29 Agosto 2016
Por ocasião do processo de impeachment da presidenta Dilma, Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos, faz memória de D. Helder Camara e D. Luciano Mendes de Almeida, cuja vida e morte são recordadas no dia de hoje, 27 de agosto.
Dom Luciano (à esquerda) e Dom Hélder (Foto: Blog do Liberato)
Eis o artigo.
Quando começa a fase definitiva de julgamento do que está se chamando de impeachment da presidenta Dilma, a lembrança de uma coincidência - duas mortes de bispos da Igreja - ocorrendo ambas no dia 27 de agosto, a de Dom Helder em 1999 e a de Dom Luciano, 7 anos depois, oportuniza serem lembradas essas duas personalidades brasileiras de grande presença pastoral e política no Brasil, contrária à prolongada ditadura imposta ao país em 1964, ainda hoje inspirando grande parte das iniciativas golpistas em andamento.
Elas podem servir de orientação segura para se comparar as razões motivadoras do golpe de 1964, com as de 2016. As primeiras necessitavam desesperadamente de legitimação interna e externa, suficiente para encobrir, de modo o mais convincente possível, o seu real propósito de impedir as chamadas reformas de base, então apoiadas pelo presidente Jango, ameaçarem os privilégios históricos aqui presentes “legalmente assegurados” aos latifúndios, aos bancos, aos grandes grupos econômicos, ao capital enfim.
De ouvido atento e submisso às “sugestões” da Embaixada Americana, a direção do golpe se vestiu, então, de combate ao comunismo, estratégia na qual essa nunca deixou de se especializar para entrar onde pretenda entrar e impor o que pretenda impor.
Agora, apesar de os dois últimos períodos de governo, a frente dos quais esteve a presidenta Dilma, ter adotado um receituário neoliberal de administração, servindo de exemplo para isso a escolha da ministra da Agricultura e o penúltimo ministro da Fazenda de seu segundo mandato, isso não foi considerado suficiente por aqueles grupos de pressão econômico-política, alarmados com a crise econômica internacional que, primeiro em 1998, e depois em 2008, vem tirando o seu sono.
O pretexto do combate ao comunismo e às reformas de base de 1964 foi substituído então pela corrupção política, com a condição de essa, por qualquer dos Poderes Públicos ou de mídia, só acentuar a gravidade da falta de decoro, ética, honestidade e prática de crime a quem se dispusesse a não apoiar o golpe, pertencesse a partido da base aliada do governo ou não. Nem importa o fato de a própria presidenta ser inocente, também, ou não. Ela tem de ser deposta de qualquer jeito, mesmo que para isso seja necessário acelerar-se e divulgar-se tudo quanto a operação policial lava jato índice bem ou mal quem é contrário ao golpe e retarde ou esconda tudo quanto possa aparecer em desfavor de gente favorável ao golpe, inclusive do meio empresarial como acontece com a operação zelotes.
Na data em que se recorda a morte daqueles dois bispos, a realidade brasileira atual convida sejam conhecidos e comparados os seus posicionamentos diante de fatos como os que estamos vivendo hoje. Dom Helder foi um defensor arrojado, corajoso, muito perspicaz e perseverante na defesa de todos os direitos humanos do povo pobre. Ao lado dele empreendeu ferrenha oposição à ditadura militar, seus méritos reconhecidos internacionalmente por muitos prêmios e comendas.
Um dos fundadores da CNBB, presença ativa e muito influente na igreja católica, no Concilio Ecumênico Vaticano II, na década de 60 do século passado, nas Conferências episcopais latino-americanas de Medellin (1968) e Puebla (1979), por exemplo. Entusiasta da teologia da libertação, podendo ser considerado um dos seus inspiradores, foi quatro vezes indicado ao prêmio Nobel da Paz. Em uma delas, Emilio Garrastazu Médici, um dos presidentes brasileiros daquele tempo, se empenhou pessoalmente para que o “bispo vermelho”, então assim apelidado por quem pretendia ridiculariza-lo, não fosse escolhido.
Dom Luciano Mendes de Almeida, entre muitas outras missões pastorais, foi bispo auxiliar de Dom Paulo Evaristo Arns, na época em que a arquidiocese de São Paulo era uma das poucas resistências que o regime militar não conseguia dobrar, a catedral da Sé abrindo-se até para atos religiosos-políticos de denúncia das arbitrariedades e dos crimes praticados pela ditadura contra os seus opositores. Foi secretário geral da CNBB, de 1979 A 1987 e seu presidente de 1987 a 1995; vice-presidente do Conselho Episcopal latino-americano, de 1995 a 1998 e arcebispo de Mariana (MG).
Com uma folha de serviços prestados ao país como a desses dois bispos, vale a pena pensar-se o que diriam eles às/aos senadoras/es brasileiras/os, atualmente votando a possibilidade de depor a presidenta Dilma definitivamente. Quem lê o que escreveram logo surpreende algumas características comuns: simplicidade, fé, esperança e muita preocupação amorosa, pastoral, com o uso da palavra, do testemunho de vida, de forma compreensível a todas/os.
No calor indignado que está aparecendo nos debates ali travados, Dom Helder, entre sério e irônico, poderia lembrar a diferença entre “pusilânime” e “magnânimo”, bem como o quanto pode ser moralmente questionável o mérito de quem “recebe”, o que recebe e porque recebe para votar como vai votar...:
“Pusilânime é quem tem a alma pequena e mesquinha; magnânimo é quem tem alma grande, profunda e larga. Em todos os pensamentos, desejos e atos, esforce-se por ser, de verdade, magnânimo; risque de seu dicionário expressões como “inimigo”, “inimizade”, “ódio”, “ressentimento”, “rancor”... Um último alerta: ai de quem acredita no próprio valor; de quem se julga maior ou melhor do que ninguém. É possível provar que ninguém é tão pobre como quem mais recebeu. Se recebeu, é sinal de que não tinha. Se recebeu, é prova de que não tem por força própria e valor pessoal. Se recebeu, assume a obrigação de pensar nos outros e servir. Servir ao máximo.” (Do livro “O deserto é fértil”, Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1976, pág. 21).
Nesses sites que reúnem pensamentos de pessoas famosas, o “Farmácia do pensamento” registra uma frase de Dom Luciano que, como a da advertência de Dom Helder, resume toda a possibilidade de a votação ora em curso no Senado ser julgada pelas/os senadoras/es e pelo povo não só quanto a sua legalidade como a sua legitimidade: “O voto é o meio de encontrarmos saídas dignas para o país.”
O voto lembrado aí por Dom Luciano, conhecido o seu testemunho de vida, será o das/os 81 senadoras/es do Brasil, ou o dos 53 milhões outorgados à presidenta? Não é só essa descomunal diferença quantitativa que prova a inconstitucionalidade, a ilegalidade e a ilegitimidade do atual processo do assim chamado impeachment. É também a descomunal diferença qualitativa ético-política existente entre ela e quem está votando contra ela.
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27 de agosto: boa hora para recordar Helder Câmara e Luciano Mendes de Almeida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU