz em Direito Penal, ainda há tempo para o chamado arrependimento eficaz, ou seja, pode ser que na sua continuação, o mesmo rigor venha a ser aplicado a outros partidos e lideranças, que não aqueles que parecem ser os alvos privilegiados dessa operação.
Se o rigor for identicamente aplicado, aí sim, todos deveremos reconhecer, mas se os excessos forem igualmente praticados, todos devemos criticar, porque é preciso levar as garantias a sério independentemente de gostarmos ou não dos que são protegidos por essas garantias, porque essas são as nossas garantias. Essa relativização das garantias constitucionais em nome de um bem superior é algo que já vimos em outros momentos em que o imperador se atribuía esse papel, depois as forças armadas se atribuíram esse papel. Portanto, uma ditadura de juízes será uma ditadura ruim, se um dia isso vier a existir.
IHU On-Line – O senhor quer dizer que a Lava Jato tem uma natureza política e por isso faz uma seleção dos envolvidos? Os atores da Operação têm consciência desse processo ou atuam justamente com essa intenção?
Adriano Pilatti – Até aqui tem se operado com parcialidade, pelo menos nos resultados visíveis. Como eu disse, pode ser que o curso das operações nos obrigue a reconhecer que a lei na qual eles acreditam – que não é exatamente a lei que está escrita – vale para todo mundo. Agora, sobre as motivações deles, somente eles podem dizer.
IHU On-Line – Uns defendem que a eleição dos juízes seria necessária para democratizar o Judiciário e para justamente não acontecer esse tipo de interferência política que o senhor diz que acontece. Essa seria uma via possível para separar questões políticas de questões jurídicas na investigação de casos de corrupção, por exemplo?
Adriano Pilatti – Esse é um problema difícil, porque a eletividade, como acontece em algumas esferas da justiça americana, apresenta virtudes, mas também defeitos. Há toda uma literatura para falar dessas virtudes e defeitos. No caso brasileiro, considerando as determinadas realidades da distribuição do poder real pelos territórios, há muitos problemas na implementação imediata disso: há territórios que são controlados por milícias, por narcotráficos, que gera violência infiltrada em outras esferas do Estado brasileiro. Então, é preciso refletir sobre essa possibilidade com cautela. Eu não retiraria a possibilidade de se experimentar isso. Mas de todo modo, pela especificidade da função jurisdicional, que tem como objeto a liberdade e a segurança jurídica de cada um de nós, e em segundo lugar porque o desempenho dessa função exige uma expertise técnica que não se improvisa, teríamos que pensar uma forma de garantir a eletividade a partir de alguns critérios. Se fossemos pensar numa eletividade, teríamos que pensar uma eletividade que tenha como uma das suas condições a satisfação de certos critérios de mérito técnico, como, por exemplo, condicionar a possibilidade de alguém se candidatar à magistratura apenas após a aprovação em um concurso, de modo que a sua capacidade de atuar como autoridade judicial pela especificidade técnica que se exige tivesse sido devidamente aferida.
No meu entender seria melhor uma combinação desses dois critérios, e não somente a pura eleição com os critérios adotados para a eletividade dos demais poderes. Alguém poderá contra-argumentar que os demais poderes também são técnicos, mas o fato é que o tipo de virtude que a representação política pede e que a atividade judicial precisa exercer são diferentes. A atividade judicial não pode se tornar mais um poder estritamente político.
IHU On-Line - Qual é a doutrina jurídica que tem fundamentado a Lava Jato?
Adriano Pilatti – Essa é uma pergunta que deveria ser endereçada aos seus protagonistas, mas certamente não é o chamado garantismo constitucional nem as teorias do direito penal mínimo. O que existe é uma maximização do punitivismo e um conjunto de premissas que tem caracterizado, no debate da área, as posições que muitos chamam de direita penal: essa crença cega nas grandes penas e castigos como forma de prevenir e reprimir a criminalidade. Se há filosofia, no meu entender, é a mais obscurantista possível.
IHU On-Line – Recentemente o juiz Moro declarou que “a sociedade tem o direito de escrutinar a malversação da administração pública e de acompanhar o que o Judiciário faz em relação à criminalidade contra a administração pública”. Sobre essa questão, a Lava Jato tem feito isso em alguma medida, e a sociedade tem esse direito?
Adriano Pilatti – Em termos. Seria um bom começo se os protagonistas desse drama considerassem que até os juízes e procuradores estão submetidos ao controle do cidadão. Não demonstram pensar assim de fato, mas enfim, tomara que seja apenas um erro de apreciação. É um princípio da República que a lei deve valer para todos, mas acho que se romantiza demais o que está acontecendo. Existe uma enorme boa vontade da mídia comercial em relação a isso, quase um esforço de propaganda em cima dessa Operação. Isso, do ponto de vista comercial, é até compreensível, porque a matéria-prima da mídia é a informação, e na medida em que se distribui ou permite ou não se consegue evitar que as informações vazem a favor de um ou outro grupo, a mercadoria está sendo entregue. Me parece que a transparência das ações e a consistência das motivações de muitas das decisões que temos questionado, como essa positividade defendida pelo magistrado, não se coloca. Mais cedo ou mais tarde, eles terão muito a explicar à sociedade brasileira – e mais cedo do que se imaginava.
IHU On-Line – Muitos apostam que a esquerda vai se rearticular a partir da sua atuação junto a movimentos descentralizados, que têm pautas variadas. O que distingue a esquerda dos movimentos de massa à direita, que como o senhor comentou, estão se articulando neste momento? Parece que tanto a esquerda quanto a direita têm apoiado movimentos identitários, então, o que é o substancial e distintivo na esquerda?
Adriano Pilatti – Falar em “a esquerda”, desde sempre, é um delírio, assim como em muitos momentos e lugares, falar em “a direita”, também. Mas, certamente, tudo o que tem acontecido, como essa mistura de ataques, já era previsível para quem não estava alucinado pela “droga da conciliação”. Essa combinação de ataques de setores conservadores e reacionários, sobretudo através da mídia, contra as forças de esquerda, até um determinado momento não colou, porque não parecia corresponder aos fatos.
Uma das coisas que precisamos considerar, friamente, é que nos últimos anos esse discurso não só colou pela sua repetição massificante, mas também porque a esquerda oficial, do governo, se autodesmoralizou, fez coisas com as quais as suas bases jamais concordariam, e não só do ponto de vista da gestão do patrimônio público, mas também de certas prioridades e indiferenças em relação a direitos de comunidades e setores sociais.
Disputa
Outra coisa que precisamos ponderar é que as esquerdas brasileiras sempre foram muito mal acostumadas, porque se relacionaram sempre, nos seus conflitos e nas suas disputas com o campo de direita, com base no pressuposto de que à direita são todos ignorantes, toscos, primários – o que não deixa de ser verdade. Mas o que os últimos anos estão revelando é que existe também uma direita capaz de compreender a importância ou a incotornabilidade de certas questões que são transversais às ideologias tradicionais, e que podem ter, também, discursos e políticas para setores excluídos, dependendo da questão, como do ponto de vista dos costumes, sobretudo. Isso não é estranho e nem é novidade no resto do mundo: nas sociedades mais desenvolvidas existe uma direita que é laica e desenvolvida do ponto de vista dos costumes, que tem posições muito saudáveis em relação a questões como drogas. Aqui isso parecia não acontecer e agora está acontecendo, o que exige que as esquerdas se tornem melhores, se aperfeiçoem, se acostumem a disputar um campo que até então parecia todo seu.
Ao se autodesmoralizar e se autodestruir, a esquerda não irá acabar, mas nada será como antes, e esse é um dano que atinge também as outras forças situadas no campo da esquerda, seja as que aceitaram a força hegemônica dessa esquerda, seja as que se constituem a partir da rejeição dessa forma de fazer política, desse tipo de financiamento de campanha e dessa forma de se relacionar com o capital. O campo de esquerda como um todo foi atingido e esse também é um dano sério, ao qual a irresponsabilidade dos últimos governos de esquerda terá que prestar contas mais cedo ou mais tarde.
Dificuldades de diálogo à esquerda
É muito difícil dizer o que vai acontecer enquanto a esquerda ex-governista persistir em uma narrativa do bem contra o mal, de que acertou em tudo e de que caiu por conta das suas virtudes – eles estão plagiando o Darcy Ribeiro, que fala isso sobre o Jango. Com todo respeito, não dá para comparar Dilma e Jango; não se deve cometer essa injustiça histórica com os mortos. Mas será difícil restabelecer um diálogo na esquerda enquanto certos discursos continuarem sendo cultivados, como, por exemplo, o de que 2013 tem algo a ver com 2015. Quer dizer, isso determina cisões e abismos, em certos setores da esquerda, que são difíceis de superar. De todo modo, acredito muito na força da necessidade: é necessário que esse campo, para se reconfigurar, volte a estabelecer minimamente o diálogo, que possa levar a uma reorganização no campo da esquerda, na ampliação de novas organizações.
Nem o PT nem o PSOL parecem, pelas suas limitações, seja do ponto de vista dos seus projetos de poder, ou dos seus referentes ideológicos ultrapassados, que dizem respeito a um socialismo Belle Époque, ter algum tipo de proposta. As visões e programas desses partidos precisarão ser colocados em questão se se quiser uma nova rearticulação nesse campo. E isso terá que ser feito em relação aos movimentos, mas se a pretensão continuar sendo, como tem sido até aqui, se relacionar com os movimentos para pautá-los, organizá-los e cooptá-los a partir de cima, não vai ter jogo, simplesmente porque as novas gerações que estão impulsionando esses novos movimentos não aceitam isso. Então, quem precisa amadurecer não são os movimentos secundaristas, mas as velhas lideranças partidárias no campo da esquerda. Essa forma de se relacionar com os movimentos não cola mais e 2013 determinou uma crise insuperável nesse sentido.
IHU On-Line – Qual é a expectativa para a eleição municipal no Rio de Janeiro neste final de semana?
Adriano Pilatti – Apesar de eu não morrer de amores pelo PSOL, nem pela sua liderança personalista fluminense, me parece que a disputa a ser resolvida no domingo é uma disputa civilizatória, por assim dizer. Não há muito que ter dúvida: de um lado temos o que sabemos que temos, ou seja, uma mistura enlouquecida de fundamentalismo religioso com fisiologismo político, uma relação complicada com o submundo da política carioca fluminense nacional e, de outro lado, temos a força que acabou catalisando a força decrescente do eleitorado de esquerda.
A eleição do primeiro turno no Rio de Janeiro demonstrou que as bases da esquerda no Rio têm muito mais juízo, porque o voto útil foi fundamental para derrotar uma experiência de captura e pilhagem da cidade do Rio, que foi devastadora do ponto de vista do interesse dos pobres. Até aqui a candidatura Freixo está numa linha ascendente e a do Crivella está numa linha descendente, mas o que não sabemos é se haverá tempo para essas linhas se cruzarem. Talvez, se tivesse mais tempo de campanha, as vantagens do Freixo se ampliassem. Será uma disputa apertada, mas é uma disputa que poderá terminar positivamente como um bálsamo no campo da esquerda, que está muito maltratada por tudo que tem acontecido. Espero que tudo termine bem e que o século XXI vença o século XII, e que possamos ter uma virada de página na cidade do Rio de Janeiro.
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O momento político atual é de desilusão para os iludidos. Entrevista especial com Adriano Pilatti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU