30 Novembro 2017
“O capitalista pode despedir um operário, mas não o contrário. Por isso, capitalismo e democracia não são irmãozinhos gêmeos. Pelo contrário, são inimigos mortais. Por isso, Hayek, um dos ideólogos mais importantes do neoliberalismo, não titubeia em recomendar a abolição da democracia, caso se trate de resgatar o capitalismo”, escreve o economista mexicano Alejandro Nadal, em artigo publicado por La Jornada, 29-11-2017. A tradução é do Cepat.
A estabilidade social e econômica sob o capitalismo enfrenta dois problemas essenciais. Por um lado, as contínuas crises e a feroz concorrência intercapitalista fazem da acumulação de capital um processo inseguro. Por outro, o conflito na distribuição da renda constitui uma permanente ameaça de ruptura social. A democracia está no coração destas duas fontes de tensões sistêmicas.
Para introduzir algumas definições operativas, aqui, entendemos por democracia um sistema no qual todos os cidadãos adultos têm o direito ao voto (sufrágio universal), há eleições livres e os direitos humanos são protegidos sob o império do estado de direito. O capitalismo é um sistema no qual uma classe dominante se apropria do excedente do produto social já não pela violência, mas por meio do mercado.
O surgimento do capitalismo se deu em um ambiente de estados monárquicos e autocráticos, para não dizer ditatoriais. A necessidade de preservar os direitos de propriedade da classe capitalista era uma das prioridades desses estados. O movimento de ideias começou a mudar com a sacudida das revoluções nos Estados Unidos e na França. Mesmo assim, a constituição dos Estados Unidos (1787) não menciona o sufrágio universal e, ao contrário, conferiu a cada estado a faculdade de regular o direito ao voto. A maioria só conferiu esse direito aos proprietários. Não foi a não ser já na décima quinta e décima nona emendas (1870 e 1920, respectivamente) que se garantiu o voto universal. Na França, a revolução acabou com a monarquia, mas o sufrágio universal foi conferido já em 1946.
A palavra democracia foi utilizada até inícios do século vinte em um sentido pejorativo ou como sinônimo de um sistema caótico no qual as classes despossuídas acabariam por expropriar os proprietários do capital. A classe capitalista pensava que por trás do sufrágio universal se escondia o perigo de que a maioria democrática pudesse abolir seus privilégios. Mas, gradualmente, a pressão de uma massa que embora não tivesse o direito ao voto, sim, fazia parte da economia de mercado, tornou-se irresistível. Também a perspectiva da classe capitalista foi se transformando: um regime monárquico parecia ser cada vez menos adequado para garantir o cumprimento dos contratos e os direitos de propriedade. Apesar de tudo, capitalismo e democracia seguiram sendo vistos como processos antagônicos até um bom início do século XX.
Ao finalizar a primeira guerra mundial, a reconstrução das economias capitalistas na Europa não permitiu consolidar uma ordem social adequada para o capitalismo e, em vários países, abriu-se passagem ao fascismo. A Grande Depressão fragilizou o capital e gerou um sistema regulatório no qual uma adequada distribuição do produto surgiu como prioridade do estado. Esse sistema permitiu o crescimento robusto e a distribuição de lucros através do estado de bem-estar, durante as três décadas do pós-guerra. A classe capitalista aceitou relutando a regulação do processo econômico pelo estado. A legitimidade do capitalismo se fortaleceu através de uma menor desigualdade e um melhor nível de vida para a maior parte da população. Nesse período, democracia e capitalismo pareciam marchar em sincronia.
Contudo, nos anos 1970, ressurge a tensão pela diminuição na rentabilidade do capital, uma queda na taxa de crescimento, novas pressões inflacionárias e outros desajustes macroeconômicos. A política econômica que havia mantido o estado de bem-estar foi desmantelada gradualmente, ao mesmo tempo em que se declarava a guerra contra sindicatos e instituições ligadas à dinâmica do mercado de trabalho. Nesse tempo, começou também o processo de desregulamentação do sistema financeiro. Acabou-se por destruir o regime de acumulação baseado em uma democracia que buscava maior igualdade e se reiniciou o ciclo natural de crise que sempre havia marcado a história do capitalismo. O neoliberalismo é a culminância de todo este processo.
Hoje, a democracia se encontra mais ameaçada porque a vida eleitoral não parece permitir mudanças nas decisões fundamentais da vida econômica. As coisas pioram ao estourar a crise de 2008. Os mitos sobre equilíbrios macroeconômicos ajudaram a impor políticas que freiam o crescimento e intensificam a desigualdade. A austeridade fiscal e a chamada política monetária não convencional são os exemplos mais notáveis. Se a isto acrescentamos a incompetência dos funcionários públicos, sua entrega aos interesses corporativos e ao capitalismo financeiro, bem como o tema da corrupção, temos uma combinação realmente perigosa.
O capitalista pode despedir um operário, mas não o contrário. Por isso, capitalismo e democracia não são irmãozinhos gêmeos. Pelo contrário, são inimigos mortais. Por isso, Hayek, um dos ideólogos mais importantes do neoliberalismo, não titubeia em recomendar a abolição da democracia, caso se trate de resgatar o capitalismo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Capitalismo e democracia são compatíveis? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU