Por: André | 11 Abril 2014
Uma coisa é certa: o que os primeiros cristãos compreenderam e interpretaram do acontecimento Jesus de Nazaré, ainda hoje nos alegra, porque a história nos ensina que quando nos comprometemos a restaurar a justiça, a reconhecer a dignidade da pessoa, a restabelecer a igualdade entre os seres humanos e a libertas as pessoas de todos os fardos que pesam sobre elas, há uma forte possibilidade de que a história se repete e de que encontramos em nosso caminho a cruz. Mas, não devemos desesperar, porque após a cruz da Sexta-Feira Santa, há a ressurreição, a vida nova do domingo da Páscoa.
A reflexão é de Raymond Gravel, padre da Diocese de Joliette, Canadá, e publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor – Ciclo A do Ano Litúrgico. A tradução é de André Langer.
Referências bíblicas:
Evangelho dos Ramos: Mt 21,1-11
Evangelho da Paixão: Mt 26,14-27,66
Eis o texto.
A dupla festa de hoje diz tudo ao mesmo tempo: quem é este homem que é aclamado e depois rejeitado? Que é este homem capaz de chegar até aí? Quem é esse Rei que entra em Jerusalém montado em um jumento? Que é esse Messias que se deixa crucificar? Quem é esse Deus que Jesus evoca? Os relatos dos Ramos e da Paixão, segundo o evangelista Mateus, são relatos de fé, como o resto do evangelho, compostos à luz da Páscoa, para compreender um pouco melhor o Cristo ressuscitado e a Igreja que somos. Todos os evangelistas têm seus relatos dos Ramos e da Paixão de Cristo, mas cada um tem seus acentos e particularidades. Quais são as características de Mateus?
1. Evangelho dos Ramos: Mt 21,1-11
1) Para a entrada messiânica de Jesus em Jerusalém, Mateus cita o Antigo Testamento, como costuma fazer em todo o seu evangelho, para mostrar que Jesus realiza plenamente os profetas: “Dance de alegria, cidade de Sião; grite de alegria, cidade de Jerusalém, pois agora o seu rei está chegando, justo e vitorioso. Ele é pobre, vem montado num jumento, num jumentinho, filho de uma jumenta” (Zc 9,9). Não é à toa que Mateus, contrariamente aos outros evangelistas, não se preocupa com a inverossimilhança quando diz que Jesus se sentou sobre uma jumenta e um jumento ao mesmo tempo: “Trouxeram a jumenta e o jumentinho e puseram sobre eles suas vestes, e Jesus montou” (Mt 21,7). Mateus queria ser de tal maneira fiel à profecia de Zacarias que esquece esse detalhe inverossímil.
2) “Se alguém vos disser alguma coisa, direis: ‘O Senhor precisa deles, mas logo os devolverá’” (Mt 21,3). Em Mateus é a única vez em que Jesus se designa a si mesmo como Senhor. Podemos ver muito bem que já é o Cristo da Páscoa que fala. Também, ao contrário de Marcos, é o proprietário que consentirá à pergunta de Jesus. Em Marcos, são as pessoas que se encontram no local: “Algumas pessoas que aí estavam, disseram: ‘O que vocês estão fazendo, desamarrando o jumentinho” (Mc 11,5).
3) “Quando Jesus entrou em Jerusalém a cidade inteira se agitou, e diziam” (Mt 21,10). Agitar: o verbo utilizado para exprimir esta realidade traduz-se por: ficou abalada, como para os tremores de terra. Quando Jesus entrou como Rei messiânico em Jerusalém, a cidade tremeu, como aconteceu com o anúncio do seu nascimento (Mt 2,3) e como será na hora da sua morte (Mt 27,51).
4) “E as multidões respondiam: ‘Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia’” (Mt 21,11). Mateus é o único a relatar o que dizem as multidões sobre Jesus. Também, como Mateus é judeu, faz alusão ao reconhecimento de Jesus como profeta, pela comunidade judaica de seu tempo.
Por outro lado, independentemente do evangelista, pois os quatro nos relatam este acontecimento teológico, esse relato quer nos dizer que tipo de Rei e que tipo de Messias os primeiros cristãos reconheceram nesse Jesus de Nazaré, tornado Cristo e Senhor na Páscoa: um Rei humilde, o Messias anunciado pelos profetas, mas também um homem que questionou de tal maneira a sociedade civil e religiosa de seu tempo que após tê-lo aclamado, as pessoas o rejeitaram, abandonaram e condenaram. Eis o que diz o teólogo francês Hyacinthe Vulliez: “Os ramos de oliveira se agitam. As ovações se elevam. A maré humana avança. E com ela, um rei, um príncipe. Que zombaria foi este cortejo, quando se pensa em quem será alguns dias mais tarde o herói desta manifestação popular! Quando se pensa naqueles e naquelas que o aclamam e que o abandonarão penosamente nas mãos do poder; que entrarão cada qual em sua casa com medo e vergonha! A traição de um deles por 30 moedas de prata. A confusão daqueles que pedem um bom lugar à sua direita e à sua esquerda. A negação de Pedro, cujo ardor agora se acovardou. Aquele que quis fazer dos homens e mulheres um povo digno e responsável, aquele em quem se viu o messias da paz e da justiça, foi abandonado por aqueles que o aclamavam. Senhor, nós te celebramos em nossas igrejas, mas te damos as costas quando se trata de fazer existir um povo de homens e mulheres livres e solidários.”
2. Evangelho da Paixão: Mt 26,14-27,66
De acordo com o exegeta francês Édouard Cothenet, a Paixão segundo Mateus segue um relato antigo, inspirado em Marcos. Por outro lado, Mateus acrescenta sua marca pessoal apoiando-se nas citações da Escritura, como sabe fazer tão bem ao longo de todo o seu evangelho.
1) Mateus é o único a falar de trinta moedas de prata pagas por Judas (Mt 26,15). Era o preço legal de um escravo e é também, na profecia de Zacarias, o pagamento pelo qual Israel despede o misterioso pastor que Deus lhe havia mandado: “Então eu disse: ‘Se estão de acordo, façam o meu pagamento; se não, deixem’. Então, eles pesaram o dinheiro do meu pagamento: trinta moedas de prata” (Zc 11,12). As trinta moedas de prata aparecem novamente no episódio final de Judas (Mt 27,3-10), que declara o comparecimento de Jesus diante de Pilatos. Judas reconheceu ter entregue à morte sangue inocente (Mt 27,4). Aqui, Mateus ecoa a acusação repetida do profeta Jeremias contra os notáveis de Jerusalém. Então os sacerdotes profetizam às suas costas: eles imitam a cena de Zacarias 11,11-13: proclamam que as trinta moedas de prata representam o valor ou o preço do sangue (Mt 27,7). O que significa para Mateus que o sangue de Jesus torna-se simbolicamente o preço da salvação dos mortos.
2) “Enquanto Pilatos estava sentado no tribunal, sua mulher mandou dizer a ele: ‘Não te envolvas com esse justo! Porque esta noite, em sonho, sofri muito por causa dele’” (Mt 27,19). Mateus é o único evangelista a evocar o sonho da mulher de Pilatos, uma pagã, que reconheceu em Jesus um justo, um inocente perseguido, um amigo de Deus. De sorte que Pilatos pode se livrar da sua responsabilidade: “Pilatos viu que nada conseguia e que poderia haver uma revolta. Então mandou trazer água, lavou as mãos diante da multidão, e disse: ‘Eu não sou responsável pelo sangue deste homem. Este é um problema vosso!’” (Mt 27,24); o que permite a Mateus, um judeu convertido que está em conflito aberto com a comunidade judaica de seu tempo, fazer cair a condenação de Jesus sobre todo o povo judeu: “O povo todo respondeu: ‘Que o sangue dele caia sobre nós e sobre os nossos filhos’” (Mt 27,25).
N. B.: Não se deve ver aqui uma maldição dos judeus que compromete o seu futuro. Infelizmente, é o que alguns fizeram na história. É simplesmente uma questão que Mateus coloca aos judeus do seu tempo: por que rejeitar o valor desse sangue derramado, o preço pago por Deus para nos dar o perdão e a vida? De qualquer maneira, podemos dizer que a responsabilidade pela paixão e morte de Jesus incumbe todo o mundo: Pedro, o primeiro dos discípulos, o renegou, os outros o abandonaram. Apenas algumas mulheres fiéis permaneceram à distância para olhar (Mt 27,55).
3) Com a morte de Jesus, Mateus precisa que a Antiga Aliança é agora cumprida: “E eis que a cortina do santuário rasgou-se de alto a baixo, em duas partes” (Mt 27,51a), permitindo agora o acesso dos pagãos à presença de Deus, uma vez que a cortina que separava o lugar Santo do santíssimo já não existe mais. Também a ressurreição dos mortos, segundo Mateus, já começou: “Os túmulos se abriram e muitos corpos dos santos falecidos ressuscitaram!” (Mt 27,52). Enfim, os pagãos são os primeiros a professarem a sua fé: “O oficial e os soldados que estavam com ele guardando Jesus, ao notarem o terremoto e tudo que havia acontecido, ficaram com muito medo e disseram: ‘Ele era mesmo Filho de Deus!’” (Mt 27,54).
4) A guarda do túmulo. Os versículos 62-66, próprios de Mateus, são o eco de uma polêmica entre judeus e cristãos, da época do evangelista. Não se trata de provar a ressurreição de Jesus, mas de responder à objeção judaica que afirmava que seu corpo foi roubado. Temos aí a prova de que esses relatos evangélicos foram compostos depois da Páscoa, não tanto para descrever, com exatidão, os acontecimentos materiais e históricos do que alegadamente ocorreu e que nos foi contado, mas para responder às questões levantadas pelas comunidades às quais esses relatos eram dirigidos.
Concluindo, podemos, portanto, dizer que os fatos em torno da paixão e morte de Jesus de Nazaré permanecem desconhecidos. Dispomos apenas do que a fé dos primeiros cristãos nos diz. Mas, de fato, temos necessidade de saber mais? Pois é na fé que nós relemos hoje esses relatos que fazem referência aos acontecimentos e que nos reenviam ao fundamento da fé cristã: a morte e a ressurreição de Jesus. Uma coisa é certa: o que os primeiros cristãos compreenderam e interpretaram do acontecimento Jesus de Nazaré, ainda hoje nos alegra, porque a história nos ensina que quando nos comprometemos a restaurar a justiça, a reconhecer a dignidade da pessoa, a restabelecer a igualdade entre os seres humanos e a libertas as pessoas de todos os fardos que pesam sobre elas, há uma forte possibilidade de que a história se repete e de que encontramos em nosso caminho a cruz. Mas, não devemos desesperar, porque após a cruz da Sexta-Feira Santa, há a ressurreição, a vida nova do domingo da Páscoa.
Boa Semana Santa para todas e todos. É preciso viver esse domingo de Ramos e da Paixão com um coração aberto.
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Morte e ressurreição: uma mesma realidade e uma mesma esperança - Instituto Humanitas Unisinos - IHU