12 Agosto 2016
Maior parceria público-privada (PPP) do país, a criação do Porto Maravilha, em 2009, marcou não só o início da transformação da zona portuária no Rio de Janeiro, mas também o fim de uma proposta de transformação da região com foco na participação social e moradia popular. Dona de mais de 60% dos terrenos na região com potencial de construção, a União era uma peça-chave para a reestruturação urbana da área, e, durante seis anos, o Ministério das Cidades liderou o grupo de trabalho dedicado ao tema. No entanto, mesmo com pareceres técnicos e jurídicos favoráveis, tramitação avançada nos governos municipal, estadual e federal, a proposta de criação de um consórcio público para a reabilitação da área foi descartada para surpresa de quase todos envolvidos no processo.
A reportagem é de Adriano Belisário, publicada por Agência Pública, 09-08-2016.
Em vez dela, foi adotada a atual proposta, cujas principais diretrizes foram elaboradas e executadas pela OAS, Odebrecht e Carioca Christiani Nielsen. São 5 milhões de metros quadrados que englobam três bairros inteiros – Santo Cristo, Gamboa e Saúde – e incluem outros quatro. As empreiteiras se revezam em consórcios naquela área. Além das duas fases do Porto Maravilha, que juntas receberam investimentos de mais de R$ 10 bilhões, as mesmas empresas ganharam outros editais para atuar na região, como as obras do programa Morar Carioca (R$ 32 milhões) e a PPP para operar o veículo leve sobre trilhos, o VLT (R$ 1,1 bilhão).
Após a decisão de 2009, o Ministério das Cidades – criado no início do governo Lula com a missão de impulsionar políticas de desenvolvimento urbano e habitação com inclusão social – foi afastado das negociações. Aos poucos o desenho atual do porto foi tomando conta. A Pública reuniu relatos de ex-funcionários envolvidos nas negociações para contar como aconteceu o triste fim de um dos principais projetos do ministério.
O retrato da situação fundiária antes do Porto Maravilha mostra a predominância de imóveis públicos na região. Apenas 25% da área eram terrenos privados. Estado e município detinham aproximadamente 6% cada um. Todo o restante pertencia à União. O mapa e os dados foram compilados por Mariana Werneck, cuja pesquisa “Porto Maravilha: agentes, coalizões de poder e neoliberalização no Rio de Janeiro”, será publicada em setembro pelo Observatório de Metrópoles
Boa parte da zona portuária é resultado do aterro para alinhamento do cais, realizado no início do século passado (Imagem: Cdurp)
Delimitada no mapa pela linha branca, a área do Porto Maravilha equivale a quase um terço do centro da cidade (Imagem: Mariana Werneck, a partir de dados da Cdurp/IPP)
Quem visita a zona portuária do Rio de Janeiro logo percebe a quantidade expressiva de grandes galpões e fábricas desativadas. Por outro lado, a região do Porto Maravilha ainda tinha a menor densidade habitacional do município em 2010.
A área do Porto Maravilha equivale a quase um terço do centro da cidade. De acordo com o Censo de 2010, em sua imensa maioria os habitantes da zona portuária são de baixa renda: dos 10.098 domicílios da região, apenas 611 possuem renda maior que três salários mínimos. Entre as favelas, a mais antiga do Brasil, o morro da Providência, reúne a maior parte dos moradores, concentrando 1.237 domicílios.
Com tanto terreno disponível em uma área central e tão poucos habitantes, aumentar o número de moradias sempre foi uma das prioridades das políticas públicas de urbanização para o local. O objetivo era reverter o padrão de ocupação atual: intenso de dia, mas quase deserto à noite e nos fins de semana. Pelo menos desde os anos 1980, há propostas em debate. Já naquela época, a Associação Comercial do Rio de Janeiro apresentou um projeto de revitalização e foi criado o projeto Sagas para garantir o uso residencial, bem como preservar o patrimônio arquitetônico de bairros do local.
Conforme levantamento feito por Mariana Werneck, apenas 25% da área da região eram terrenos privados. Estado e município detinham aproximadamente 6% cada um. Todo o restante pertencia à União. Por isso, com a criação do Ministério das Cidades em 2003, abriu-se um novo capítulo dessa história. O novo órgão liderou, no governo federal, a busca de soluções para o porto do Rio, em especial por meio do Programa de Reabilitação de Áreas Centrais da Secretária Nacional de Programas Urbanos, que previa a reabilitação através da moradia no centro das cidades brasileiras. Surgiu ali a proposta de criação de um consórcio público, composto pelos três níveis de governo, responsável por conduzir a reabilitação da região. A prioridade eram a participação e a permanência da população local, além da produção de habitações de interesse social nos imóveis públicos edificados.
“Foi feita uma série de contratos com especialistas para a modelagem de governança e jurídica. Investiu-se cerca de 300 mil reais em consultorias. Em agosto de 2009, estávamos no final do processo”, lembra Renato Balbim, geógrafo e ex-coordenador do Programa de Reabilitação de Áreas Centrais do Ministério das Cidades. Na época, a zona portuária do Rio de Janeiro era a principal aposta da pasta para moradias em áreas centrais. Representada por Lula, o ex-governador fluminense Sérgio Cabral e o prefeito Eduardo Paes, a aliança entre PT e PMDB propiciou um alinhamento político entre os três níveis de governo, dando novo fôlego ao antigo plano de reabilitação do porto.
No dia 23 de julho de 2009, a primeira fase do Porto Maravilha foi lançada. Houve cerimônia pública e presença de autoridades. O então presidente Lula garantiu: “Não faltarão recursos para concluirmos essas obras”.
“Todas as etapas de redação evalidação das minutas já tinham sido superadas nos três níveis de governo. Estava tudo muito bem estruturado, inclusive politicamente, para fazer a assinatura do documento que oficializaria a minuta do consórcio [público], a ser aprovada posteriormente nas câmaras legislativas dos três entes”, diz Balbim. “Faltava apenas a última reunião para bater o martelo sobre a concordância política final”, recorda.
A tal reunião ocorreu semanas depois na Casa Civil, em Brasília, e contou com a presença de Eduardo Paes para, enfim, formalizar a proposta. Balbim resume a surpresa dos técnicos do ministério ouvidos pela Pública: “Entramos em uma reunião para dar o passo final, tomar decisões de encaminhamentos, e já era um clima de fim de feira. Ela se encerrou sem definições e depois disto a coisa morreu”.
“Apesar de até então tudo indicar que o consórcio público tinha total aprovação dos três níveis, simplesmente de um dia pro outro percebemos que não iria mais se levar adiante essa modelagem. Foi uma decisão cuja explicação escapa à área técnica”, lamenta Balbim.
Lula e Eduardo Paes na cerimônia de inauguração da primeira fase do Porto Maravilha, em 2010 (Foto: Fábio Pozzebom/Agência Brasil)
É verdade. Por meio da Lei de Acesso à Informação, a Pública obteve um parecer técnico da própria Casa Civil da Presidência sobre o assunto. Datado de 21 de agosto de 2009, o documento recomenda a adoção da modelagem do consórcio público, que havia sido desenvolvida conjuntamente, em longas reuniões, pelo Ministério das Cidades, Ministério do Planejamento, governo do estado do Rio de Janeiro, prefeitura do Rio de Janeiro, BNDES e Caixa Econômica Federal. “Entendemos, salvo melhor juízo, que a figura jurídica do Consórcio Público é uma excelente alternativa para viabilizar os planos de revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro”, conclui no documento Leonardo Lima Chagas, assessor técnico da Subchefia de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Presidência da República. Não foi o que aconteceu.
O consórcio público já previa o mecanismo de Operação Urbana Consorciada, presente no Estatuto da Cidade. Ele é viabilizado mediante a venda de Certificados do Potencial Adicional de Construção, os Cepacs, que autorizam a construção de andares acima do limite definido pelo zoneamento da cidade. Eles funcionam como um “terreno virtual” que pode ser vendido na bolsa de valores. No caso do Porto Maravilha, os Cepacs quase dobraram a área edificável – para cima. Até agora, metade dos títulos foi negociada no mercado, e cerca de 10% foram de fato construídos.
Porto Maravilha de hoje, proposto pelas empreiteiras, segue algumas recomendações do Ministério das Cidades, como a adoção do modelo baseado na comercialização de Cepacs. Mas a diferença é gritante, sobretudo no papel do governo federal na administração: de acordo com a proposta das empresas, toda negociação para as intervenções na área se daria com os poderes locais. A União apenas abriria mão dos terrenos para a incorporação imobiliária.
De fato, com a PPP do Porto Maravilha firmada com a prefeitura, as empreiteiras assumiram serviços básicos que são de responsabilidade do município, como a manutenção e a limpeza dos espaços públicos, a sinalização de vias, a iluminação. “Se você quer resolver qualquer coisa, você se dirige ao Porto Novo”, afirma Maria de Fátima Lima em depoimento ao “100”, projeto da Pública sobre remoções no “Rio olímpico”. “Tudo aqui na região portuária é com o Porto Novo: eles que cortam, mandam plantar, mandam iluminar”, critica a ex-moradora do morro da Providência. No caso da coleta de lixo, o consórcio Porto Novo contratou para o serviço a própria empresa pública de limpeza urbana do município (Comlurb) pelo valor de R$ 19 milhões.
Após a operação no porto, a prefeitura carioca pretende agora expandir o modelo de PPP em grandes operações urbanas para outras regiões. Já há planos para replicar o modelo na zona oeste, em uma área que corresponde a quase um quarto do Rio de Janeiro. O Porto Maravilha virou vitrine.
O Museu do Amanhã, um dos principais símbolos do projeto Porto Maravilha (Foto: Bruno Bartholini)
Já no abandonado consórcio público, o governo federal teria ingerência direta no projeto, ao lado dos governos do estado e do município. E iria garantir a destinação de parte dos terrenos públicos para fins sociais e habitação popular. A proposta do Consórcio Público da Área Portuária do Rio de Janeiro (Cparj) previa o financiamento, por meio da “captação da valorização imobiliária”, dos terrenos públicos, além de outras intervenções urbanas. Na época, ainda não havia estimativa de valores exatos a serem investidos.
À frente da Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades de 2003 a 2007, Raquel Rolnik lembra: “A ideia seria ter uma empresa pública gerida pelos três níveis de governo que pudesse recepcionar o conjunto de terras públicas. Também começamos a desenvolver um plano de aproveitamento dos terrenos para habitação”. A ideia era que a reabilitação se desse por fases, com mecanismos de transparência e participação da população. A expectativa era lançar o projeto oficialmente durante o Fórum Urbano Mundial de 2010, que ocorreu na zona portuária.
O primeiro grande passo do grupo de trabalho liderado pelo Ministério das Cidades foi um termo de cooperação que, assinado em 24 de março de 2006, selava a parceria entre os três níveis de governo para elaborar o projeto. “Passamos três anos negociando isto a duras penas. O Cesar Maia não dialogava e estava muito isolado, brigava com o governo do estado e com o governo federal. O culminar disso tudo foi o dia da assinatura do termo. Na véspera, eu fico sabendo que o Cesar Maia foi para Nicarágua. Então, eu decido ir, representando a prefeitura”, recorda Alfredo Sirkis, então secretário municipal de Habitação da prefeitura de Cesar Maia (PMDB). Porém, na manhã da cerimônia, ao abrir o Diário Oficial, ele descobriu ter sido exonerado. A exoneração, que estava combinada, foi cerca de dez dias antes da data acertada. “Eu achei que ia ser um vexame: no dia da assinatura, vir o presidente da República, uma porrada de ministros e nem o prefeito nem ninguém [do município] aparecer. Aí eu fui e discursei mesmo assim, como se estivesse no meu último dia como secretário”, lembra Sirkis.
Foi neste ano também que nasceu outro projeto, que acabaria vitorioso: incluir definitivamente as construtoras na direção do negócio. Em 8 de agosto de 2006, quatro meses depois da assinatura do termo, Cesar Maia surpreendeu os funcionários do governo federal ao publicar um Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI) para que empresas privadas efetuassem “os estudos de modelagem necessários para a viabilização de uma concessão ou parceria público-privada” para a região. O único a manifestar interesse em elaborar propostas para a área foi o consórcio Rio Mar e Vila, liderado pela OAS e composto por Odebrecht, Carioca Christiani-Nielsen e pela Andrade Gutierrez, que depois saiu do grupo.
Ao longo de 2007, as empreiteiras começaram a desenhar seus planos para o porto, elaborando estudos e contratando consultores internacionais e locais, como o próprio Sirkis. Constituíram um grupo de trabalho no município, cujas reuniões contavam com a presença dos representantes das empresas. As propostas, alinhadas com os objetivos das empreiteiras, foram reunidas em uma página do Diário Oficial em 2 de janeiro de 2008. Mas o projeto só foi implementado pela atual administração, de Eduardo Paes.
Depois de ter deixado o Ministério das Cidades, Raquel Rolnik prestou consultoria ao BNDES em reabilitação de áreas centrais, entre 2007 e 2008. “Em 2008, o Élvio Gaspar [então diretor do BNDES] me liga e pede para eu ir na OAS para o [então presidente da empresa] Léo Pinheiro mostrar o que eles estão fazendo sobre o porto”, lembra a urbanista. “Ao chegar lá, eu vejo o projeto urbanístico do Porto Maravilha quase todo pronto: já tinha um plano, os projetos de leis todos montados etc. Ele estava extremamente interessado, pois sabia que isto podia se transformar em um modelo e, a partir dali, abrir um mercado totalmente novo para as empreiteiras, que é o das PPPs de desenvolvimento urbano. Em novembro do ano seguinte, o Eduardo Paes pega aquele pacote, manda para Câmara dos Vereadores no final do ano e aprova tudo”, afirma Raquel, que foi ainda relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia, em que denunciou as tentativas de remoção em massa na zona portuária.
Atual presidente da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto (Cdurp), Alberto Silva confirmou à reportagem que, após a sua eleição em 2008, Eduardo Paes foi procurado pelo consórcio de empreiteiras interessadas nos terrenos públicos da zona portuária. “Boa parte da modelagem institucional [atual] é resultado dessa PMI. A aprovação do pacote institucional é resultado desse processo: o consórcio entrega todo este material, a prefeitura absorve e transforma no pacote legal que cria a Cdurp, a Operação Urbana, a regulamentação das leis de PPP do município, o pacote de incentivo fiscal”, garante.
Quatro meses depois de ter tomado posse, em abril de 2009, Eduardo Paes convidou as empreiteiras para a mesa de negociação com o Ministério das Cidades. Foi na ocasião que Renato Balbim tomou contato com o projeto das empresas, que estava sendo desenvolvido paralelamente ao do consórcio público. Apesar de não se recordar da data exata, Balbim lembra a “profunda polarização” do encontro. Após a apresentação da proposta elaborada pelas empresas e daquela do consórcio público, “ficou claro que as posições eram diametralmente opostas”, diz. Segundo ele, o objetivo do governo federal era manter o controle dos principais projetos e decisões urbanísticas com os entes públicos, e não com as empresas privadas. Aconteceu o contrário.
“A ideia deles [representantes das empreiteiras] era passar as terras para a prefeitura e as empreiteiras fazerem a incorporação imobiliária. Não inovava em nada: é um modelo de incorporação simplista, que traz segurança total pro empreendedor. Não era uma proposta de reabilitação de área, que tem outros mecanismos e prioridades, como a participação social, permanência da população, valorização do patrimônio histórico, além de uma modelagem de negócios que convertia parte das melhorias urbanas e dos ganhos de capital para o conjunto da cidade”, compara Balbim.
Presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil, Sérgio Magalhães também critica o modelo adotado no Porto Maravilha por não apresentar nenhuma novidade do ponto de vista urbanístico. Segundo ele, que acompanha as propostas para a região desde os anos 1980, a operação urbana atual não privilegia o espaço público e mantém o regime fundiário já existente, mudando apenas os proprietários das terras.
De acordo com Álvaro Pereira, doutor em direito pela USP e pesquisador do Porto Maravilha, “havia uma prioridade bastante distinta do objetivo a ser implementado”. “O consórcio público é algo claramente distinto da proposta que surge pela PMI, onde não existe um foco em habitação. O objetivo é criar um modelo rentável para o mercado imobiliário privado”, aponta.
Amparados pelo PMI, representantes das empreiteiras participaram da construção do edital que posteriormente venceram. Conforme o relatório da prefeitura do primeiro trimestre de 2010, “foram realizadas diversas reuniões entre a equipe da Cdurp, técnicos da prefeitura do Rio e representantes de empresas que estão desenvolvendo a documentação referente à PPP”. A única concorrente da licitação foi a Queiroz Galvão, desclassificada por não apresentar toda a documentação necessária.
Por meio do FGTS, a Caixa Econômica Federal (CEF) assumiu todos os gastos da PPP, em troca dos Cepacs e terrenos públicos da região. O banco injetou R$ 3,5 bilhões para dar o pontapé inicial. A maior parte desse recurso concentra-se nos cinco primeiros anos da operação, que consumiram R$ 5 bilhões para fazer as intervenções de maior porte, como a demolição da avenida Perimetral. O novo arranjo e a entrada da CEF foram uma surpresa até para os técnicos da prefeitura. “Paes entrou e percebeu que o projeto já estava maduro. Colocou o Felipe Góes, que veio da iniciativa privada, no IPP, montou a operação e aprovou na Câmara, e a CEF entrou com recursos do FGTS. Foi uma surpresa”, relatou um servidor do município para a pesquisa “Grandes projetos urbanos e a governança de metrópoles: o caso do Porto Maravilha do Rio de Janeiro”, da cientista política Betina Saruê.
A expectativa era que a valorização dos terrenos públicos e os Cepacs bancassem o restante do compromisso de R$ 8 bilhões assumidos pela CEF. Mas a conta não fechou. Em valores corrigidos, o compromisso total chega, hoje, a R$ 9,9 bilhões. O interesse do mercado ficou abaixo do esperado, e, já no ano passado, foi preciso mais um aporte do FGTS para bancar a PPP, no valor de R$ 1,5 bilhão.
Para esse novo aporte, a fim de regulamentar os investimentos do FGTS em operações urbanas, o Ministério das Cidades foi acionado. Por meio de uma Instrução Normativa publicada em dezembro de 2014, o ministério voltou à cena e conseguiu vincular o novo aporte à produção de um Plano de Habitação de Interesse Social (PHIS) elaborado “de forma participativa”. Foi uma pequena vitória da moradia dentro do Porto Maravilha.
A volta do Ministério das Cidades incomodou um poderoso articulador do PMDB carioca, que ficou conhecido nacionalmente no ano seguinte: o deputado Eduardo Cunha. Em mensagens interceptadas pela Lava Jato, durante a negociação da Instrução Normativa, Cunha queixava-se do Ministério das Cidades para o já mencionado Léo Pinheiro, da OAS, enquanto o assegurava de seu controle na CEF: “Lá eu mudo isso tudo fácil, mas Cidades não”. Cunha é acusado de ter cobrado pelo menos R$ 52 milhões (1,5% do R$ 3,5 bilhões) em propina para liberar o dinheiro do fundo de infraestrutura do FGTS para o Porto Maravilha, por meio da CEF.
Passados dois anos, a realidade é diferente no atual Ministério das Cidades, dirigido pelo ex-deputado Bruno Araújo, do PSDB, que deu o voto decisivo para o afastamento da presidente Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados. Ao assumir, o ministro já afirmou que pretende apostar nas parcerias público-privadas para o desenvolvimento das cidades brasileiras.
Tendo como meta ofertar 1.500 imóveis residenciais para famílias de baixa renda, o Plano de Habitação de Interesse Social (PHIS) do Porto Maravilha ignora a presença de cerca de mil pessoas que vivem nos cortiços da região, segundo o projeto Prata Preta, pesquisa do Observatório das Metrópoles e da Central de Movimentos Populares. No plano coordenado pela prefeitura, não há nenhum diagnóstico ou linha de ação que contemple a realidade dos moradores desses imóveis.
Dos 710 quartos espalhados em 54 cortiços analisados pela pesquisa, pouco mais da metade tem quartos entre 9 e 12 metros quadrados. Treze são ainda menores, com os quartos variando entre 4 e 8 metros quadrados. Há ainda outros cortiços que não foram mapeados, pois estão em locais de difícil acesso, como em bocas de fumo. Ao contrário de São Paulo, onde os cortiços foram regulamentados, ainda não há legislação específica sobre o tema no Rio de Janeiro. “Fomos rua a rua. É muito difícil de encontrar, pois eles se invisibilizam para continuar sobrevivendo, já que são ilegais”, afirma Mariana Werneck, do Observatório de Metrópoles, que participou da pesquisa.
Para 92% dos entrevistados, os cortiços são um lugar de moradia permanente. Segundo Orlando Santos, isso se dá principalmente por causa da ausência de alternativas para moradias populares no centro da cidade. “Quase um quinto da população dos cortiços é composta por famílias que podem ser consideradas como sem-teto. No geral, moram nestes espaços pessoas que estão construindo ou em fase final de sua vida profissional”, analisa o professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Para Marcelo Edmundo, da Central de Movimentos Populares, apesar dos problemas e de ter sido elaborado tardiamente, o PHIS “é um avanço que precisa ser efetivado”. Alguns programas previstos pelo PHIS ainda não saíram do papel, como o de Melhoria Habitacional e Assessoria Técnica, formulado para dar suporte a residências em condições precárias. Com lançamento previsto para março, a ação agora deve ter início “até o final do ano”, segundo afirmou a Cdurp à reportagem.
“Para fazer habitação de interesse social, é preciso atuar nas áreas em que se encontra disponibilidade, onde não se inviabiliza a produção de habitação por causa do preço da terra”, disse à Pública Alberto Silva, presidente da Cdurp. Por estar comprometida com os empreendimentos imobiliários, boa parte das antigas terras públicas não pode mais ser utilizada para habitação popular. Por isso, o PHIS do Porto Maravilha abrange não só a região portuária, mas também os bairros do entorno.
“Uma grande lacuna no diagnóstico do PHIS é justamente a identificação de terrenos na zona portuária que pudessem abrigar um número relevante de unidades de habitação de interesse social. Isso inviabiliza em muito as estimativas de habitação de interesse social naquela área”, explica Mariana Werneck.
Para o presidente da Cdurp, a ênfase na destinação de imóveis públicos para habitação de interesse social em operações urbanas é um “discurso viciado”. “Na lógica da operação urbana, vende-se o potencial de construção [Cepacs] para pagar a conta da requalificação inteira. Então, quando você pega um terreno onde tem esse potencial e usa para fim público, seja um prédio público ou habitação de interesse social, isto é uma despesa para o Estado, [não traz] receita nenhuma”, critica Silva.
Já a arquiteta Fernanda Sanchez, que pesquisa o Porto Maravilha, faz coro a especialistas que consideram o retorno fiscal do Porto Maravilha “praticamente nulo” no curto prazo. “Os investidores da área vão se beneficiar da lei que dá isenção de impostos como IPTU e ISS por dez anos na região. Trata-se da privatização de uma zona inteira da cidade”, aponta.
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A outra história do Porto Maravilha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU