21 Outubro 2017
“Vive-se um momento de encruzilhada. Requer-se orientação, mas o que reina é a desorientação e o que resta da democracia pode sucumbir de vez. O momento é de máxima atenção”, escreve Jonas Jorge da Silva, cientista social, coordenador do Centro de Promoção de Agentes de Transformação - CEPAT.
Fui convidado para fazer uma análise de conjuntura para a Semana Acadêmica do Curso de Serviço Social da PUCPR, no último dia 17 de outubro. O tema estava em aberto. Os participantes queriam ouvir alguma palavra sobre o turbilhão dos dias atuais. Tarefa nada fácil. Então, entrei em um acordo com quem me convidou: não entrar nos meandros da política pequena, de graves consequências, mas corriqueira. Preferi me apoiar em alguns pontos que podem ajudar a pensar as encruzilhadas da democracia.
Recentemente, o experiente e reconhecido sociólogo estadunidense Immanuel Wallerstein, em artigo intitulado Tempos de incerteza caótica, fez um desabafo que parece capturar muito bem o que se sente nesta etapa da história humana: “Você está confuso com o que acontece no mundo? Eu também estou. Todo mundo está. Essa é a realidade subjacente e contínua de um sistema-mundo caótico”. De fato, dia a dia, vai se evidenciando o quão erodido está o nosso sistema-mundo, inserido em uma dinâmica de difícil leitura e de duras consequências para a frágil democracia, que sempre respira por aparelhos, quando não desaparece.
A palavra crise é muito central neste momento. Ela aparece recorrentemente em artigos científicos, conferências, matérias jornalísticas e redes sociais. Trata-se de uma palavra de fácil adjetivação: econômica, política, ecológica, energética, alimentar, ética, da democracia, do trabalho, do Estado-Nação, civilizacional, etc., o que demonstra o seu caráter estrutural e sistêmico. Com a agudez de Bertolt Brecht, em “A exceção e a regra”, não há como escapar da clássica tarefa de tomar por “inexplicável o habitual” e de se sentir “perplexos ante o cotidiano”. Aquilo que comumente se enxerga como fragmentado, na realidade, são problemáticas profundamente interconectadas.
Neste sentido, em meio a um emaranhado de questões importantes para uma leitura mais de fundo das problemáticas atuais, elenco quatro pontos que evidenciam a encruzilhada da democracia ou, ao menos, daquilo que muitos pretenderam para ela: A Quarta Revolução Industrial; O poder das Corporações; A política (ou economia) da dívida; O imaginário neoliberal. Abaixo, pincelo um a um.
Klaus Schwab, o fundador do Fórum Econômico Mundial, está convencido que o mundo entrou em uma revolução tecnológica sem precedentes na história. Em sua obra A Quarta Revolução Industrial, diz que as inovações tecnológicas em curso são marcadas por três características centrais: velocidade, profundidade e impacto sistêmico. Estas, associadas à fusão de tecnologias e à interação entre os domínios físicos, digitais e biológicos, distinguem a quarta revolução industrial de quaisquer outras. Hoje, assiste-se abismado o número de publicações diárias sobre este tema, com seus presságios e desafios.
Ao que parece, embora a quarta revolução industrial seja promissora em muitos aspectos e capaz de avanços inimagináveis, é necessário levar em conta que com a concentração de renda cada vez maior, os impactos econômicos e sociais destas transformações se tornam difíceis de mensurar, tornando os discursos em torno dos mesmos confusos e inconcludentes. Ora se ressalta os benefícios de uma sociedade que poderá se libertar dos mais pesados trabalhos, que será substituído por uma robótica cada vez mais avançada, ora se pressagia um futuro algoz e de terra arrasada para aqueles que permanecerão fora das benesses de tais mudanças. Ora se exalta as potencialidades de uma economia compartilhada, ora se vislumbra como o capitalismo é e será capaz de aniquilar as mínimas possibilidades de trabalho digno, precarizando as relações de trabalho atuais e vindouras.
Na era da técnica, já não se sabe ao certo para onde a humanidade caminhará. O filósofo e sociólogo italiano Umberto Galimberti, em seu artigo O ser humano na era da técnica, considera que a sociedade atual vive em um estágio tão avançado da técnica que esta já é capaz, inclusive, de se sobrepor à economia. A técnica se encontra em um nível tão complexo de conhecimento, que dificulta a possibilidade de se pensar em esferas públicas de decisões que caberiam a toda a comunidade humana. A exigência de conhecimento é muito maior do que aquele que possuímos. Isto gera um grande impasse para a política, já que a mesma se torna apenas um espaço da representação da decisão, mas não mais o lugar da decisão, que é tomada muito distante dos palcos da democracia.
O segundo elemento a ser destacado é o atual estágio de concentração do poder econômico e político nas mãos das corporações que, não se deve deixar de lembrar, investem pesadamente em tecnologia. Em artigo intitulado Como as corporações cercam a democracia, o economista Ladislau Dowbor evidencia que “o poder corporativo se tornou sistêmico, capturando uma a uma as diversas dimensões de expressão e exercício de poder, e gerando uma nova dinâmica, ou uma nova arquitetura do poder realmente existente”. Entre as consequências desta dinâmica estão os seguintes aspectos: a expansão dos lobbies, a compra de políticos, a invasão do judiciário, o controle dos sistemas de informação da sociedade, a manipulação do ensino acadêmico e a invasão da privacidade.
A concentração de poder econômico é tão ampla que, segundo Dowbor, apenas 737 grupos controlam 80% do mundo econômico. Destes, 147 controlam 40%, formados essencialmente por grupos financeiros, interessados em lucrar ao infinito, sendo truculentos na forma como avançam em busca de seus interesses e não hesitando de maneira alguma em estocar seus recursos financeiros em paraísos fiscais, recheados de capital improdutivo e em grande parte ilegal.
Neste cenário, os Estados se tornaram reféns das grandes corporações e impotentes diante da crucial tarefa de regular este sistema financeiro em prol da sociedade. Dowbor chama de “mais-valia financeira” a forma determinante como o produto social é apropriado pelos sistemas financeiros. A dinâmica se dá por um constante endividamento público, que torna o mecanismo da dívida crucial para a subordinação do Estado aos interesses das grandes corporações.
O cenário atual se expressa pela dicotomia enfatizada por Dowbor: “Temos uma finança global descontrolada frente a um poder político fragmentado em 195 nações, com isto, o poder dentro das próprias nações, nas suas diversas dimensões, está sendo em grande parte capturado. Tornamo-nos sistematicamente disfuncionais”.
O terceiro elemento a ser destacado é o mecanismo da dívida, que se tornou funcional para capturar o poder político e colocar o Estado de joelhos. Diferente do que apregoam os economistas do sistema dominante, ou melhor, os sacerdotes do capitalismo, a dívida possui uma dimensão substancialmente política, que serve para disciplinar a população em seu conjunto e legitimar as medidas antidemocráticas de austeridade. No limite, serve para suspender cabalmente a democracia.
O neoliberalismo é um eficiente mecanismo de controle. Por meio da dívida, é capaz de capturar a resistência popular, que vê se esfacelar os seus direitos como ‘cidadãos’. De acordo com o filósofo Michael A. Peters, em seu artigo Economias Biopolíticas da Dívida: “À medida que o discurso dos direitos dá lugar à dívida, ele autoriza os governos a trabalharem de forma antidemocrática para garantir os direitos de propriedade e poder financeiro das instituições de crédito em detrimento do público e, literalmente, ‘comprar’ a oposição e a resistência, especialmente os estudantes e jovens, que se endividam mais cedo e nunca saem do círculo de dívida e de auto-investimento que envolve sua existência”.
Vive-se uma guerra assimétrica, na qual o capitalismo utiliza a dívida como arma estratégica. Para o sociólogo e filósofo italiano Maurizio Lazzarato, “o capitalismo não necessita da democracia”, título de uma entre as diversas entrevistas que já concedeu. De fato, seria ingenuidade pensar que o capitalismo é capaz de autocrítica e lealdade democrática. Lazzarato menciona que “a democracia dos direitos nasceu no século XVIII e não foi construída pelo capitalismo, mas, ao contrário, pelos movimentos políticos que conseguiram o sufrágio universal, a liberdade de expressão, liberdade de organização associativa, etc. Trata-se de conquistas de movimentos políticos e operários, não de uma concessão do capitalismo. Pelo contrário, o capitalismo procurou restringir esses direitos e demorou a reconhecê-los”.
Conforme alerta Michael A. Peters, o mecanismo de funcionamento da dívida “atua através da produção moral dos indivíduos endividados”. Trata-se de uma governamentalidade concebida estrategicamente pelo capital financeiro, capaz de limitar ao extremo as potencialidades democráticas de uma sociedade e capturar a subjetividade de homens e mulheres atravessados pelos mantras neoliberais.
O coração da lógica neoliberal é o último ponto a ser destacado. Os pensadores franceses Christian Laval e Pierre Dardot são categóricos em estimar que, nas condições atuais, “o imaginário de Estado-nação não é um imaginário alternativo ao neoliberalismo”, conforme afirmaram em entrevista, já que este penetrou profundamente na dinâmica de funcionamento de todo o sistema político, social e econômico dos diferentes países. Para esses pensadores, o neoliberalismo foi capaz de elevar as grandes orientações da política econômica acima de qualquer controle democrático. Esse contexto faz com que independente das alternâncias eleitorais, os governos sempre estejam de mãos atadas.
Além disso, por trás de supostas propostas de nacional-populismo, como a que conduziu Donald Trump à presidência, por exemplo, não há qualquer ameaça ao modus operandi desta lógica neoliberal. Ao contrário, o neoliberalismo é capaz de se conciliar muito bem com o nacionalismo xenófobo ou outras ideologias reacionárias. A concorrência entre diferentes soberanias acaba reforçando o projeto neoliberal.
O projeto neoliberal também atingiu em cheio as esquerdas, que demonstraram ser incapazes de abandonar seus marcos gerais, entrando em profunda contradição, por não conseguirem garantir uma agenda política alternativa. São as chamadas ‘esquerdas neoliberais’.
O que reina no projeto neoliberal é o esvaziamento da política como campo de disputa. O que prevalece é a mera atividade gestora e técnica, como se fosse possível sustentar uma ideologia de isenção frente aos interesses em disputa.
“O Estado neoliberal não é o aliado natural de um governo democrático, mas, ao contrário, é um adversário cuja resistência só poderemos superar apoiando-nos nas mobilizações e nas experiências da própria sociedade”, analisam os pensadores franceses. Não é fácil aceitar, mas parece evidente, que “o imaginário neoliberal se alimenta e se mantém através das práticas que fazem de cada um de nós um “empresário de si mesmo” em todas as esferas da vida”. Vive-se um momento de encruzilhada. Requer-se orientação, mas o que reina é a desorientação e o que resta da democracia pode sucumbir de vez. O momento é de máxima atenção.
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A encruzilhada da democracia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU