15 Setembro 2010
“No ano passado, no Brasil, aconteceram 55 mil assassinatos”, revela o advogado Onir de Araújo. Por hora, calcula ele, são 37 jovens assassinados, a maioria na faixa entre 14 a 25 anos e negros. Isso evidencia não só que o preconceito existe, e num nível alarmante, mas também que os negros vivem uma situação de pressão e intranquilidade bastante pesada. Em entrevista à IHU On-Line, realizada por telefone, Onir fala da situação degradante imposta pela Polícia Militar aos quilombolas moradores do Quilombo da Família Silva, localizada num bairro considerado zona nobre de Porto Alegre. “Isso culminou no dia de 25 de agosto, quando estava o presidente da associação e o neto dele ambos embaixo da placa do Incra, praticamente na entrada do territóri. O neto estava de velocípede, e os brigadianos já chegaram com armas em punho, rendendo e abordando”, denuncia.
Onir de Araújo é advogado e representa o Quilombo Família Silva. É também representante do Movimento Negro Unificado.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O Quilombo Família Silva recebeu uma importante titulação no ano passado, reconhecendo suas terras. O que mudou de lá para cá?
Onir de Araújo – Existe agora uma segurança jurídica maior no que diz respeito à propriedade de território. Neste aspecto, é uma tranquilidade maior para a comunidade que, muitas vezes, trava lutas para o reconhecimento de seus direitos. O resultado de nossa resistência resultou, em 2005, na garantia da permanência dos quilombolas em um local que é o metro quadrado mais caro do Rio Grande do Sul. A titulação foi muito importante, não só devido ao nome da Família Silva, mas porque é referência nacional para a luta pelo espaço urbano, a partir de um referencial de povo negro. Este é, portanto, um marco. Só que continua o processo de luta para que eles tenham as condições dignas de viver ali. Ocorre que, apesar disto, a questão do olhar preconceituoso do próprio entorno e do próprio estado não vai acabar de uma hora para outra.
IHU On-Line – Quem está acuando o povo do quilombo dentro de seu próprio território?
Onir de Araújo – O que está acontecendo são abordagens abusivas e autoritárias feitas pela Polícia Militar em relação a membros da comunidade quando estão na praça, quando estão saindo ou chegando do trabalho o que vinha gerando bastante intranquilidade e insatisfação por parte da comunidade. Isso culminou no dia de 25 de agosto, quando estava o presidente da associação e o neto dele embaixo da placa do Incra, praticamente na entrada do território. O neto estava de velocípede, e os policiais já chegaram com armas em punho, rendendo e abordando. Naquele momento, um quilombola estava saindo do local para comprar carne, era mais ou menos umas 18h30min, e reclamou “é todo dia isso!”. O quilombola, indignado com as ameaças, retornou para o território, foi para casa e os dois policiais chamaram reforços e invadiram o quilombo, sem qualquer ordem judicial e entraram na casa dele, o agrediram, algemaram, espancaram com cassetete, na frente dos netos dele.
Eram quase 20 policiais, fortemente armados, que levaram o quilombola para o posto da Polícia Militar no 11º Batalhão. Quando o quilombo entrou em contato comigo, fui direto para a 8ª DP, onde fica a área judicial, onde ele deveria estar, mas não estava. Encontrei-o no Posto de Polícia e ele estava a praticamente uma hora ajoelhado, algemado, sofrendo ameaças. O entendimento da comunidade é que se caracteriza um olhar extremamente preconceituoso, racista em relação à comunidade. Muitos policiais, nas várias abordagens quando os quilombolas se identificavam como tal, “nós moramos ali, somos proprietários, somos quilombolas, somos moradores do bairro” eram ofendidos ouvindo que ali não era lugar de "vileiro".
A Polícia Militar tem que oferecer segurança não somente patrimonial, mas à vida, à integridade física ou moral, independente se a pessoa estiver cometendo um crime ou não. Sabemos que o olhar diferenciado do braço armado do estado, das polícias militares, é um olhar preconceituoso e racista em relação ao povo negro. Sabemos, pelos dados da ONU, que no ano passado no Brasil aconteceram 55 mil assassinatos, por hora são 37 jovens assassinados, a maioria na faixa entre 14 a 25 anos e negros. Essa situação toda gera um quadro de preocupação, na medida em que você não tem tranquilidade sequer para sair do seu local de moradia.
IHU On-Line – Há demandas relacionadas à segurança solicitadas pelo quilombolo, mas não atendidas?
Onir de Araújo – Existe uma demanda feita pela comunidade já há quatro anos que não foi atendida pelo governo que é do cerceamento da área, justamente para tirar o argumento que a Polícia Militar utiliza para invadir o quilombo. Os policiais afirmam que, como é uma área aberta, assaltos ocorrem no eixo da avenida Nilo Peçanha e os ladrões utilizam o território do quilombo para fugirem. Nós recebemos uma informação extraoficial por parte do Incra de que este muro seria feito agora, em regime de emergência, mas isso é sucessivamente dito, mas nunca é realizado.
Nós precisamos abordar esta discussão da segurança pública, de racismo institucional que os órgãos de segurança e repressão têm em relação ao bom negro e, em geral, em relação a luta do povo do Rio Grande do Sul. Nosso estado foi marcado, principalmente no ano passado, por um processo sucessivo de criminalização dos movimentos sociais. Tivemos o caso do assassinato do sem terra Elton Brum pela Polícia Militar, o que mostra a situação extremamente preocupante do órgão. Não podemos considerar normal esse tipo de ação da Polícia. Você não encararia como normal se um filho seu indo lhe visitar em casa, fosse toda hora abordado pela Polícia, sendo chutado, sendo ameaçado de lhe cercar de drogas ilícitas para criminalizá-lo, sendo algemado durante uma hora em plena via pública. Isso não pode ser considerado normal. Estatisticamente, você tem que considerar também que no bairro Três Figueiras os negros são a minoria da população, se no geral nós somos em torno de 22% no estado, ali no bairro nós não devemos chegar a 2% população total.
IHU On-Line – E como os outros moradores da região têm tratado os quilombolas?
Onir de Araújo – Quando estava no auge da questão da tentativa de despejo, havia torcida a favor da retirada da comunidade de lá para que saissemos da região. Mas a relação que se tem com a associação de moradores do bairro é extremamente cordial. É óbvio que existe um olhar de estranhamento por parte do entorno em relação à presença daquela comunidade negra ali. Lembro quando a Funasa fez um empreendimento de esgotamento sanitário nessa época da discussão do despejo. Quando chegaram os caminhões para fazer a obra, alguns vizinhos gritavam da janela “finalmente essa negrada vai ser tirada daqui”, mas era o caminhão de obra.
Existe, por mais que não se queira, preconceito. As pessoas encaram como um não-lugar para negros e pobres. Aquele lugar ali é para pessoas de classe média alta, ou até mais que isso, e não é normal se ter ali uma comunidade em que a maioria das pessoas seja negras, empregadas domésticas, jardineiros, por mais que sejam a mão de obra utilizada por boa parte dos condomínios para se manter os jardins, fazer a comida, limpar as latrinas. E agora tem essa situação criada pela Polícia Militar que gera mal estar para eles quando vão à praça, à padaria, à lanchonete, receberem parentes e assim por diante. Cria um mal estar. Além disso, o sonho de todas as grandes empresas imobiliárias é que ali tivesse quatro, cinco torres e, para isso, fizessem a “limpeza” da área” em relação a nossa presença lá. Mas o território é quilombola, está titulado e eles vão ter que respeitar a partir desta alteridade, reconhecida por lei.
IHU On-Line – De que forma as mudanças enfrentadas pelo município tiveram impacto para o Quilombo Família Silva?
Onir de Araújo – Muitas delas impactam negativamente. Geralmente o processo de urbanização do Brasil, Porto Alegre não é diferente disso, sempre é feita em detrimento da população negra e pobre. O areal da Baronesa e o Bonfim eram bairros onde viviam boa parte da população negra do estado do Rio Grande do Sul. O Parque da Redenção tem esse nome porque ali foi comemorado a Lei Áurea, e a libertação dos escravos. Toda essa região, os bairros Cidade Baixa, Bonfim, o eixo das avenidas Protásio Alves, Petrópolis e até a Nilo Peçanha eram regiões onde a presença negra era extremamente marcante. A aveninda Nilo era chamada de colônia africana de Porto Alegre, mas os processos de urbanização, a construção da perimetral, as aberturas de vias, sempre foram feitas em detrimento da população negra. No entanto, alguns nichos de resistência ficaram e hoje estão se organizando enquanto referenciais de luta ética quilombola pelo espaço territorial urbano. A questão quilombola hoje suscita essa discussão, tanto nos espaços urbanos como no mundo rural. Talvez esse seja o grande temor dos setores conservadores ligados ao grande capital imobiliário e que carregam um conteúdo de racismo extremamente grande.
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A criminalização dos quilombolas. Entrevista especial com Onir de Araújo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU