05 Novembro 2024
Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, nascido no Brasil e fundador do grupo católico tradicionalista “Arautos do Evangelho”, morreu no dia 1º de novembro aos 85 anos, após lutar contra as consequências de um derrame que ocorreu há 14 anos.
A informação é de Eduardo Campos Lima, publicado por Crux, 04-11-2024.
Em menos de 30 anos, o polêmico líder construiu uma associação laica e clerical presente em mais de 70 países, com escolas e centros de educação em todo o mundo.
Enquanto era visto por seus seguidores como a figura-chave em um futuro processo de restauração católica de um mundo degradado pelo secularismo e pela decadência moral, críticos o acusaram de ser um narcisista aspirante a ditador que criou uma seita pessoal ao seu redor.
O que parece inegável é que Clá Dias conseguiu usar sua personalidade carismática, sua vasta formação cultural e sua obstinação para transformar uma organização cívica em grande parte defunta – a Sociedade Brasileira em Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP) – em um enorme grupo operando sob a bênção do Vaticano.
Clá Dias nasceu em São Paulo em 1939, filho de uma mãe italiana e de um pai espanhol. Em 1956, conheceu pela primeira vez Plínio Corrêa de Oliveira (1908-1995), advogado católico cujo ativismo em prol do tradicionalismo católico lhe conferiu notoriedade nacional.
Em 1960, Plínio Corrêa criou oficialmente a TFP com um pequeno grupo de amigos católicos. Esse foi um momento crítico no Brasil, com uma ascensão sem precedentes da classe trabalhadora e uma forte reação política das elites.
Após a renúncia, em 1961, do presidente de direita Jânio Quadros, o esquerdista João Goulart, seu vice-presidente, assumiu o cargo. No entanto, o programa de reformas de Goulart não pôde ser implementado devido à oposição de vários segmentos das classes altas, e ele acabou sendo destituído por uma junta militar em 1964.
TFP inicialmente reuniu membros das elites tradicionais, como de Plínio, que sonhavam em restaurar a monarquia no país (que havia sido abolida em 1889) e em expandir o poder político da Igreja. O grupo gradualmente conseguiu atrair jovens da classe média e da classe trabalhadora (branca), como Clá Dias.
Plínio acreditava que o catolicismo atingiu seu auge durante a era feudal e via a erosão do feudalismo como parte de uma tendência histórica guiada por forças revolucionárias anticatólicas que continuariam a operar até que a barbárie reinasse.
Maçons, comunistas e hippies preparariam o caminho para a revolução, que ele uma vez definiu como o "segundo pecado original". Essa foi a motivação, segundo Plínio Corrêa, para lutar contra o comunismo e a infiltração da Nova Esquerda nas instituições, na educação e na Igreja.
A TFP se tornaria notória por sua crítica ao clero progressista e à Teologia da Libertação, visando às vezes diretamente bispos e até o pontífice. O grupo apoiava a Missa Tridentina e repudiava o Concílio Vaticano II.
Clá Dias provou ser fundamental na expansão da TFP ao longo das décadas, ajudando a implementar um sistema de arrecadação de doações e a moldar a dimensão religiosa do grupo, que tendia a ter uma presença pública mais política.
Em 1995, quando de Plínio Correa morreu, o restante da liderança da TFP tentou minar o seguimento de Clá Dias, formado principalmente por jovens recrutas. Uma feroz disputa se seguiu e as duas partes se dividiram, com a maioria das propriedades da TFP sendo retiradas do controle de Clá Dias.
Em 1999, ele fundou os Arautos do Evangelho.
“Para sobreviver e crescer, ele percebeu que precisava criar algo que fosse mais do que uma mera associação cívica como a TFP. Ele precisava se aproximar da Igreja”, disse à Crux o sociólogo André Altoé, professor no Instituto Federal Fluminense, que conduziu pesquisas sobre a TFP e os Arautos.
Clá Dias teve que mostrar que o novo grupo não era tão radical, em termos políticos e religiosos, como a TFP costumava ser, segundo Altoé. Os Arautos do Evangelho não discutiriam publicamente política, assumindo uma imagem pública completamente religiosa. Ele também estabeleceu uma ramificação feminina.
“Todas essas transformações foram realizadas porque Clá Dias sabia como ocupar o lugar do líder carismático que Plínio Corrêa foi”, afirmou Altoé.
Clá Dias se aproximou da Arquidiocese de São Paulo, então presidida pelo cardeal Claudio Hummes, e pediu ajuda para se tornar uma organização formal da Igreja.
“O cardeal Hummes me pediu para acompanhá-los, já que eu era um bispo auxiliar na época. Os radicais da TFP haviam desaparecido e eles queriam estar em comunhão com o papa. Eu dei a Clá Dias minhas recomendações em várias ocasiões”, disse à Crux dom Gil Antônio Moreira, arcebispo de Juiz de Fora.
Dom Gil disse a Clá Dias que escrevesse um documento demonstrando sua plena aceitação do Concílio Vaticano II e sua total obediência ao papa, assim como sua adesão a toda a doutrina católica.
“Ele era um homem muito inteligente, e diligente e rapidamente preparou isso. A Santa Sé os reconheceria oficialmente como uma associação de natureza pontifícia em 2001”, disse dom Gil. Ele estava em Roma nessa ocasião e presidiu uma Missa para celebrar o evento, com a presença de Clá Dias.
Com a bênção de São João Paulo II, os Arautos do Evangelho cresceram rapidamente no Brasil e em vários outros países. Sob a orientação de Clá Dias, proclamaram a beleza como o aspecto central de sua mensagem.
Em poucos anos, tornaram-se famosos por suas igrejas e capelas góticas, seus corais e orquestras, e seus hábitos distintivos, identificáveis por um escapulário marrom de comprimento total com uma grande cruz de São Tiago na frente. Depois de alguns anos, fundaram suas primeiras escolas.
Em 2005, em um movimento que surpreendeu muitos, Clá Dias foi ordenado sacerdote aos 65 anos, junto com outros 14 membros do grupo. A sociedade de vida clerical que ele fundou foi aprovada pelo Papa Bento XVI em 2009. Segundo o site da associação, agora conta com 161 padres e mais de 300 seminaristas.
O estilo dos Arautos atraiu muitas pessoas ao longo dos anos. Dom Gil disse que eles estão à frente de uma igreja em Juiz de Fora/MG e conseguiram converter muitos paroquianos. “Sua liturgia é muito bonita e colorida, acompanhada por uma orquestra. Isso é algo atrativo, e pessoas que não frequentavam a igreja agora são católicos praticantes”, disse ele.
Dom Sérgio Colombo, de Bragança Paulista/SP, também descreveu como o carisma dos Arautos tem impactado positivamente uma paróquia em sua diocese. “Seus hábitos, sua música e seu conhecimento têm atraído muitas pessoas. Eles estão sempre presentes quando são convidados a animar uma celebração ou uma procissão em outra paróquia”, contou à Crux.
A expansão do grupo, no entanto, foi seguida por crescentes acusações e até alguns escândalos na última década. Os últimos anos de Clá Dias foram marcados pelos desafios que enfrentou ao gerenciar tais distúrbios e pelos danos à sua imagem.
Um dos escândalos mais notórios ocorreu em 2017, quando o jornal italiano La Stampa divulgou um vídeo gravado anos antes, no qual um grupo de Arautos ouve o relato de uma conversa de um exorcista com o diabo. Clá Dias é visto liderando a reunião, apesar da dificuldade de falar causada por um derrame em 2014.
Em um momento, ele chamou a atenção dos participantes para uma passagem em que o diabo supostamente disse que o Papa Francisco é “o homem dele” e que ele é “estúpido e faz tudo o que eu quero”. O vídeo viralizou e levou Clá Dias a renunciar como líder dos Arautos.
Outro golpe para o grupo ocorreu em 2019, quando mães de crianças que estudavam nas escolas dos Arautos denunciaram várias práticas suspeitas, especialmente o fato de que as crianças tinham pouco contato com suas famílias e agiam como “robôs” quando finalmente se encontravam. Uma reclamação comum era que os Arautos ensinavam os jovens a se distanciar de suas famílias, dizendo que eram a origem de seus hábitos pecaminosos.
A TV Globo, o principal conglomerado de mídia do Brasil, informou que os alunos não conseguiam ter conversas particulares com suas famílias por vários dias e podiam fazer ligações apenas usando telefones fixos. Também havia evidências de que as escolas não seguiam o currículo oficial brasileiro e ensinavam apenas coisas que haviam sido aprovadas pela associação.
Pelo menos duas meninas menores de idade acusaram Clá Dias de tê-las abusado. Uma disse que sofreu toques inadequados em seus seios e nádegas durante quatro anos, começando quando tinha 12 anos. A outra afirmou que ele a beijou na boca quando tinha 11.
As acusações levaram a uma investigação, e o judiciário brasileiro ordenou que os Arautos fechassem suas escolas internas. Durante anos, à medida que o caso progredia, ex-membros contaram à imprensa sobre atos ainda mais escandalosos envolvendo apropriação de fundos e abuso psicológico. Vídeos de meninas sendo violentamente “exorcizadas” por Clá Dias também chocaram muitos no país.
O Vaticano abriu sua própria investigação, e em 2019, o cardeal Raymundo Damasceno foi nomeado como comissário do Vaticano para os Arautos.
O grupo não foi exatamente receptivo às decisões vaticanas. Quando Damasceno foi nomeado, os Arautos alegaram que não eram institucionalmente obrigados a aceitar nenhuma interferência. Quando o Vaticano ordenou que fechassem as escolas, eles deram uma resposta semelhante.
A associação venceu ambos os casos judiciais relacionados às escolas, em 2022 e no início deste ano, em julho. Segundo dom Gil, “todas as acusações provaram ser falsas”.
“Muitos pais de alunos declararam seu apoio aos Arautos. Eles têm uma escola aqui em Juiz de Fora, e posso dizer que essas alegações não são verdadeiras”, disse ele. Em sua opinião, a “mídia os difamou e agora não está trabalhando para restaurar sua imagem”.
“É possível que o Vaticano tenha cometido um erro ao interferir. Eles podem estar jogando o jogo da mídia ao focar apenas nas coisas negativas, ao invés de observar o bem que os Arautos fazem”, afirmou dom Gil.
Embora tenha enfrentado desafios internos e externos, o cardeal Orani Tempesta se mostrou otimista quanto ao futuro dos Arautos.
“Desde que se tornaram uma associação de direito pontifício, a única maneira de se livrar deles é a vontade do papa e, até agora, o papa não tomou nenhuma medida. Ele fez muitas críticas a Clá Dias, mas não o expulsou”, disse à Crux um dos ex-colaboradores de Damasceno, que pediu para permanecer anônimo.
“Ele fez muitas mudanças nas escolas, nas relações com as famílias e na forma de tratar as crianças”, afirmou dom Gil Moreira.
Um dos mais proeminentes críticos dos Arautos é Júlio de Lima, um ex-membro que abandonou a associação. Ele se juntou ao grupo em 1994, e sua história é repleta de uma vida de dedicação a Clá Dias.
Júlio afirmou à Crux que viveu um momento complicado dentro do grupo, onde era visto como um dos líderes em potencial. “Eu era uma pessoa que acreditava em Clá Dias. Ele tinha uma forte aura de autoridade e era um ótimo comunicador. Mas o tempo passou e eu percebi que ele tinha uma personalidade mais egocêntrica. A cada dia, ele se parecia mais com um ‘santo’ na frente de todos, mas não era assim nos bastidores”, disse.
O ex-embro da associação se lembra de como Clá Dias “sempre viveu em grandes palácios e tinha carros de luxo”. Júlio também criticou o fato de que Clá Dias “passou anos criticando a Igreja, chamando-a de ‘a estrutura’ e se referindo a São João Paulo II como ‘JP2’, mas depois decidiu hipocritamente fingir que era leal a ela”.
“Ele declararia anos depois que a aprovação pontifícia concedida pelo Papa João Paulo II aos Arautos foi um ato que o converteu”, afirmou Júlio, que disse que ingressou no grupo aos 15 anos e passou todo o tempo trabalhando no mesmo departamento. Quando pediu para ser transferido para outra área, afirmou que não aceitaram.
“Fiquei mentalmente frágil e um dia simplesmente pulei o muro, tentando escapar. Eles me mandaram para uma clínica psiquiátrica. Passei 10 dias lá sofrendo coisas terríveis, amarrado a uma cama. Minha irmã me tirou de lá”, descreveu.
Depois desse incidente, ele nunca quis voltar e deixou o grupo. Ele disse que ainda lida com o trauma. “Desde os 8 anos, sonhei em ajudar a Igreja, porque minha família recebeu muita ajuda. Agora, não vou mais à igreja. Os Arautos tiraram isso da minha alma”, disse ele.
Júlio, que foi processado pelos Arautos por difamação em 2019 – eles perderam o caso –, definiu Clá Dias como um “ditador manipulador e oportunista, um protótipo de Jim Jones”.
Apesar de tais acusações, Clá Dias morreu sem nenhuma condenação legal. Organizações significativas no Brasil lamentaram sua morte, como a Ordem dos Advogados do Brasil. O cardeal Orani Tempesta, do Rio de Janeiro, emitiu uma carta de condolências à associação.