Por: André | 10 Abril 2014
Quando, em 23 de março passado, o Papa Francisco tornou público os oitos membros da comissão que o assessorará na luta contra a pederastia na Igreja, um nome destacou-se entre os demais: o de Marie Collins. Esta irlandesa de 67 anos é a voz das vítimas. Com 13 anos, internada em um hospital, foi abusada sexualmente pelo capelão. Trinta anos depois encontrou coragem para levá-lo ao banco dos réus. Além disso, fez a hierarquia da Igreja irlandesa mudar de ideia, ela que se esforçou para encobrir seu abuso. Em conversa por telefone de Dublin, Marie Collins (foto) disse que entra na comissão, cujos trabalhos estão previstos para começarem dentro de um mês, confiando em que traga mudanças reais.
Fonte: http://bit.ly/1e7TaD7 |
A entrevista é de A. Larrañeta e publicada no jornal espanhol 20 Minutos, 07-04-2014. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Quais são as suas expectativas em relação à comissão contra a pederastia?
Vou com a esperança de que haja uma mudança real. Já tivemos promessas e palavras de chega. Como sobrevivente, no passado alimentei muitas esperanças, mas me decepcionaram. Mesmo assim, agora está em minhas mãos fazer todo o possível para que se escute a voz dos sobreviventes. Se me pergunta por meus desejos, tenho muitos, mas sobretudo que os abusadores respondam por seus atos. Além disso, é preciso melhorar o tratamento do sistema judicial à vítima. Gostaria que houvesse mais protocolos para a proteção da infância e que os bispos tivessem a obrigação de cumpri-los. Não faz sentido que se criem regras se seu descumprimento não traz consigo punições. Essa sempre foi a minha luta principal, e a do resto das vítimas, que aqueles que encobrem os agressores sejam punidos. E algo que me preocupa muito.
No que você pode contribuir?
Estou há anos fazendo campanha contra os abusos de menores na Igreja, mas, além disso, já trabalhei com a Igreja, a partir de dentro. Na diocese de Dublin ajudei a criar o Escritório de Proteção Infantil e a dar forma ao protocolo para a proteção da infância. Acumulo experiência suficiente, não apenas como sobrevivente dos abusos, mas também sobre como enfrentá-los a partir de dentro da Igreja, com todas as dificuldades que isso traz consigo.
Considera que as vítimas têm pouca representação na comissão
Gostaria que houvesse mais protocolos para a proteção da infância e que os bispos tivessem a obrigação de colocá-los em prática. Por enquanto somos oito. Está previsto que aumente, é necessário para que seja verdadeiramente operacional. Não sei exatamente quantos mais seremos, é cedo, mas seria desejável que houvesse mais representantes por parte das vítimas.
No passado você acusou a Igreja de enfrentar a pederastia “não com ignorância, mas com uma política deliberadamente equivocada”.
Bom, é que a hierarquia eclesiástica aqui na Irlanda passou anos dizendo que desconhecia a pedofilia e a pederastia. Que não entendiam que deixasse sequelas nas crianças. Minha postura sempre foi a mesma: a pederastia é um crime. Portanto, não importa o nível de conhecimento que se tenha, tem que ser denunciada e é preciso fazer algo com os que cometem os abusos. Mas não é algo que eu esteja sozinha para dizer. Na Irlanda, criou-se uma comissão estatal que identificou um encobrimento sistemático dos agressores com o objetivo de proteger a reputação da Igreja. Outras comissões, como a de Boston (Estados Unidos), chegaram à mesma conclusão.
Você disse que espera uma “mudança real” por parte da Igreja católica, mas exatamente no momento em que se cria esta comissão, os bispos da Itália declaram que não é necessário denunciar à polícia quando um menino foi sodomizado ou violentado.
(Suspiros) Para mim, isto indica o quão necessária é a comissão. Não quero pronunciar-me especificamente sobre a declaração dos bispos italianos. Caso o fizesse (permanece vários segundos em silêncio), diria demais. Digo apenas que é uma prova a mais do quanto se necessita desta comissão. Quantas coisas precisam mudar!
Mesmo assim, continua percebendo ventos de mudança na Igreja?
Houve mudanças. Cerca de 400 padres foram expulsos nos últimos anos por casos de pederastia. Isso é um passo. Também sei que vários países criaram protocolos para a proteção da infância. Talvez deixamos para trás o tempo em que a Igreja pensava que isto aconteceria sem que fosse preciso uma mudança significativa.
Qual seria a primeira coisa que mudaria?
Qualquer bispo que ignore as instruções para proteger as crianças deveria ser punido. Não serei específica sobre quais sanções considero adequadas, mas nenhuma pessoa que agrida ou coloque em perigo uma criança deveria ficar impune por isso. Não quero lançar muitas propostas antes de começar a comissão; prefiro fazê-lo na comissão. Não quero comprometê-la antes mesmo do seu início.
Nem as vítimas, nem os jornais, mas a ONU acaba de dizer ao Vaticano que deixa a desejar na luta contra a pederastia. O Papa respondeu dizendo que não eram os únicos. Muitos o criticaram.
Eu mesma, mas neste momento estou centrada na comissão, onde verdadeiramente direi o que penso. É a oportunidade para levar os sentimentos das vítimas ao coração da Igreja. O farei o melhor possível. É um desafio, é preciso implantar mudanças. Mas, ao final das contas, será a Igreja quem vai dizer se muda ou não. Esperemos para ver o resultado da comissão.
Mas, o fato é que as mudanças são muito difíceis para a Igreja católica...
Parece-me que para eles o tempo se move em séculos, não em minutos. Mas não entraria ali se não visse que é possível fazer mudanças no tempo real. É uma tarefa dura, mas não podemos eternizá-los.
Um padre abusou de você quando tinha 13 anos e estava doente em um hospital. Além disso, fez fotografias com você nua. O fato de que fosse um padre faz com que o abuso seja diferente?
Nenhuma criança estará segura se a Igreja continuar encobrindo assim a pederastia. Se você é católica, sua família é católica, tem o padre como autoridade e alguém em quem confiar. Certamente, isso acrescenta uma nova dimensão ao abuso. Não quero absolutamente menosprezar outros abusos, provenham de um professor ou de um familiar, mas constatei que denunciar alguém que é respeitado pela sociedade em seu conjunto é muito difícil. É mais difícil do que pensa. E há também a repercussão que tem em sua vida espiritual, nas suas crenças. Afora isso.
O que diria aos que acreditam que a pederastia na Igreja é algo do passado?
Pensam isso porque a maioria dos abusos só é revelada quando as vítimas já são adultas, que é quando podem falar. Mas aqui, em Dublin, acaba de ser condenado há duas semanas um padre por abusar de um menor em 2007. Assim que podemos ser complacentes e dizer que são águas passadas. Infelizmente, não.
Por que decidiu tornar público seu abuso? Para sensibilizar a sociedade?
Porque quando tentei levar o meu agressor à Justiça, confiava em que a minha paróquia me ajudaria, colaboraria com a Polícia e o expulsaria. Mas deparei-me com uma atitude muito diferente. Me dei conta de que o que acontecia da porta para dentro era totalmente diferente do que diziam que estavam fazendo. Pensei que era necessário falar se queria que as crianças estivessem seguras. Nenhum menino estaria seguro se a Igreja seguisse encobrindo a pederastia, e então o fiz.
Você disse que falaria “até com o Diabo, se pudesse com isso salvar um menino de ser abusado”.
Disse isso e é verdade. Sei que há vítimas que acreditam que as estou traindo de alguma maneira, que as estou defraudando por falar com a Igreja. Mas é que é uma instituição com grande influência e poder em boa parte do mundo, o que não podemos ignorar. Assim que trabalharei com a Igreja porque quero que as crianças se sintam mais seguras no futuro. Eu não odeio a Igreja, nem ninguém da Igreja. Não odeio nem o padre que abusou de mim, mas posso entender a raiva e as emoções dos sobreviventes que não querem saber nada da Igreja por todo o mal que causou a elas...
Como é possível não odiar quem abusou de você?
Meu agressor destruiu boa parte da minha vida, mas não o odeio, porque odiá-lo prejudica a mim. Passei muitos anos de depressão em depressão em hospitais psiquiátricos. Quando o condenaram fui à terapia. Isso mudou a minha vida. Pude encontrar um pouco de alegria, que mantive viva nestes últimos 16, 17 anos. Da forma como o vejo, o ódio que possa sentir pelo meu agressor não prejudica a ele, que o ignora. Prejudica a mim e a minha vida de agora. Quero ser feliz e livre, algo que ele não me permitiu ser durante 30 anos. Isso me fez deixar de lado o ódio e o ressentimento. Foi para o meu próprio bem, não pelo dele.
Você dá nome a uma fundação que luta contra o abuso infantil nas novas tecnologias, ‘The Marie Collins Foundation’.
A razão de ser desta Ong é sensibilizar para os perigos da internet e dos telefones celulares para os menores. As novas tecnologias criaram um enorme problema com imagens de crianças agredidas sexualmente sendo compartilhadas e vendidas. Quando o capelão abusou de mim também me fotografou e sei quais são os efeitos de ter sido fotografada nua e o temor de que essas imagens fossem compartilhadas. A Ong trabalha com as famílias das vítimas, forma profissionais e luta para que a indústria da internet coíba o quanto possível estes abusos.
Parece-lhe utópico pensar que algum dia se erradicará a pederastia?
Temo que sim, sendo como é a natureza humana. Se somarmos a isso que a pedofilia converteu-se em um negócio para alguns, mais ainda. Tudo o que podemos fazer é lutar para que sejam presos e dificultar os abusos contra um menino.
E desterrá-la da Igreja?
É o trabalho da comissão, que, entre outras coisas, proporá melhorar a formação dos padres e estabelecerá instrumentos para prevenir que os pederastas entrem na instituição. Se se soubesse como erradicá-la, já se teria feito. Mas é preciso tentá-lo, não podemos cruzar os braços e dizer que é muito difícil; devemos tentar. Se com isso salvamos uma criança de ser abusada, é uma vida que teremos salvo.
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“Quem encobre abusos sexuais também deve ser punido”. Entrevista com Marie Collins - Instituto Humanitas Unisinos - IHU