05 Abril 2012
O futuro parece sombrio. Anuncia-se a decadência de valores éticos e a ‘saída da religião’, fenômeno que distancia o Ocidente cada vez mais de suas raízes judaico-cristãs. Em meio a tantos pensadores contemporâneos que manifestam uma visão catastrófica das transformações que vivemos, o psicanalista e professor do Instituto de Medicina Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro Jurandir Freire Costa desponta como um defensor dos valores tradicionais. Em seu livro O ponto de vista do outro: figuras na ficção de Graham Grenne e Phillop K. Dick (Garamond, 2010), ele se serve dos mundos criados por esses dois ficcionistas para demonstrar que, na verdade, não perdemos de vista os valores éticos que sempre regeram, de uma forma ou de outra, a sociedade ocidental. E vai além: devemos recuperar nossa matriz judaico-cristã – em forma laica ou espiritual – para nos apropriarmos com maior veemência e consciência de seus dois elementos básicos: justiça e amor.
A entrevista é de Isabella Fraga e publicada no Suplemento Trimestral da Revista Ciência Hoje, março 2012.
Eis a entrevista.
Uma linha que pauta muitas obras é a de que o mundo desencantado, no qual vivemos, não perdeu seus parâmetros éticos e morais. Que parâmetros são esses?
Existe, hoje, em boa parte do discurso filosófico e das ciências humanas – inclusive o da psicanálise – uma tendência a não apenas diagnosticar o que acontece, mas também a fazer previsões catastróficas. Essa inclinação tem como base a transformação brutal do mundo institucional, baseado na família, nos ideais políticos e na elaboração dos sentidos de vida por parte dos indivíduos. Um dos suportes do equilíbrio mental é o sentimento de que a vida vale a pena. Mais do que a nossa vida individual, é o que deixamos no mundo que tem valor e acrescenta algo às futuras gerações.
Em O ponto de vista do outro, argumento que nosso ideário ético fundamental, baseado nos valores judaico-cristãos, não foi perdido. Em nossa constituição como sujeitos estão implícitos os ideais de justiça e de amor que se impõem às mais diversas concepções que temos da realidade e da subjetividade. O ideal de justiça estabelece a equidade no tratamento dado a todos, e o de amor, o respeito e a aceitação da singularidade de cada um.
Foi com esse intuito que usei o artefato de dois ficcionistas, o inglês Graham Greene (1904-1991) e o norte-americano Phillip K. Dick (1928-1982), para ilustrar a hipótese teórica. Ambos tratam dos conceitos de justiça, realidade e subjetividade. Os personagens de Dick são robôs ou crianças completamente desviantes do que concebemos como seres humanos típicos. É um mundo fantasmagórico, assustador, mas que mostra a presença dos ideais de justiça e amor na constituição subjetiva.
Como o senhor vê o impasse contemporâneo entre uma moral universal, válida para todos, e a extrema valorização do indivíduo e de sua liberdade?
Essa é uma questão crucial. A pós-modernidade e as leituras genealógicas feitas nos últimos 60 anos sobre ética afirmam que o universalismo é um cacoete filosófico, ocidental e racionalista, que esconde sua relatividade histórico-cultural. De fato, o universalismo não é defensável se o convertermos em código capaz de definir desde sempre e para sempre o que é o ‘bem’ e o ‘mal’. Na concepção de universal que sustento, no entanto, não existe essa pretensão. Uma tradição reivindica a universalidade até que outra venha substituí-la. Não há como fugir das fronteiras estabelecidas pela história, pela linguagem, pelas visões de mundo possíveis num dado espaço cultural.
Autores como Giorgio Agamben, Slavoj Zizek e Jacques Derrida, nos quais me apoiei, embora não explicitem claramente a ideia, buscam nas fontes judaico-cristãs uma matriz conceitual capaz de fazer face ao desafio ético representado pelo desencantamento do mundo. Para Agamben, o sujeito age eticamente quando toma distância dos modelos de identidade existentes para guardar intacta a potencialidade de ser sempre outro. Derrida, por sua vez, criou o conceito de “justiça por vir” e “democracia por vir” como um tipo-ideal ético que, embora jamais se realize, deve orientar a ética de “responsabilidade para como outro”. E Zizek defende a noção de ética como ruptura com os hábitos dominantes, renovação nas formas de conceber o mundo que nos leve a respeitar a singularidade de cada um.
Esses autores chamam a atenção para o fato de que a decisão ética é sempre uma decisão de risco. Jamais poderemos ter absoluta certeza de que conhecemos o ser humano a ponto de julgar o que é melhor para nós mesmos e para o outro com a isenção de quem aplica uma lei infalível. Para eles, não existe ética universalista de princípios, uma ética que, de antemão e por inferência lógica, determine o que é certo ou errado. Contamos com as ideias de justiça e de amor para dar passos éticos tateantes, que deverão ser retificados em função do respeito à equidade de à singularidade humanas. Somos seres de experimentação e nossa única salvação é a fidelidade ao credo da justiça e do amor. Esse credo é o que nos permite incluir no convívio humano aqueles que, à primeira vista e num determinado momento da história, parecem ser ‘diferentes’ da ‘maioria’.
No livro, o senhor afirma que a ética é a relação com um outro singular, relação esta que seria sempre mediada por um ‘terceiro’. Qual o papel desse ‘terceiro’?
Meu modelo de relação com o outro vem de Freud. Na mediação da relação do sujeito com o outro está o terceiro da linguagem, dos ideais, da cultura. Ao falarmos, há sempre um outro que fornece o vocabulário sem o qual não poderia haver interlocução. Em nossa conversa, por exemplo, é pelo filtro dos hábitos culturais que escuto o que me é dito e procuro responder. Para que o diálogo seja possível, é necessário que possamos entender a significação dos temas que abordamos e que partilhemos um solo ético razoavelmente consensual.
Essa série de regras e injunções simbólicas é o que chamamos de ‘terceiro’. É o terceiro que me permite saber que você é um outro, é ele que define quem é meu ‘próximo’ e quem é o ‘estranho’, o ‘estrangeiro’. É nele, sobretudo, que aposta, sem poder garantir, na disposição do outro para me entender e vice-versa. Sem essa confiança atribuída gratuitamente ao outro, e que se baseia na experiência cognitivo-afetiva, não haveria convívio humano. Os outores que pronunciam a catástrofe na cultuar afirmam que esse terceiro foi riscado do mapa ético. A premissa é de que sem as normas e as leis tradicionais, aplicadas e reguladas pelas instâncias familiares, religiosas, políticas, etc., já não sabemos distinguir entre liberdade e irresponsabilidade, prazer e voracidade, autointeresse e egoísmo, dignidade e rebaixamento dos predicados humanos ao status de mercadoria, sociabilidade e submissão às injunções do mercado. Em grande parte, isso é verdade. Só não concordo que tenhamos jogado fora a balança de julgamento disso tudo. Até o fato de podermos fazer tal diagnóstico indica que dispomos de um metro para medir o descalabro.
Ao abordar o consumismo, o senhor faz uma distinção entre o comprador e o consumidor...
Sim, este último teria surgido, efetivamente, no final do século XIX e início do século XX, como pensa o sociólogo Colin Campbell, que fala da relação entre sentimentalismo e consumismo. Antes de a indústria começar a produzir excedentes, os supérfulos já eram comprados, mas tinham outra função: reforçar o apreço pelas crianças, a intimidade dos casais, o aconchego doméstico, o vínculo entre as gerações. Havia uma demanda de que o objeto – pratos, mesas, toalhas, móveis – prolongasse a memória da família. Tudo isso contava as histórias das gerações; tudo isso era feito para permanecer e testemunhar o esforço dos sujeitos para transcender a duração da mera vida biológica. O supérfulo de então tinha uma função cultural completamente diversa do supérfulo de hoje.
Hoje, tornamo-nos consumidores em vez de compradores porque o produtos têm caducidade programada. A própria indústria torna os objetos obsoletos, bem como nossos modos de viver, sentir, amar. O consumo de bens e de sexo tornou-se um imperativo para que possamos nos sentir felizes e reconhecidos pelo outro. Tornou-se um fetiche, no sentido próximo ao de Marx, o fetiche do dinheiro, e ao de Freud, o fetiche sexual. Ou seja, perde-se a consciência das circunstâncias que deram origem ao objeto (ou modo de pensar) para ocultar a nova função que lhe é atribuída.
Assim ocorreu, por exemplo, com a revolução sentimental amorosa dos séculos XVII e XIII. Essa revolução foi empreendida para combater a cultura das castas e linhagens, vigentes no sistema absolutista, que se utilizada dos corpos e afetos como engrenagens na transmissão de interesses materiais de poder e de riqueza. A reação romântica a esse modelo inicialmente expandiu o espectro da liberdade humana. Os futuros cônjuges se tornaram mais livres para se escolherem mutuamente com base nas ligações afetivas. O ‘comprismo’ sentimental foi uma decorrência, entre outras, da revolução na esfera amorosa-conjugal-familar. Os bens supérfulos eram adquiridos com vistas à consolidação do valor moral da família burguesa e de seu correlato afetivo, o romantismo amoroso. Mais tarde, essa reação se descolou de qualquer promessa de libertação e se tornou substitua de muitos ideais postos em segundo plano por uma sociedade que busca a fragmentação dos laços sociais para o individualismo consumista. É evidente que isso é eticamente empobrecedor, mas – insisto – constatar o problema não é vaticinar o apocalipse. Milhões de pessoas nesse mundo globalizado pensam que a vida deve ser diferente. E o problema, aí, não é apenas o capitalismo, embora este seja a maior fonte de destruição de valores tradicionais. O problema é como valorizar, mostrar a verdadeira grandeza dos ideais democráticos, embaçada pela ideia de que a sociedade deve ser vista como um mercado de troca e venda de produtos e sujeitos como consumidores.
Como isso se liga ao resgate dos valores modernos?
No universo grego ou romano, as ideias de igualdade, fraternidade e liberdade seriam vistas como esdrúxulas. Ninguém podia imaginar que a igualdade e a liberdade fossem um bem de todos. Não havia ‘todos’; havia castas, estamentos, estratos incomunicáveis. A ética greco-romana era a de honra, da bravura ou, no máximo, da sabedoria. Poucas coisas eram mais degradantes, naquela cultura, do que se deixar levar pela paixão ou pelo sentimento. Compassividade, cuidado com os mais frágeis, receptividade para o ‘diverso’, o ‘estrangeiro’, eram sinais de fraqueza. O que importava era a estética da vida, o governo de si, a harmonia, a reputação. Ao contrário disso, na matriz judaico-cristã, o deficiente físico ou o escravo é um irmão, um igual diante de Deus. O advento dessa ética foi uma novidade cultural gigantesca. A democracia moderna é herdeira desses ideais. São eles que nos fazem repudiar a corrupção, a violência do poder político ou econômico, a utilização mercantil e oportunista da credulidade religiosa dos mais simples, o preconceito sexual ou de classe etc. São eles que, igualmente, nos permitem criticar a maneira leviana com que esse fala de amor e sexualidade, uma maneira que tornou milhões de pessoas algozes de si mesmas, tais são as exigências que fazem para serem felizes e tal a freqüência com que se expõem a sentimentos de perde, desilusão e conflitos sexuais amorosos.
Se, na sociedade atual, os indivíduos antes excluídos são considerados iguais, quem são os novos excluídos?
As pessoas envelhecidas, os viciados, os obesos, os sedentários, os perdedores econômicos. Essas pessoas são olhadas como fracas, como se não tivessem direito à plena cidadania cultural. Há também os excluídos do consumo, os pobres que o capitalismo gera e que, convertidos ao consumismo, não podem adquirir o que cobiçam e se tornam delinqüentes. A nossa sociedade também produz o fetiche do vencedor – no sexo, no amor, no esporte, no dinheiro, no poder. Ninguém é bom suficiente para chegar ao pódio do espetáculo e, por isso, muitos recorrem às drogas legais como meio de suportar as ordens dos ideais tirânicos que constroem para si. Esse é outro fetiche que podemos desmascarar com o auxílio da matriz ética judaico-cristã, em sua versão leiga ou espiritual.
A reabilitação de algumas referências judaico-cristãs não traz o risco de se recuperar também características vistas como negativas, como a culpa?
A ideia de culpa é muito forte no cristianismo, mas acho que não se pode viver sem culpa. Uma coisa é criar uma religião do terror, para dominar as massas, dizendo-se uma a criança, por exemplo, que a masturbação é um passaporte para o inferno. Esse é um moralismo típico da burguesia do século XIX e do início do século XX que se associou à religião para defender seus ideais.
Ao defender o restabelecimento leigo ou espiritual do valor da ética judaico-cristã, não me refiro ao aparato religioso comprometido com o poder temporal ou com objetivos político-econômicos escusos, como foi o caso de séculos e séculos de domínio de reinados protestantes ou católicos na Europa. Refiro-me à recuperação dos princípios de justiça e de amor, que tem um elemento ‘indesconstrutível’, para falar com Derrida. Não podemos pensar que qualquer conduta humana é justificável ou passível de aceitação. Ao dizer que “a desconstrução para na justiça”, Derrida afirma que existe um claro limite para o que podemos e o que eu não podemos fazer. Esse limite tem suas balizas na tradição ética do judaísmo e do cristianismo. Bem entendido, me refiro à tradição ocidental, e não a outras culturas, como as regidas pelo islamismo, pelas religiões espiritualistas asiáticas ou quaisquer outros sistemas de preceitos éticos.
Derrida considera que a “justiça é por vir” é uma condição de possibilidade do convívio humano. Esse pressuposto é válido apenas para aqueles convertidos ao ideal da justiça, não é universal no sentido de extra-histórico, ou extracultural. Ele se mantém em pé enquanto estivermos convictos de que é preferível a outros candidatos ao posto de fonte de recursos éticos. Caso viéssemos a abrir mão das ideias de justiça e amor, poderíamos tornar-nos absolutamente alheios à miséria, à fome, à humilhação, à tortura, à exploração do outro. No mundo da “justiça por vir”, o poder econômico, político, científico, religioso, artístico e qualquer outro têm limites – os limites do respeito à igualdade de todos e à diferença de cada um, dito de outra maneira, de respeito ao próximo. Gosto muito da resposta de Zygmund Bauman quando lhe perguntaram como julgava uma sociedade. Ele respondeu mais ou menos assim: “Julgo uma sociedade pelo lugar reservado aos seus pobres e desvalidos”.
Como o saber psicanalítico pode servir de instrumento para a compreensão dos conflitos contemporâneos?
Em primeiro lugar, reafirmando que o sofrimento é parte constitutiva da vida. Em segundo, que se pode lutar contra o sofrimento sem recorrer a procedimentos de evasão como humilhar o outro mais frágil, dominá-lo ou se desonerar da responsabilidade de construir um convívio social mais favorável à expressão do que temos de melhor. Em terceiro, admitindo a ideia de que, como pessoas, não temos um substrato fixo. O sujeito é um nome, um suporte para uma série de experiências vividas ou imaginadas: a realidade biológica mutável do sujeito desde que nasce até o envelhecimento e a morte, a realidade dos percursos profissionais, a situação de classe social, as preferências estéticas, sexuais, morais, espirituais etc. Uma vez que se admite isso, o convívio humano sob a égide da “justiça por vir” tornas-se um pouco mais fácil. Aderir a esse ideal significa não congelar a própria identidade em qualquer etiqueta ideológica que nos obriguem a portar: branco, negro, burguês, pobre, herege, religioso, ateu, conservador, revolucionário etc. O sujeito da “justiça por vir” é aquele que sabe que pode ser muitas coisas e que vai ser, para sempre, um enigma para si próprio: para cada lado claro da existência humana existe outro deixado na obscuridade. O que permanece e incomoda é que sofremos. E se viermos imobilizar o sujeito numa identidade fixa, ele vai perder a plasticidade e tender a usar meios patológicos ou violentos para lidar com sofrimento. Pode recorrer facilmente à rivalidade persecutória, criando inimigos imaginários, bodes expiatórios que ‘expliquem’ a razão de suas perdas, frustrações, irrealilzações. A psicanálise pode ajudar-nos a entender melhor esse estado de coisas.
Uma das características da pós-modernidade não é a falta de identidades fixas?
Diz-se que a característica da pós-modernidade é a flexibilidade, a adaptação camaleônica às novas situações. Isso é uma meia-verdade, uma mistificação. A mudança a qual se alude aqui é a que segue a injunção cínica do princípio de que O leopardo, de Lampedusa: “tudo deve mudar para que tudo fique como está”. A abertura para novas formas de subjetivação a que se referem Derrida, Agamben e Zizek não visa renovar permanentemente o fôlego da sociedade do espetáculo e do mercado. Não é a flexibilidade de horizontes estreitos, a flexibilidade exigida pelo próximo movimento da indústria e do comércio da moda. Essa flexibilidade nada tem a ver com abertura para a experimentação, para a reinvenção de formas de convívio mais justas. É uma flexibilidade que fixa os indivíduos em identidades competitivas, voltadas para alcançar os mesmos ideais calcificados nas imagens do sucesso midiático. Em poucas palavras, mude para ser aquilo que lhe ensinaram a desejar ser, mas que você não conseguiu ser sendo assim como é. Nesse caso, o móvel da mudança é a concorrência predatória ou ressentimento. Não é esta visão de mundo da ética judaico-cristã, recobrada em sua vitalidade leiga por Derrida, Agamben e Zizek, entre outros.
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O ponto de vista do outro. Entrevista com Jurandir Freire Costa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU