11 Abril 2018
Manuel Canelas poderia se destacar por ser a ovelha desgarrada de uma família tradicional que chegou à política por meio do Movimento ao Socialismo. Também por ser o primeiro deputado abertamente gay de seu país e uma jovem promessa da esquerda latino-americana. Mas, esse cientista político de 36 anos dedicou o último tempo a coordenar a investigação parlamentar da trama dos paraísos fiscais e a defender a sentença do tribunal constitucional que habilitou o presidente Evo Morales a se apresentar em 2019.
Sua capacidade de trabalho e o compromisso com o projeto de governo levou a sua recente nomeação como vice-ministro do Planejamento. No entanto, Canelas não se conforma com o fato até agora. Está convencido de que é necessário fortalecer o processo encabeçado por Evo Morales para reconquistar os descontentes e evitar um triunfo da oposição.
A entrevista é de Patricio Porta, publicada por Página/12, 09-04-2018. A tradução é do Cepat.
O que leva um cientista político a começar uma carreira na política partidária?
Estudei e vivi na Espanha muito tempo e com meus companheiros da faculdade de ciências políticas éramos muito ativos. Tive um interesse muito grande desde que comecei a estudar política na Universidade Complutense. Ali, a um de meus melhores amigos, Pablo Iglesias, ocorre fazer um programa de televisão em 2010, La Tuerca, que começa de maneira muito modesta. Dava-se em um canal de um bairro muito pequenino de Madri, Vallecas, com muito êxito na internet. Quando volto a Bolívia em 2012, muitos amigos meus, muitos vinculados ao governo boliviano, assistiam ao programa. Propõem fazermos um aqui, inspirado no que fazíamos na Espanha, onde eu era o painelista de esquerda permanente. Isso me traz bastante destaque nos meios de comunicação, pois ao programa comparecem do presidente Evo ao ex-presidente Carlos Mesa, líderes opositores, intelectuais e acadêmicos. Trabalhava como consultor, mas meu âmbito mais ativo politicamente era a televisão. Em 2014, o vice-presidente e o presidente Morales me convidam à candidatura na lista do Movimento ao Socialismo (MAS). Penso um pouco, consulto meus amigos e decido aceitar.
Quanto a relação com Podemos influenciou em sua formação?
Muito. Meus companheiros, Pablo, Íñigo (Errejón), Juan Carlos (Monedero), Carolina (Bescansa) e eu estávamos muito interessados na América Latina. A primeira vez que falei com Pablo ele tinha acabado de retornar da Bolívia, onde havia participado como observador das primeiras eleições que Evo vence. Pablo dá uma palestra em minha faculdade e eu era um dos poucos estudantes bolivianos. Esses primeiros anos são de muito interesse pelos processos na América Latina em meu grupo de Madri. Pablo apresenta, em 2007, um livro que se chama Bolivia en movimiento, Íñigo muda sua tese de doutorado e decide estudar o processo de hegemonia do MAS. Todos compartilhamos uma admiração pelo processo e pela figura intelectual do vice-presidente Álvaro García Linera. De fato, nós o convidamos à faculdade 15 dias após a deflagração, em Porta do Sol, da revolta dos indignados. Em inícios de 2014, quando se lança Podemos, eu estou em Madri de férias e García Linera e o presidente Morales já me sondam. Em abril, um mês antes das eleições europeias, vamos com o vice-presidente a Madri, porque lhe conto que os companheiros haviam lançado uma nova iniciativa e seria uma boa ideia que lhes prestasse seu apoio. Já se notava que Podemos seria mais que uma questão testemunhal. Ao final, acabam colocando cinco eurodeputados e mais de 1,2 milhão de votos. Quatro meses depois, a dez dias das eleições aqui, Pablo, Íñigo e Pablo Bustinduy, outro bom amigo do Podemos, vem para se encontrar com Evo, com Rafael Correa e, em seguida, com Mujica. Para mim, foi muito importante no plano pessoal e político.
Você chegou ao Parlamento sendo o primeiro deputado eleito abertamente gay da história da Bolívia, um jovem branco que não pertence a algum dos movimentos sociais que formam o MAS. Qual foi a reação da classe política?
Isto mostra um processo interessante de abertura do próprio presidente Morales e o MAS. Todos se recordam das declarações desafortunadas pelas quais o presidente pede desculpas depois: essa polêmica pelos frangos. É uma sintonia muito positiva que o presidente me convide a se candidatar em um lugar importante em sua lista, sendo público que eu sou gay. Tampouco me iludo no sentido de dizer que a Bolívia amadureceu muitíssimo no tema. Por condições de classe, por ser de uma família conhecida no país, por ser branco e ter poder político não sofri a discriminação que, sim, outras pessoas podem sofrer. É mais difícil que alguém me agrida de modo homofóbico em um programa de televisão ou no Parlamento. Estou convencido que um dos argumentos das pessoas que não me aceitam, em privado, é bicha de merda. Eu sou abertamente gay, mas não milito em uma organização LGBT e não desembarco nas listas tendo um ativismo LGBT. Isso faz com que existam pessoas que não saibam ou que não tenha isso presente. Na campanha foi um tema que saía de um modo mais ou menos recorrente, mas nunca foi um tema central.
Quando recém-eleito, tive uma reunião com vários amigos que são militantes em organizações LGBT e conversamos com muita franqueza. Não queria sobrerrepresentar o tema porque não queria usurpar uma militância e um capital que eu não tinha. Perguntei a eles o que podíamos fazer. Poderia colocar na agenda o tema da identidade de gênero ou da união civil, desde o princípio, ou então, como fiz, continuar sendo um tipo relevante no esquema do governo, que pode lidar com muitos temas, com uma relação de confiança com vários ministros do gabinete, com o vice-presidente e o presidente, e utilizar esse capital quando fossem abertas oportunidades para impulsionar estes temas que nos importam mais. Ou que me importam, porque eu sou homossexual 24 horas. A grande maioria dos companheiros entendeu que era melhor fazer isto. E conseguimos fazer com que a lei de identidade de gênero fosse aprovada por 85% do Parlamento. É claro que movimentamos tudo. Conseguimos fazer um lobby clássico e efetivo.
Aqui, o movimento LGBT é formado por pessoas muito corajosas, porque são muito poucos e não estão absolutamente enraizados no sentido comum popular. Suas demandas não são prioritárias para a sociedade. Caso você confie na força popular para avançar nesta agenda, está arruinado. Por sorte, na elite política há uma grande abertura. Não houve um só líder político nacional que se opusesse a que pessoas transexuais tenham sua identidade. Tentei me movimentar entre as coisas que me interessam mais e nos eixos principais de meu partido, que infelizmente não são estes. Acredito que a maioria de meus companheiros, começando pelo presidente, ainda não compreende estes temas como você e eu conseguimos entender. Muitos de meus amigos e colegas do MAS não conseguem entender como uma pessoa que nasce homem se sente mulher. Contudo, tiveram uma compreensão a partir da dimensão da vulnerabilidade e da violência. Nesse sentido, sou bastante leigo, não é necessário compreender as coisas do mesmo modo, se os objetivos são similares.
Em 2020, o presidente Evo Morales completará 14 anos no poder, um caso raro na história boliviana. Como explica sua vigência?
O fenômeno da liderança de Evo é excepcional. É difícil se repetir na história boliviana e difícil ser encontrado na história regional. O presidente conseguiu representar de maneira bastante fiel indígenas, classes populares, camponeses, cooperativas e trabalhadores, a grande maioria do país, e o MAS conseguiu representar as aspirações e desejos coletivos dessa parte lamentavelmente desconsiderada nas estruturas de tomada de decisões. Se a elite boliviana tivesse sido um pouquinho mais inteligente e aberta, provavelmente teria conservado o poder. Há uma forte vinculação emocional da figura pessoal do presidente com os grandes setores da população que se veem refletidos nele, que, enfim, veem a um dos seus, porque todos os anteriores eram meus tios, os pais de meus amigos ou pessoas muito parecidas comigo. Do gabinete de ministros dos últimos cinco governos prévios a Evo, 90% estudaram nos mesmos colégios, viveram nos mesmos quatro bairros do país, às vezes, na mesma rua ou eram familiares. O que existia era uma democracia absurdamente restrita em termos de você se ver incluído. Ao contrário, agora se vê outra representação na assembleia legislativa. Se você pega uma foto do Parlamento do ano 2000 e uma de hoje, até o mais opositor irá dizer a você que a foto de hoje se parece mais com a Bolívia.
Qual a repercussão de sua pertença ao governo atual no círculo social onde cresceu?
Nos primeiros anos, os setores mais tradicionais e do establishment eram muito reacionários a Evo. A partir de 2009, no momento em que para mim é o de maior fortaleza hegemônica, o governo consegue abrir muito o projeto. É o momento de menor temor do establishment, ao menos de temor tático. Em 2014, quando era o país que mais crescia na região, quando os bancos nunca tinham ganhando tanto dinheiro, quando os pesadelos não se cumpriram, não retiraram sua segunda casa e não obrigaram seus filhos a ir para o colégio público, a parte mais razoável do establishment reconhece que o país está melhor. Isso diminuiu a hostilidade. Sobretudo a parte do establishment empresarial e intelectual reconhece que agora você tem um país. Então, como de forma privada muitos reconhecem, alguns inclusive publicamente, exceto a direita mais reacionária, não sinto uma hostilidade de meus amigos ou de minha família. Agora, com a habilitação de um novo mandato por parte do tribunal constitucional, iremos entrar, lamentavelmente, em uma etapa de polarização. O projeto do MAS está perdendo capacidade de sedução nestas camadas médias altas. Percebo que, no particular, alguns amigos estão começando a me reivindicar coisas que há dois anos não.
Você disse que o referendo realizado no ano passado para habilitar o presidente Morales a um quarto mandato, e que finalmente teve uma resposta negativa do cidadão, foi um erro. Não acredita que insistir sobre esta ideia é desconhecer a decisão da maioria?
Em outubro de 2014, vencemos as eleições com 62%. Essa porcentagem, com nove anos de mandato, é uma surra espetacular. O fato de um ano depois termos perguntado aos bolivianos se o presidente poderia ser candidato em 2019 foi muito inoportuno. Teria sido conveniente agir assim ao final do mandato, com 13 anos exitosos e estáveis, e com a certeza de que a oposição iria fazer o mesmo que agora, que é nada. Há pessoas fantásticas, inteligentes e bem-intencionadas na oposição, como é lógico, mas como projeto não há nada que desperte confiança. O referendo sai ruim por muito pouco, mas em termos gerais o resultado é o que é. Seria possível dizer que assim como no referendo colombiano ou no Brexit, aqui se mentiu muito. Mas, independentemente da estratégia de manipulação, que sempre foi a estratégia dos adversários mais duros, deveríamos pensar no motivo pelo qual a mentira funcionou.
Nós tínhamos outra via e a anunciamos publicamente em fins de 2016, que era buscar a habilitação constitucional, assim como fez o prêmio Nobel costarriquense Óscar Arias ou Daniel Ortega, pelo Pacto de San José, que privilegia mais o direito a eleger e ser eleito que as limitações de ordem procedimental que a norma possa colocar. O tribunal constitucional boliviano disse que deveria estar acima o direito de eleger e ser eleito.
Entendo que haja um incômodo genuíno pela sentença. Mas, também entendo que se não houvesse referendo, não haveria polêmica, porque seria uma controvérsia onde o tribunal reconhece que prima o direito de eleger e ser eleito. O referendo é o que causa a polêmica, o que complica e o que traz argumentos para as pessoas que estão incomodadas. Respeitamos as opiniões diferentes, mas defendemos que a sentença constitucional precisa ser cumprida, pois já não há instância onde apelar. Ao mesmo tempo, precisamos convencer as pessoas que estão incomodadas por você estar na cédula, porque tinham votado para não vê-lo, de que vale a pena você estar na cédula.
Não é uma falência do atual governo o fato de não poder encontrar uma figura capaz de suceder ao presidente?
É uma falência meio insuperável. Às vezes, as circunstâncias políticas são imodificáveis, nem tudo depende da vontade. Aconteceram muitas coisas pelas quais não houve outra figura como Evo. Os opositores dirão que tudo é o caudilhismo, a ambição desmedida. Contudo, são muitas coisas. Primeiro, o MAS não é um partido. É uma espécie de língua franca que as organizações sociais falam mais no ano eleitoral. Em seguida, não existe. Então, como não há uma estrutura de partido tradicional, tampouco há muitas possibilidades de crescimento orgânico de outra figura que possa ser o chefe do partido, enquanto Morales é o chefe de governo, nem de pensar em um tipo empoderado que controle a organização e que, caso seja o candidato, não rompa a organização. O não ter partido faz com que a enteléquia que é o MAS dependa exclusivamente do presidente Morales. Um temor é que se Evo não for candidato, a língua franca deixe de ser falada. Isso coloca tudo em risco.
Na medida em que se conquistam direitos, a sociedade tende a apresentar novas demandas. Inclusive, há setores que se mostram desencantados com o ritmo das reformas ou com resultados que não satisfazem suas expectativas. Qual é a estratégia do governo para enfrentar esta realidade?
Eu sou um pouco mais crítico com o rumo. De momento, não estamos sabendo encontrar a sintonia com as pessoas. Uma das virtudes do presidente e do MAS é sempre ter tido um pé na realidade e um pé à frente, ser capaz de farejar para onde o país queria ir. Isso foi na primeira década, quando se ganhava com maiorias espetaculares. Após a derrota do referendo, há uma espécie de retirada do projeto e começou a se bifurcar a frequência. Quando se perde uma eleição é o momento de ser audaz e nós optamos por ser conservadores. O país mudou tanto e tão rápido que é difícil compreendermos essas novas pessoas. Os nossos também mudaram. Quando você gerou dez anos de estabilidade econômica e melhorou de maneira substancial a vida das pessoas, essas não podem desejar o mesmo do momento em que tinham níveis de subsistência minimamente razoáveis. Esse é o desafio.
Como a Bolívia se adapta a uma região que está voltando à direita?
Os atores conservadores honestos sabem que Bolívia nunca esteve melhor para fazer negócios ou em termos de inclusão democrática. Outro dado é a diplomacia presidencial e as boas relações bilaterais, algo que se baseia no pragmatismo. Também é verdade que os presidentes latino-americanos conservadores têm o quintal um pouco agitado para entrar na ofensiva contra a Bolívia. Não acredito que alguém queira adicionar muito conflito à região, sobreideologizando a relação com a Bolívia.
Alguns destes governos são acusados de perseguir referências da oposição. Lula da Silva e Cristina Kirchner denunciam que as ações judiciais que sofrem buscam proscrevê-los e erodir suas lideranças. Concorda com eles?
Claro. O problema é que se nos tiram do governo, até os setores conservadores razoáveis se somariam a qualquer perseguição contra o presidente. Em geral, os adversários nos seguem com vontade. No caso de Cristina, a acusação de traição à pátria por uma questão que o próprio congresso votou é absurda. O caso de Lula é semelhante. Um apartamento onde nunca viveu, sobre o qual o juiz Moro não tem documentos para provar sua propriedade. No Brasil, não seria dado um golpe de estado para tirar Dilma e Lula vencer as eleições. Um dos motivos pelos quais devemos nos esforçar para vencer as eleições é evitar que se tente uma perseguição política judicial contra o presidente, que sirva, além disso, como punição a todas as pessoas que se reconhecem nele. Necessitamos que se aposente a oposição clássica deste país, que governou a Bolívia com alguns números de miséria, para que diminua a possibilidade de vingança e restauração. Se isto acontece, para mim não teria problema que o principal líder opositor seja o prefeito de La Paz, Luis Revilla, que é outra oposição e fez uma campanha muito inteligente no referendo.
Manuel Canelas recorda muito bem o momento em que conheceu a cara da desigualdade. Seu pai, Víctor Hugo Canelas, era o chefe de campanha do histórico Movimento Nacionalista Revolucionário para as eleições de 1993. Com 12 anos, Manuel o ajudava a carregar bolsas de pão que repartiam com as crianças com fome que esperavam na beira do caminho que unia La Paz e Cochabamba. A cena fazia parte de uma prática proselitista muito estendida entre os partidos bolivianos. Era o comum: um candidato aterrissava em um bairro da periferia carregado de pacotes de arroz e de açúcar e repartia com as pessoas que provavelmente tinham passado dias sem comer.
Certa tarde, numa dessas turnês, Manuel reconheceu um garoto que frequentava o mesmo colégio religioso onde ele estudava, localizado em um bairro residencial de La Paz, em um casarão doada às freiras por seu tio-avô. “Isso me causou uma impressão muito forte. Há alguém em meu colégio que conheço, que vive onde eu nunca vivi, e está na fila para receber um pacote de comida”, conta.
A perseguição política desatada em 1980 pelo ditador García Meza obrigou Víctor Hugo Canelas a ir para a Venezuela com sua mulher. Manuel nasceu em Caracas, no ano seguinte, distante de seu país. A família inteira regressaria em 1984. O jovem dirigente do MAS cresceu em uma Bolívia muito diferente da atual, na qual os privilégios de classe o resguardavam de uma realidade que mantinha milhões de compatriotas excluídos. Além disso, os Canela eram donos de vários meios de comunicação e Víctor Hugo um ministro em destaque nos anos 1990.
Foi quando se mudou para a Espanha para estudar ciências políticas na Universidade Complutense de Madri que Manuel Canelas começou a repensar a situação de seu país. Contou muito com a influência de seus companheiros de carreira, que mais tarde se converteriam na surpresa da política espanhola com o Podemos, entusiasmados com as mudanças que estavam acontecendo na América Latina. Enquanto isso, um indígena chegava pela primeira vez à presidência da Bolívia e os jovens espanhóis expressavam sua indignação diante das consequências da crise.
Manuel Canelas se identifica com a nova geração de políticos latino-americanos de esquerda e rejeita qualquer tentativa de subestimação de seu potencial eleitoral: “Quando dizem fim de ciclo, a melhor resposta é ver Verónika Mendoza no Peru, Giorgio Jackson, Gabriel Boric e Beatriz Sánchez no Chile. Nós, sim, temos segunda temporada. Esse é o roteiro. Uma esquerda inteligente e contemporânea”.
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Bolívia. “Os conservadores honestos sabem que o País nunca esteve melhor” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU