19 Outubro 2016
"Olhar para o mundo social a partir da perspectiva de gênero faz com que vejamos e sintamos como insuportável toda forma de discriminação e de desigualdade, daquela que permanece no uso ordinário da língua àquela que se experimenta no mundo do trabalho e na força dos estereótipos."
A opinião é de Anna Loretoni, professora de Filosofia Política na Scuola Superiore Sant'Anna, em Pisa, e de Nadia Urbinati, professora de Teoria Política na Columbia University, em Nova York. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 18-10-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O "gênero" é o traço, nem tão subterrâneo, que mantém unidos muitos lugares da opinião, cultural e política, aparentemente distantes entre si. Ele está definitivamente no centro da campanha eleitoral estadunidense, onde as ofensivas e às vezes violentas externações do candidato republicano mudaram não simplesmente o senso do desgosto, mas também a determinação para reagir.
O gênero importa. Ele também importa para olhar a política estadunidense do lado democrata: porque há a possibilidade concreta de que uma mulher se torne comandante-em-chefe da primeira superpotência. Por um lado, as mulheres são tratadas como "pussycats" a serem pegadas e usadas, de acordo com uma visão de mundo que nos leva muito para trás no tempo, para os clichês insuportáveis dos mad men que, como déspotas, tocam, agridem, usam e promovem.
Por outro lado, cada vez mais mulheres, como Michelle Obama, sentem a urgência de se tornarem políticas para restabelecer a ordem da decência e da liberdade, explicando, da tribuna da campanha de Hillary Clinton, que não é admissível que a vulnerabilidade se torne arma de poder nas mãos de um homem e que é ofensivo para os homens que um deles os coloque todos juntos no modelo das "conversas de vestiário". "Enough is enough", disse Michelle Obama.
Por que o gênero produz tanta confusão? Por que, depois de décadas de mais ou menos eficaz ajustamento dos sistemas políticos e jurídicos à prática e à cultura dos direitos civis, sente-se em todos os ambientes, político e religioso, cultural e de opinião, o desconforto diante da força que a cultura de gênero teve ao transformar os códigos comportamentais e, principalmente, ao contestar a divisão dos papéis de acordo com a leitura masculina do público e do privado?
Falando da Geórgia há algumas semanas, o Papa Francisco assumiu as preocupações dos cristãos tradicionalistas que animam todos os anos o Family Day. Ele também pôs em causa a "teoria do gender", uma "colonização ideológica" que tenta redefinir os contornos naturais do casamento entre homem e mulher, subvertendo a ordem das coisas.
Porém, o gênero não é uma "teoria", não é uma arma polêmica para usar contra; em vez disso, é uma cultura dos direitos civis que coloca no primeiro plano a dignidade da pessoa, na sua especificidade, a soberania da decisão individual e da escolha. É uma cultura da maturidade e da responsabilidade, não da irresponsabilidade lúdica. O gênero põe a dura prova as culturas sedimentadas de papéis e valores, não mobiliza o mundo das mulheres contra o dos homens. Critica hábitos mentais, papéis institucionalizados e linguagens, e convida mulheres e homens a lê-los como indicadores de um mundo hierárquico que ofende e desvaloriza uma parte da humanidade, portanto, de toda a humanidade.
É necessária uma cultura de gênero, até porque o apelo aos direitos e à imparcialidade da justiça não teve, sozinho, a força para captar as especificidades das condições de dominação e de violência, de chamar a atenção para a inversão da diversidade sexual em subordinação. O gênero permite recuperar a dignidade da mulher como pessoa, sem ter que zerar a sua especificidade e sem confinar a experiência feminina ao espaço do privado.
Essa categoria nos convida a pensar que o oposto do truculento mundo de vestiário de Trump não é a devoção sacrificial da mulher aos papéis domésticos. Aspirar à Casa Branca é um dos caminhos que se ramificam a partir da cultura do gênero; uma, não a única. É a pluralidade dos percursos de vida, a mesma pluralidade que cada pessoa reivindica, a perspectiva que a cultura dos direitos contribuiu para consolidar.
Olhar para o mundo social a partir da perspectiva do gênero faz com que vejamos e sintamos como insuportável toda forma de discriminação e de desigualdade, daquela que permanece no uso ordinário da língua àquela que se experimenta no mundo do trabalho e na força dos estereótipos. Mesmo quando o direito adquiriu cidadania plena em todas as dobras da vida social.
A cultura do gênero pode desempenhar esse papel crítico, porque se funda no princípio da dignidade da mulher individual e do homem individual. A partir dessa raiz ganharam força as palavras "enough is enough" proferidas por Michelle Obama: não é possível tolerar narrativas de subordinação, imagens de mulheres fracas que o homem cria. A força da cultura do gênero é provada aqui.
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Para que serve a cultura do gênero? Artigo de Anna Loretoni e Nadia Urbinati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU