27 Outubro 2016
Uma onda antipolítica ambígua e contraditória varre o Brasil e nos obriga a refletir de modo escrupuloso acerca da ação política em nosso país e no contexto de um mundo globalizado. Essa crise da representação política, que se delineia desde sua conformação na era moderna, tem raízes na Revolução Francesa, em 1789, em Paris.
“No Brasil nos últimos anos uma série de fatores têm se agudizado, seja numa vertente conservadora, reacionária, seja numa outra vertente insurgente, desobediente e emancipatória que critica legitimamente e de forma certeira e necessária a captura da representação pelo poder econômico e midiático”. A reflexão é de Adriano Pillati em sua conferência na manhã de 26-10-2016, intitulada Ação política e sociedade de controle. Impasses e prospectivas. A atividade é parte da programação do V Colóquio Internacional IHU e VII Colóquio Cátedra Unesco – Unisinos de Direitos Humanos e Violência, Governo e Governança, este ano intitulado Os direitos humanos em face dos dispositivos de vigilância e controle da cidadania.
De acordo com Pilatti, há um sequestro da representação de tal forma a separar o resultado do processo político, do poder constituinte. “Temos um recrudescimento das esferas de controle e vigilância, sobretudo sobre os movimentos de caráter insurgente e desobediente. Tudo isso torna o tema do contexto em que vivemos esse crescimento exponencial dos meios, recursos e estratégias de vigilância e controle podem afetar a ação política. E isso ocorre, via de regra, negativamente”.
Tanto a vigilância quanto o controle afetam a atividade política, mas atingem sobretudo as esferas e formas insurgentes, rebeldes de contestação da ordem política e econômica. Aí revelam seu potencial negativo de modo exacerbado. No Brasil, seja como for a forma como entendamos a ação política, uma boa maneira de equacionar o significado da terminologia ação política em contraste com as estratégias de vigilância e controle é problematizar suas diversas facetas enquanto tal. “Assim é preciso recuperar Rancière em seu ensaio sobre o desentendimento, no qual ele diferencia a administração da esfera pública (polícia como administração e gestão das atividades da polis) de uma outra dimensão política, que ele entende como aquela baseada no dissenso fundamental, numa sociedade fragmentada em classes, estamentos”, acentua Pilatti.
A política propriamente dita, para Rancière, começa quando parte de determinada sociedade se recusa a ingressar nesse modelo e a não tomar parte na riqueza social e deliberações, se afirmando como um todo que aspira a autonomia e o controle da riqueza que produz, ou seja, o autogoverno. A política, portanto, se consolida, ao contrário da “polícia” de mera gestão do estabelecido, quando emerge o dissenso fundamental que vem de baixo, das camadas exploradas e conduzidas. “É justamente aí que os dispositivos de controle produzem seus maiores estragos.”
Pilatti: há um recrudescimento da vigilância e controle
Nos últimos anos, observa Pilatti, tomando como referência 1999 em Seatle, 2001 em Genova, o ciclo de revoltas em torno do Mediterrâneo Asiático Europeu, que eclode em 2011 chegando em 2013 ao Brasil, temos testemunhado justamente o desenvolvimento de renovadas estratégias de mobilização e ação política no sentido forte do termo de Rancière, da contestação da polis tal como ela é. Isso é o que os intelectuais italianos classificam como política marcada pela realização de tumultos por parte de comunidades exploradas. Nessa temática a referência é Fiorentini, no manifesto escrito em conjunto com outros intelectuais, no qual procuram explicar a referência que está posta na fronteira entre o pré-moderno e a Renascença italiana.
Pilatti referiu-se, também, ao Comentário da Segunda Década de Tito Lívio, obra de Nicolau Maquiavel, na qual fala acerca da grandeza de Roma, e o faz com um elogio da constituição mista. Os tumultos políticos, causados pelo uso homeopático da violência, teriam produzido boas leis e instituições, diz Maquiavel. É da atuação tumultuária das pessoas “de baixo” que nascem as boas leis que favorecem a liberdade de todos. Numa concepção da política em que a paixão e o desejo estão muito presentes, Maquiavel no capítulo 5, quando fala quem deve ser o guardião da liberdade e da constituição, diz que a garantia da liberdade como demonstra a história de Roma só pode ser devidamente depositada nas mãos dos pequenos, daqueles que fazem parte da “ralé”, porque o desejo desta é se liberar, ao passo que o desejo dos grandes é oprimir. “Isso é uma perspectiva diferente na política da época, permeada pelo desejo, ao contrário de pensá-la como anarquia e perigo. Essa pode ser a fonte das instituições que melhor asseguram a liberdade”.
O tumulto é aquela forma de conflito que é melhor do que a miragem insurrecionada, e sabe dar conta das novas formas políticas do movimento. Não é o conflito destituinte, mas antes um conflito no qual prevalece um impulso constituinte. Pilatti menciona o tumulto a instituições não estatais, relação coextensiva e recursiva. “O tumulto une, e não dilacera os movimentos. Ele não tem forma, mas produz formas diferentes. Não é mensurado pelo poder de violência, mas não se curva ao imperativo moral da não violência, como a “ciranda” de movimentos políticos domesticados.
Reportando-se aos movimentos de contestação brasileiros de 2013, Pilatti frisou que “o junho de 2013 no Rio de Janeiro durou seis meses”. Então se reuniram uma série de movimentos que já gravitavam na cidade, como as estratégias de ocupação, passe livre, afirmação de direitos LGBT, minorias religiosas de orientação afrobrasileira, em uma mistura enorme de conformações. Tratou-se de algo inesperado e imprevisto, mas por outro lado aguardado, pois era uma espécie de reunião, condensação de uma série de movimentos em caráter molecular.
Pilatti mencionou, ainda, Paolo Virno, pensador que fala acerca das características fenomênicas sobre a ação política tumultuária: explosão com forte grau de imprevisibilidade, não deixando traços visíveis atrás de si, mesmo sendo um divisor de águas. Aí, vai abarcar a dimensão do imprevisto, do extraordinário, brincando com as categorias reacionárias do pensamento schmittiano, ao destacar que o tumulto é também o equivalente ao milagre na esfera política, porque interrompe e contradiz processos automáticos já consolidados, suspendendo leis ordinárias por ter a natureza de ação coletiva supreendente. Virno escreve que os tumultos colocam a possibilidade de decretação do estado de exceção.
Para esse pensador, os tumultos de rua são a grande ação política. O resto são danças de rua, mesquinharia e histórias contadas por um louco. “É uma perspectiva para pensar o poder fora de ideologias e da hierarquização. O que proclamam os tumultos de rua é, que depois deles, pode se obedecer ou seguir obedecendo, mas isso nunca mais será um pacto pressuposto de aceitação ao modo hobbesiano”, destacou Pilatti.
Sem os tumultos de 2013 não haveria terreno sobre o qual erigir as ocupações que hoje eclodem Brasil a fora, opina Pilatti. Evocando novamente Virno, o pesquisador da PUC-Rio chama a atenção para a gênese multitudinária dos tumultos, ou seja, da multidão. E não se trata apenas de trocar a classe operária pela multidão, mas por outra configuração da produção e do trabalho nos dias de hoje.
Tumultos são a forma de ação política apropriada para essa nova subjetividade plural, múltipla e diversificada. Virno ilustra essa passagem com o De Cive de Hobbes, no qual formula que os cidadãos, quando se rebelam contra o Estado, se configuram na multidão contra o Estado. “O povo é uma projeção da figura do soberano. A multidão não: ela não estipula pactos, se inclina a formas de democracia não representativa, daí a conexão multitudunária e os tumultos. A desobediência radical é a forma básica de resistência.”
O laboratório da repressão que vivemos hoje tem sua matriz em 2013. “Naquele momento desqualificavam os insurgentes como fascistas, niilistas ou vândalos. Tudo isso começou naquele ano com o silêncio e a cumplicidade da esquerda oficial, que perseguiu os insurgentes com o apoio da mídia cooptada.”
Pilatti recordou também que o governo votou a “toque de caixa” em 2013 a lei que estabeleceu a delação premiada, expediente preponderante para abrir espaço justamente para retirar o PT do poder em 2016.
“A esquerda oficial lê 2013 como a Globonews, porque nunca foi para a rua. No meu caso, ter participado daquele momento foi uma epifania, porque mesmo com todas suas contradições, não havia uma antipolítica no sentido niilista, mas uma crítica feroz à representação, e de vida em termos muitos concretos das pessoas pobres que queriam ter a sua palavra ouvida”.
O que os meninos de 2013 propunham era uma outra política. Nas assembleias de rua todos tinham o direito a palavra, inclusive os mendigos e os dependentes de crack. “Quem quisesse se expressar poderia fazê-lo.” E hoje nas ocupações das escolas os estudantes não querem ser capturados por quem quer que seja, mas intentam exercer sua autonomia e liberdade.
Num debate repleto de perguntas e tensionamentos instigantes com a plateia, Pilatti ressaltou que “é preciso refundar a política, e a esquerda deve praticar o exercício da humildade. É fundamental pensar outras formas de relação entre representação e partido, que fujam do modelo mafioso de política e organização do poder.” E acrescentou: “É preciso explorar novas formas de articulação e representação política insurgente. Temos que buscar escrupulosamente, o que falta na esquerda oficial, uma outra forma de representação e os movimentos respeitando a autonomia destes.”
A esse quadro é necessário compreender que a geração Z não aceita comando, se contrapõe a autoridades vazias e exige ser ouvida. São profissionais qualificados e bastante jovens, que não se fixam a uma empresa e não suportam hierarquia e comandos ocos. “Os velhos precisam aprender com essa garotada, que agora protagoniza ocupações em escolas públicas federais.”
Adriano Pilatti é graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Ciências Jurídicas pela PUC-Rio e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - Iuperj, com pós-doutorado em Direito Público Romano pela Universidade de Roma I - La Sapienza. Foi assessor parlamentar da Câmara dos Deputados junto à Assembleia Nacional Constituinte de 1988. Traduziu o livro Poder Constituinte - Ensaio sobre as Alternativas da Modernidade, de Antonio Negri (Rio de Janeiro: DP&A, 2002). É autor do livro A Constituinte de 1987-1988 - Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008).
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A desobediência radical é a forma básica de resistência, afirma Adriano Pilatti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU