16 Mai 2018
A privatização do ensino superior público avança sobre a América Latina. Esta é a avaliação feita por Eduardo Rolim, diretor de Relações Sindicais do Sindicato Intermunicipal dos Professores de Instituições Federais de Ensino Superior do Rio Grande do Sul (Adufrgs-Sindical) e diretor de Relações Internacionais do Proifes-Federação, em entrevista ao Sul21. Para ele, a combinação dos interesses de conglomerados internacionais e das políticas do governo de Michel Temer (MDB), em especial da aprovação da Emenda Constitucional 95, a chamada lei do Teto dos Gastos, precisa ser revertida ou resultará na mercantilização da educação e desconstituição das rede pública como a conhecemos hoje.
A reportagem é de Luís Eduardo Gomes, publicada por Sul21, 16-05-2018.
Rolim avalia que, apesar de os países da América Latina terem diferenças entre os seus sistemas de ensino superior — na Argentina, a rede é praticamente pública; no Chile, também, mas é paga; o Brasil tem o maior parque universitário público do hemisfério sul, ao mesmo tempo em que dois terços de suas matrículas estão na rede privada –, há um avanço do interesse de conglomerados mundiais sobre os sistemas da região. “A gente não pode falar só de compra de universidades, que é um fenômeno bem brasileiro”, afirma. “Ela se dá de várias maneiras. Entre elas, a compra de sistemas de formação de professores e a venda de pacotes educativos, principalmente para os municípios. Isso é basicamente a transferência de dinheiro público para o setor privado. Os municípios pequenos, em geral, fazem uma licitação e compram todo um pacote de formação de professores, o sistema pedagógico e apostilas”, complementa.
Ele destaca que o caso mais notório de expansão do setor privado é a rede Kroton Educacional. Em 2014, fundiu-se com a Anhanguera, criando a maior rede do mundo em termos de alunos. Em 2017, o grupo tentou comprar a rede Estácio de Sá, segunda maior do País, mas a operação foi barrada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que considerou que o negócio criaria uma concentração de mercado prejudicial à concorrência. Contudo, recentemente, a Kroton avançou sobre outras áreas da educação com a compra do grupo Somos Educação, em um negócio de R$ 4,6 bilhões. Entre outras coisas, a Somos era proprietária das editoras Ática e Saraiva, principais produtoras de livros didáticos a nível escolar. “Quer dizer, tu tem um grupo empresarial que é proprietário desde universidades até a editoração dos livros que nossos filhos vão usar”, afirma.
Por ironia, a grande expansão do setor privado de educação no Brasil é atribuída à expansão de programas públicos, o ProUni e o FIES. Este último acabou se consolidando em uma verdadeira transferência de recursos públicos para iniciativas privadas. Citando dados de levantamentos feitos pelas entidades sindicais, Rolim aponta que os gastos com o programa saltaram de cerca de R$ 1 bilhão, em 2013, para R$ 13 bilhões, em 2016, no último ano de governo Dilma Rousseff (PT) e primeiro de Michel Temer (MDB). Mas, em 2018, já estaria na casa dos R$ 30 bilhões. “A gente financia, com dinheiro público, a enorme expansão do sistema privado. Mesmo dentro de um governo popular, da Dilma, o incremento dos recursos voltados para o FIES foi gigantesco, isso ajudou a fazer com que o sistema privado crescesse gigantescamente”, diz.
Para Rolim, a expansão de grupos como o Kroton não teria sido dada da mesma maneira sem o FIES, uma vez que é o programa que garante a expansão do número de alunos do setor privado.
A pergunta que surge então é: Daria para ter investido esse dinheiro no sistema público? Rolim pontua que há entidades sindicais que fazem a defesa de que 100% dos recursos públicos deveriam ser destinados para a rede própria, mas que, ele, prefere não ir “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”. O professor defende que o governo deveria manter o que foi aprovado no Plano Nacional de Educação (PNE), em 2014, de expansão dos gastos em educação pública até o patamar alcançar 10% do PIB em 2023 — a previsão era de que esse aumento seria financiado pelos recursos do pré-sal, essencialmente — mas que isso não exclui a a existência de programas voltados para o setor privado.
Ele destaca que a avaliação do governo federal, ao criar os programas, era de que existia a necessidade de ser expandir rapidamente o acesso de alunos ao ensino superior. “Tem um estudo que mostra que, no Brasil, a pessoa que tem educação superior, não importa onde seja, ganha em média três vezes mais do que uma pessoa que não tem educação superior. Então, eu não tenho que dar acesso às pessoas rapidamente? Tenho que dar, porque isso é uma forma de gerar renda e, inclusive, de desconcentrar a renda no País. O problema é como a gente faz isso. Podemos fazer isso só na educação pública? Seria maravilhoso, o problema é que a necessidade que a gente tem de ampliar o número de alunos muito rapidamente, o sistema público, se não tiver investimento massivo, não vai conseguir cumprir”, afirma. “É ruim exigir que as universidade que ganham isenção fiscal devolvam isso em vagas? Acho que é um programa que até pode ser realmente interessante, desde que haja mecanismos de garantia de qualidade”, complementa.
É justamente sobre a questão da qualidade que Rolim volta suas críticas aos programas. “O problema é que o aumento foi tão grande, mas tão grande, que a gente tem que pensar: Será que valeu a pena investir tanto dinheiro em universidades que não têm critérios de qualidade bem garantidos?”, questiona. “Qualidade é algo subjetivo, mas não é subjetivo dizer que não pode ser universidade sem um patamar mínimo de doutores, que não pode ser universidade se não tiver um patamar mínimo de professores com dedicação exclusiva, que não pode ser universidade se não tiver tantos cursos de pós-graduação, porque assim tu força as instituições a se qualificarem”.
Segundo ele, o governo nunca adotou critérios mínimos de qualidade das universidades como contrapartida para acesso ao programa e, quando tentou fazer essa discussão, como por exemplo no período em que Renato Janine Ribeiro assumiu o Ministério da Educação, ela foi barrada pelo lobby do setor privado. “As empresas privadas não querem nenhum tipo de controle, nenhum tipo de exigência de titulação mínima dos professores, exigências e garantias de que eles sejam dedicação exclusiva”.
Ao mesmo tempo que a transferência de recursos aumenta, cai o investimento na rede pública em razão da entrada em vigor da Emenda Constitucional 95, que limita o crescimento dos gastos públicos à inflação, congelando assim no patamar que estavam quando a legislação foi aprovada. Rolim destaca que a EC teve um efeito ainda mais nocivo para as universidades públicas do que o previsto porque, para a educação, passou a vigorar sobre os patamares de 2018, quando houve um corte em relação ao ano anterior. “Se a gente fosse congelado no patamar de 2014, era uma realidade. Nós fomos congelados num patamar que é mais de 20% abaixo daquele de 2014. Ou seja, no mesmo momento que tu tem um congelamento dos investimentos em educação pelos próximos 20 anos, nós temos um aumento brutal do FIES que faz com que hoje o valor que se passa para para o programa seja maior do que a folha de pagamento das universidades e dos institutos federais. Se a gente pensar, dava para tirar o dinheiro de lá e colocar aqui, dava, porque isso aconteceu, mas ao contrário”.
Em 2014, os repasses para a educação representavam 6,4% do PIB. Com o congelamento, no entanto, a previsão é que caiam para 5% em 2023 — quando deveria alcançar os 10% previstos no PNE –, e a perspectiva é que, ao final dos 20 anos em que o Teto dos Gastos irá vigorar, cai para a casa dos 4,5%, 4% do PIB, patamares da década de 90. “Com o sistema que foi ampliado largamente nos últimos dez anos, obviamente vai faltar dinheiro. Qual vai ser a solução? Ou buscar dinheiro em outro lugar ou privatizar. Não tem mágica. Vai asfixiar o sistema”, diz.
Diante do corte dos gastos e do avanço dos grandes grupos internacionais, Rolim avalia que as ameaças de desconstituição e privatização do sistema público são “absolutamente reais e presentes”. “Para ontem”.
Para o sindicalista, a consequência do provável desmonte do ensino superior público no Brasil é a perda da capacidade de emancipação da população brasileira. “A ameaça maior que a gente vê é que no Brasil, ao contrário do ciclo virtuoso que a gente estava vivendo de aumento de renda, de saída das pessoas da classe pobre, esse processo vai ser estancado ou até piorado. Na verdade, nós vamos aumentar a concentração de renda e, portanto, aumentar a insegurança, a violência, a incapacidade do País de produzir produtos de alta tecnologia em um momento em que o que dá dinheiro para os países não é a produção de commodities, mas a tecnologia, a criação de novos produtos de alta tecnologia. O Brasil vai ser cada vez menos capaz de ser líder nesse tipo de coisa e, portanto, vai ser cada vez mais dependente”.
É contra o avanço da mercantilização da educação que o Proifes enviará um grupo de cerca de 30 professores para a 3ª Conferência Regional da Educação Superior da América Latina e Caribe (Cres), promovida pelo Instituto Internacional para la Educación Superior en América Latina y el Caribe (IESALC) da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que será realizada em Córdoba, na Argentina. O evento é preparatório para uma conferência global sobre educação a ser realizada pela Unesco em Paris, em 2019.
Rolim destaca que, na 2ª Cres, realizada na Colômbia, em 2008, houve uma grande influência dos então governos de caráter popular da América Latina na defesa da educação pública e gratuita como direito dos cidadãos e dever dos estados. “Muito claramente se definiu um marco de que educação não era mercadoria”.
Dez anos depois, o cenário é outro. Brasil e Argentina são governados sob o norte da liberação dos mercados e das privatizações. A Venezuela está mergulhada na crise e até na Europa, onde a educação pública se consolidou ao longo de séculos, há um avanço de forças conservadoras. “Nós temos muita preocupação que esse conceito de educação pública como direito possa ser relativizado, flexibilizado, e que abra espaço, inclusive, para que, no seio da Organização Mundial do Comércio (OMC), a educação seja considerada uma commodity. Isso é algo extremamente grave. O que acontece na OMC com as commodities? As trocas têm que ser livres, tem que se garantir a concorrência. Daqui a pouco, o Brasil pode ser denunciado na OMC e não poderá mais financiar a universidade pública, que é gratuita, porque isso afeta o livre comércio e, portanto, o dinheiro público tem que ser colocado na iniciativa privada. Esse é o grande desafio que estamos vivendo no mundo”, diz.
O professor finaliza dizendo que a escolha de Córdoba como sede da Cres se dá pelo fato de que, este ano, se comemorara o centenário da reforma universitária que ocorreu na cidade, motivado por uma iniciativa dos estudantes locais em defesa do direito de participação na construção dos cursos de graduação, isso em uma época em que o Brasil, por exemplo, sequer tinha universidades. “É importante levarmos a nossa voz a Córdoba para mostrar que é preciso uma educação pública e que não aceitamos que a educação seja transformada em mercadoria. É só a mobilização social que vai impedir que isso aconteça”.
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‘Não podemos permitir que a educação seja um serviço como qualquer outro’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU