12 Junho 2018
O texto abaixo integra ‘Ruptura’, novo livro do sociólogo espanhol que a Zahar lança neste mês. Nele, o autor sustenta que a antiga ordem político-institucional foi superada e afirma que aprender a viver no caos talvez não seja tão nocivo.
O texto é publicado por Folha de S. Paulo, 09-06-2018.
No lo que pudo ser:
es lo que fue.
Y lo que fue está muerto.
Octavio Paz, "Lección de Cosas", 1955
Em tempos de incertezas costuma-se citar Gramsci quando não se sabe o que dizer. Em particular, sua célebre assertiva de que a velha ordem já não existe e a nova ainda está para nascer. O que pressupõe a necessidade de uma nova ordem depois da crise.
Mas não se contempla a hipótese do caos. Aposta-se no surgimento dessa nova ordem de uma nova política que substitua a obsoleta democracia liberal que, manifestamente, está caindo aos pedaços em todo o mundo, porque deixa de existir no único lugar em que pode perdurar: a mente dos cidadãos.
A crise dessa velha ordem política está adotando múltiplas formas. A subversão das instituições democráticas por caudilhos narcisistas que se apossam das molas do poder a partir da repugnância das pessoas com a podridão institucional e a injustiça social; a manipulação midiática das esperanças frustradas por encantadores de serpentes; a renovação aparente e transitória da representação política através da cooptação dos projetos de mudança; a consolidação de máfias no poder e de teocracias fundamentalistas, aproveitando as estratégias geopolíticas dos poderes mundiais; a pura e simples volta à brutalidade irrestrita do Estado em boa parte do mundo, da Rússia à China, da África neocolonial aos neofascismos do Leste Europeu e às marés ditatoriais na América Latina.
E, enfim, o entrincheiramento no cinismo político, disfarçado de possibilismo realista, dos restos da política partidária como forma de representação. Uma lenta agonia daquilo que foi essa ordem política.
De fato, a ruptura da relação institucional entre governantes e governados cria uma situação caótica que é particularmente problemática no contexto da evolução mais ampla de nossa existência como espécie no planeta azul. Isso no momento em que se questiona a habitabilidade deste planeta a partir da própria ação dos humanos e de nossa incapacidade de aplicar as medidas corretoras, de cuja necessidade estamos conscientes.
E no momento em que nosso extraordinário desenvolvimento tecnológico entra em contradição com nosso subdesenvolvimento político e ético, pondo nossas vidas nas mãos de nossas máquinas.
E em que as condições ecológicas nas megalópoles, que concentram uma proporção crescente da população mundial, podem provocar, e de fato provocam, pandemias de todo tipo, que se transformam em mercado para as multinacionais farmacêuticas, esse malévolo poder que raptou e deformou a ciência da vida para seu exclusivo benefício.
Um planeta no qual a ameaça de um holocausto nuclear continua vigente pela loucura de endeusados governantes sem controle psiquiátrico. E no qual a capacidade tecnológica das novas formas de guerra, incluída a ciberguerra, prepara conflitos possivelmente mais atrozes do que os vividos no século 20. Sem que as instituições internacionais, dependentes dos Estados, e portanto da pequenez de objetivos, da corrupção e da falta de escrúpulos daqueles que os governam, sejam capazes de pôr em prática estratégias de sobrevivência para o bem comum.
A ruptura da mistificação ideológica de uma pseudo-representatividade institucional tem a vantagem da clareza da consciência a respeito de que mundo vivemos.
Mas nos precipita na escuridão da incapacidade de decidir e atuar porque não temos instrumentos confiáveis para isso, particularmente no âmbito global em que pairam as ameaças sobre a vida.
A experiência histórica mostra que do fundo da opressão e do desespero surgem, sempre, movimentos sociais de diferentes formas que mudam as mentes e, através delas, as instituições. Como aconteceu com o movimento feminista, com a consciência ecológica, com os direitos humanos.
Mas também sabemos que, até agora, as mudanças profundas demandaram uma substituição institucional a partir da transformação das mentes. E é nesse nível, o político-institucional propriamente, que o caos continua imperando. Daí a esperança, abrigada por milhões, de uma nova política.
Contudo, quais são as formas possíveis dessa nova política? Não estaríamos diante do velho esquema da esquerda, de esperar a solução mediante o aparecimento de um novo partido, o autêntico transformador que finalmente seja a alavanca da salvação humana? E se tal partido não existir? E se não pudermos recorrer a uma força externa àquilo que somos e vivemos para além de nossa cotidianidade?
Qual é essa nova ordem que necessariamente deve existir e substituir aquilo que morre? Ou será que estamos numa situação historicamente nova, na qual nós, cada um de nós, devemos assumir a responsabilidade de nossas vidas, das de nossos filhos e de nossa humanidade, sem intermediários, na prática de cada dia, na multidimensionalidade de nossa existência?
Ah, a velha utopia autogestionária. Mas por que não? E, sobretudo, qual é a alternativa? Onde estão essas novas instituições dignas da confiança de nossa representação?
Auscultei muitas sociedades nas duas últimas décadas. E não detecto sinais de nova vida democrática por trás das aparências.
Há projetos embrionários pelos quais tenho respeito e simpatia, sobretudo porque me emocionam a sinceridade e a generosidade de tanta gente. Mas não são instituições estáveis, não são protopartidos ou pré-Estados. São humanos agindo como humanos.
Utilizando a capacidade de autocomunicação, deliberação e codecisão de que agora dispomos na Galáxia Internet. Pondo em prática o enorme caudal de informação e conhecimento de que dispomos para gerir nossos problemas. Resolvendo o que vai surgindo a cada instante. E reconstruindo de baixo para cima o tecido de nossas vidas, no pessoal e no social.
Utópico? Utópico é pensar que o poder destrutivo das atuais instituições pode deixar de se reproduzir em novas instituições criadas a partir da mesma matriz. E, já que a destruição de um Estado para criar outro leva necessariamente ao Terror, como já aprendemos no século 20, poderíamos experimentar e ter a paciência histórica de ver como os embriões de liberdade plantados em nossa mente por nossa prática vão crescendo e se transformando.
Não necessariamente para constituir uma ordem nova. Mas sim, quem sabe, para configurar um caos criativo no qual aprendamos a fluir com a vida, em vez de aprisioná-la em burocracias e programá-la em algoritmos. Dada nossa experiência histórica, aprender a viver no caos talvez não seja tão nocivo quanto conformar-se à disciplina de uma ordem.
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'Aprender a viver no caos pode não ser tão nocivo', afirma Manuel Castells - Instituto Humanitas Unisinos - IHU