"O Espírito é como vento que tira as coisas do lugar, e que você não pode pegar, porque não sabe de onde vem nem para onde vai (Jo 3,8)... O Espírito é a Profecia liberada, impetuosa e avassaladora que nenhum poder deste mundo é capaz de dominar, de prender ou abafar. A profecia é a denúncia de toda forma de opressão e o anúncio de que tudo pode ser diferente! Como dissera o Profeta Joel: 'Derramarei o meu Espírito sobre todos os viventes, e os filhos e filhas de vocês se tornarão profetas; entre vocês, os velhos terão sonhos e os jovens terão visões! Nesse dia, até sobre os escravos e escravas derramarei meu Espírito' (Joel 3,1)."
A reflexão é de Tereza Maria Pompéia Cavalcanti. Graduada em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1966), em Ciências Religiosas pela Universidade Católica de Louvaina, (1971) e em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2003), é mestre e doutora em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio (1983 e 1991, respectivamente). Atualmente é prestadora de serviços do Centro de Estudos Bíblicos e professora assistente na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Pastoral, atuando principalmente nos seguintes temas: pastoral popular, bíblia, espiritualidade, mulher e comunidades eclesiais de base.
1ª Leitura - At 2,1-11
Salmo - Sl 103, 1ab.24ac.29bc-30 31.34 (R.30)
2ª Leitura - 1Cor 12,3b-7.12-13
Evangelho - Jo 20,19-23
O Evangelho desta grande festa de Pentecostes começa com uma nota temporal: “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana.” João já havia descrito em seu Evangelho a aparição de Jesus ressuscitado a Maria Madalena, no alvorecer do primeiro dia da semana. Os outros 3 Evangelhos também se referem às primeiras horas da manhã quando falam do anúncio da Ressurreição de Jesus às mulheres. Essa anotação de tempo tem o aspecto simbólico de remeter ao início – ou reinício - de tudo: as primeiras horas do primeiro dia.
Estamos diante de uma nova Criação!
As mulheres receberam o primeiro anúncio. Os outros discípulos receberão a notícia também no primeiro dia, mas ao entardecer. Esse horário também tem um sentido. É o momento da ceia e a chegada da noite, quando se necessita de proteção. Sim, os discípulos estavam com medo, por isso as portas fechadas.
Esse é o cenário dessa segunda aparição de Jesus, o Crucificado, agora Ressuscitado, para quem não há portas fechadas. O Mestre percebe o medo dos discípulos e responde com uma saudação de paz: “A paz esteja com vocês!”. Logo depois vai repetir essas mesmas palavras. De fato, a paz era uma promessa que o Senhor havia feito em sua despedida na última ceia, após o lava-pés: “Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz” (Jo 14,27).
Dita esta saudação, Jesus lhes mostra as mãos e o lado: para que reconhecessem que era mesmo o crucificado! Ao fazerem essa identificação, o texto diz que os discípulos se alegram. Outra promessa cumprida, pois o Senhor lhes havia dito na véspera da paixão: “Assim, vós agora estais tristes, mas eu voltarei a vos visitar, e vos enchereis de alegria, e ninguém vos tirará vossa alegria!” (Jo 16,22).
Uma vez recuperados os discípulos, Jesus vai enviá-los em missão, assim como ele próprio tinha sido enviado pelo Pai. Mas para isso o Senhor articula um gesto pleno de significado: sopra sobre eles - e elas - o sopro do Espírito. E fala: “Recebei o Espírito Santo.”
O gesto de “soprar” havia aparecido no ato de Deus ao criar o ser humano, infundindo-lhe a respiração, ou seja, a vida, a alma. Aqui a palavra “espírito”, em grego pneuma, tem o sentido de vida, simplesmente, aquele princípio vital que anima o corpo humano.
Mas quando Jesus transmite o Espírito Santo, simbolizado no sopro divino (e traduzido para o grego também como Pneuma) ele está num outro patamar. Trata-se de uma pessoa, do Consolador, o Paráclito, Aquele que defende e conforta; Aquele que encoraja e reanima, Protetor e Advogado, que ficará junto aos discípulos e discípulas enviados em missão.
Se fossemos pensar no momento primeiro da criação do universo, a Bíblia diz que antes do gesto criador, “um vento impetuoso (Ruah) pairava sobre as águas” (Gn 1,2). Aqui estava já o Espírito de Deus, como que “chocando” a vida, fazendo brotar toda a criação.
Esse Espírito volta agora sobre os discípulos e discípulas de Jesus e vai se expressar na ventania em volta deles e da casa onde se escondiam com medo. Línguas de fogo são a outra forma de expressar o que estava acontecendo, porque os seguidores e as seguidoras de Jesus vão soltar a língua e fazer da Palavra o próprio testemunho. Línguas de fogo - palavras ardentes - entusiasmo - Deus dentro de nós! Este é o efeito do Espírito!
Não há como manter as portas fechadas, a ventania as abre e os gritos de alegria soam na praça para espanto das pessoas!
Ali acontece a nova Babel. Porque a primeira Babel pode ser interpretada, como nos mostrou o biblista Milton Schwantes, como uma reação das periferias ao Império: o império era a repetição do mesmo: a imposição de uma única língua, uma única cultura, uma única moeda, uma uniformidade obrigatória, a proibição das diferenças, a interdição da diversidade, o apagamento da criatividade.
O Espírito desmonta as ditaduras, desfaz as falsas unanimidades, faz explodir o poder do dinheiro/mamon que se julga todo-poderoso: "Tudo isto te darei, se prostrado me adorares”, dissera Satanás a Jesus (Mt 4,9), mas Este o expulsou.
O Espírito é como vento que tira as coisas do lugar, e que você não pode pegar, porque não sabe de onde vem nem para onde vai (Jo 3,8)... O Espírito é a Profecia liberada, impetuosa e avassaladora que nenhum poder deste mundo é capaz de dominar, de prender ou abafar. A profecia é a denúncia de toda forma de opressão e o anúncio de que tudo pode ser diferente! Como dissera o Profeta Joel: “Derramarei o meu Espírito sobre todos os viventes, e os filhos e filhas de vocês se tornarão profetas; entre vocês, os velhos terão sonhos e os jovens terão visões! Nesse dia, até sobre os escravos e escravas derramarei meu Espírito” (Joel 3,1).
O Espírito é a herança que Jesus nos deixou, para que não nos sintamos sós, abandonados/as, vencidas/os pelo medo, pelo cansaço ou pelo sofrimento. E essa herança é dada à Comunidade, não a um só líder ou iluminado. A comunidade é sustentada pelo Amor, pela solidariedade, pelo cuidado de uns com os outros e outras. Por isso a comunidade tem essa capacidade de perdoar, de esperar o momento do outro, aquele que se separou, voltar como a ovelha perdida. Mas o cuidado se expressa sobretudo no partir do pão, na comunhão de toda a vida! A partilha que reúne as diferenças numa unidade, como diz São Paulo na epístola aos Coríntios, porque um mesmo é o Espírito, na diversidade dos dons. E assim vamos caminhando em Igreja sinodal e cantando com o salmista:
Enviai o vosso Espírito Senhor, e renovai a face da terra! E renovai a face da terra! (Sl 104, 30)