13 Dezembro 2018
"O pensamento de direita conquistou espaço na sociedade com importante contribuição das religiões cristãs de vertente fundamentalista (incluída a católico-romana). Em sua versão vulgar ele traz o criacionismo, justifica o racismo e o patriarcado e outros sistemas de exclusão; em sua versão erudita ele justifica a liberdade individual como fundamento da lei natural que não pode ser mudada pelo Estado. Na versão teológica ele separa corpo e alma e se volta unicamente pela salvação desta (por meio de rituais), deixando as realidades materiais sob o domínio do mercado."
A análise é de Pedro A. Ribeiro de Oliveira, leigo católico, nascido em 1943, doutor em sociologia, ex-professor nos Programas de Pós-Graduação em Ciência/s da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora e da PUC-Minas. É membro de Iser-Assessoria e da Coordenação do Movimento Nacional Fé e Política.
Análise de conjuntura não é o mesmo que análise dos acontecimentos, porque supõe o prévio conhecimento – sempre hipotético – da estrutura que fornece a lógica dos processos históricos. Sem uma definição do que é estrutural, não é possível avaliar o impacto dos acontecimentos nas bases de um conjunto social. Por isso a análise de conjuntura deve situar os fatos (visíveis) no plano das estruturas (invisíveis). É o que tento fazer aqui, para decifrar o sentido profundo dos resultados das eleições deste ano.
Distingo três planos estruturais: o sistema de vida da Terra, o sistema-mundo com seu modo de produção e consumo capitalista, e o sistema (social, político, cultural e econômico) brasileiro. É claro que nos interessa especificamente o último sistema, mas não podemos esquecer que ele está subordinadamente integrado nos dois outros. Por isso, farei breve menção das mudanças conjunturais em cada um deles. Na conclusão indico algumas implicações práticas para quem se identifica com as lutas das classes trabalhadoras, dos povos originários e dos grupos socialmente discriminados.
Tornaram-se frequentes os sinais de mudanças estruturais no sistema Terra. Ao abrir a reunião da COP-24, em Katowice, Polônia, disse o secretário-geral da ONU: “Estamos em apuros. Estamos em grandes apuros com as mudanças climáticas”. Porque ele tem uma visão global, sabe avaliar o significado de uma catástrofe climático-ambiental. E sabe que ela poderá acontecer ainda antes de 2050, caso não sejam tomadas as medidas recomendadas pela comunidade científica internacional – medidas que as megacorporações não aceitam porque prejudicam seus lucros. A situação se agrava porque os Estados nacionais dão mais prioridade aos lucros das empresas do que ao equilíbrio climático e ecológico. O caso do presidente dos EUA é emblemático, mas muitos outros governantes se submetem às megacorporações embora se declarem defensores do meio ambiente.
Ainda não nos habituamos a entender a questão ambiental como uma questão política, e isso reduz muito nosso campo de visão. É preciso ampliar nossas categorias de pensamento para incluir a Terra – ou, pelo menos, sua comunidade de vida – como sujeito da história, e não mais como coisa. Ela está sofrendo e esse sofrimento atinge a espécie humana, embora as categorias científicas de que disponho não consigam desvendar essa conexão. Tudo se passa como se espécie homo sapiens esteja a pressentir sua extinção e por isso dá vazão a comportamentos irracionais como ódio aos semelhantes, voracidade do consumo, aceitação da pós-verdade, refúgio no mundo virtual e outras práticas que destroem a tessitura social. No polo oposto, esse mesmo pressentimento favorece a emergência de uma outra consciência na relação com a Terra, a qual começa a ser percebida como sujeito de direitos e ser vivo do qual a espécie humana faz parte. Essa consciência se expressou na Carta da Terra, publicada em 2000 e desde então tem se expandido por toda parte, inclusive recuperando concepções ancestrais de povos originários como o Sumak Kawsay (Bem-Viver).
Atenção: Essa realidade de âmbito planetário precisa ser seriamente considerada não só porque ela pode ajudar a explicar fenômenos aparentemente absurdos, como porque ainda é possível ao menos amenizar a catástrofe ambiental que se anuncia. No mínimo, ela precisa ser considerada como um obstáculo intransponível ao crescimento econômico de médio e longo prazo. Isso inclui o projeto chinês da nova rota da seda, que prevê investimento de US$5 trilhões até 2049, poderá fracassar se desconsiderar os estragos advindos da catástrofe ambiental.
Seu polo dinâmico está passando dos EUA para a China (ou Chíndia?) e essa transição é marcada pela (1) financeirização do capital e (2) clima de guerra. A crise de 2008 ainda não terminou e a situação econômica mundial continuará conturbada enquanto o dólar US for a moeda das transações internacionais. Esse conflito econômico entre as potências emergentes e as decadentes já adquiriu a forma de guerra: atualmente são guerras localizadas, étnicas, contra drogas ou terrorismo, mas podem tornar-se guerra direta entre as grandes potências. A China provavelmente será vencedora e modelará outra forma de capitalismo – a economia verde – conquistando a hegemonia mundial no século 21. Nesse contexto, o Brasil do novo governo se alinhará subservientemente com o provável perdedor (EUA).
Atenção: Essa inserção do Brasil como parceiro subalterno dos EUA decorre da crise de 2008: a classe dominante rompeu o pacto de não-agressão oferecido pelo PT e trocou o projeto desenvolvimentista dos governos Lula e Dilma pela política de Temer e Bolsonaro de subordinação ao governo dos EUA. Ela é determinante na explicação do golpe de 2016 e da vitória eleitoral da direita. Por sua posição geopolítica e econômica, o Brasil é um país chave na América do Sul, onde só falta dobrar a Bolívia e a Venezuela aos interesses estadunidenses.
O resultado das eleições deixou evidente a mudança na correlação de forças entre as classes sociais. A classe dominante (composta por cerca de 40 mil famílias que se beneficiam da financeirização do capital, o que não impede de também controlar o processo produtivo) aproveitou-se do descontentamento popular manifestado em 2013 para romper o pacto de não-agressão proposto pelo PT de Lula (em nome das classes trabalhadoras). Desde então recorre à agressividade para eliminar – ou ao menos afastar do campo político – os grupos por meio dos quais as classes trabalhadoras e setores subalternos se expressam ou se organizam (como o PT e seus aliados, Movimentos como MST, MTST, Indígenas, negros, mulheres, LGBT e outros), ou que as apoiam (como setores de Igrejas, universidades, intelectualidade etc). Talvez caiba o rótulo de fascista a essa proposta por não ceder espaço à luta de classes dentro da institucionalidade democrática, mas visar a eliminação das classes trabalhadoras enquanto agente político.
Atenção: Essa mudança da conjuntura tem forte incidência estrutural porque afeta diretamente a correlação de forças da luta de classes. A classe dominante – com seus distintos setores (financeiro, agronegócio, minerador, industrial, comercial) – optou por submeter-se às grandes corporações transnacionais, abandonando o projeto nacional-desenvolvimentista proposto pelo PT em 2002 como base do pacto que baseou os governos petistas. Pelo menos temporariamente, a classe dominante conseguiu a adesão das classes médias e os votos da massa popular. Para isso conta com a habitual colaboração da mídia e o apoio das Igrejas neopentecostais e de setores conservadores das Igrejas Evangélicas e Católica. Embora seu ideário político-social dependa de pensadores do quilate de Olavo Carvalho, isso parece bastar para conquistar a adesão da grande massa de insatisfeitos com o sistema atual, que atiça o desejo de consumo mas não o satisfaz.
O resultado foi a derrota das classes trabalhadoras. Em três anos de luta suas forças foram exauridas. Mas não se acabaram.
(1) No campo político, contam ainda com uma bancada relativamente forte na Câmara (se for feito um bom arco de alianças, ela será suficiente para evitar aprovação de PECs), alguns senadores e governos estaduais.
(2) No campo social, os Movimentos Sociais organizados e os Povos Indígenas dão mostras de resiliência, bem como o que resta dos sindicatos.
(3) No campo do pensamento, a maior parte da população universitária resiste à proposta fascista; as CEBs e Pastorais sociais, bem como um número crescente de bispos católicos e pastores, embora minoritários, não deixam morrer o Cristianismo da Libertação; os e as artistas animam a resistência popular, e seria possível elencar ainda outras forças.
(4) No campo econômico as pequenas unidades de economia solidária e cooperativas populares sobrevivem, mesmo à margem da economia formal.
1. Há um problema estratégico. Hoje chegam inúmeros apelos à resistência: resistir à prisão do Lula, aos ataques a Territórios indígenas e quilombolas e assentamentos de trabalhadores rurais, à política de privatizações, à reforma de previdência, à redução da maioridade penal, ao desmatamento da Amazônia e do Cerrado, à escola sem partido, aos ataques a defensores e defensoras dos Direitos Humanos, à comunidade LGBT e tantas outras medidas que se anunciam. Não é possível, contudo, atuar em todas frentes de combate a que somos convocados e é muito triste abandonar companheiros nas mãos dos inimigos. A sabedoria reside em lidar com tantas frentes, reunir forças e fazer um trabalho bem articulado e formativo. Essa sabedoria é importantíssima nos dias de hoje. Para isso, há que restaurar as forças.
2. Restaurar as forças é fundamental. É preciso buscar refúgio onde se possa trocar ideias, rever serenamente os próprios erros e acertos sem acusar terceiros. Esse retiro não é perda de tempo. É fazer um recuo estratégico, onde seja possível fazer o processo de formação política e tecer novos laços de solidariedade. Embora esse recuo possa deixar espaço para o avanço das hordas adversárias, suas desavenças internas (que já são evidentes) tendem a desgasta-las em pouco tempo. Assim, ao voltar à luta seremos muito mais fortes do que hoje (e elas mais fracas).
É claro que há demandas tão graves ou urgentes que nos obrigam a sair do retiro e retornar ao confronto direto. Mas nesse caso o lado mais fraco só tem chance de vitória se estiver na defensiva. Sabe-se que as forças de quem se defende se multiplicam por dez, desde que sua defesa seja sólida e não se aventure à luta em campo aberto. Talvez seja o caso da reforma da Previdência, de privatizações que violem a Constituição, a proteção a defensores dos Direitos Humanos e a preservação da Amazônia (que tem forte apoio internacional).
3. Voltar às bases é dedicar-se ao trabalho direto, pessoal, para fazer conscientização e organização. Bases são os grupos de solidariedade pessoal (família, vizinhança, igreja, de amizade, de trabalho, associação por afinidade e outros) onde as relações pessoais se revestem de laços afetivos (e não necessariamente grupos populares). A esses grupos devemos nos voltar, agora, cada qual para aquele/s onde é bem recebido ou recebida, sempre dando prioridade aos grupos formados por gente pobre, vulnerável ou jovem. Trata-se de ir a essas bases para retomar o trabalho de educação política, isto é, de conscientização e de organização, sabendo que ele exige capacitação e que leva tempo.
4. Exercer (ou reconquistar) a hegemonia intelectual e cultural é a missão dos e das intelectuais vinculadas/os às classes trabalhadoras. Essa missão foi bem desempenhada ao longo do século 20, quando os valores democráticos, igualitários e libertários se difundiram por todo Ocidente) deixando envergonhadas as pessoas que dele divergiam (tradicionalistas, racistas etc). A vitória do capitalismo na guerra fria, porém, favoreceu o pensamento de direita, que propõe a desigualdade como fator de progresso, e vê nas elites o resultado da ordem natural.
Esse pensamento de direita conquistou espaço na sociedade com importante contribuição das religiões cristãs de vertente fundamentalista (incluída a católico-romana). Em sua versão vulgar ele traz o criacionismo, justifica o racismo e o patriarcado e outros sistemas de exclusão; em sua versão erudita ele justifica a liberdade individual como fundamento da lei natural que não pode ser mudada pelo Estado. Na versão teológica ele separa corpo e alma e se volta unicamente pela salvação desta (por meio de rituais), deixando as realidades materiais sob o domínio do mercado. Esse pensamento se difunde como defesa da família, da vida e dos valores tradicionais ameaçados pelo marxismo cultural que é apontado como o grande inimigo da civilização ocidental cristã: não tendo conseguido derrota-la pela economia (fim do socialismo soviético), quer derrota-la destruindo as bases morais da família.
Embora esse pensamento tenha uma argumentação rasa e mal fundamentada, ganha adeptos recorrendo às emoções: medo do diferente, medo da liberdade feminina, busca de segurança no passado idealizado, orgulho de ser pobre mas honrado etc. Após sua aparente derrota para a modernidade, ele volta à tona de forma agressiva atacando quem defende um pensamento libertador ou libertário.
Contra ele três medidas são recomendadas: (1) não repassar as mensagens que falam de seus avanços e abusos, (2) não se curvar diante das intimidações e ameaças, mas seguir em frente, e (3) sempre que possível rebater os argumentos e esclarecer as ideias, mas ignorar os ataques pessoais.
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Análise de conjuntura: novo ensaio. Artigo de Pedro A. Ribeiro de Oliveira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU