16 Novembro 2017
O jesuíta Vicente Cañas, cujo nome indígena era Kiwxi, viveu durante décadas com várias populações indígenas (índios Tapaiúna, Paresi, Mÿky e Enawenê-nawê) levando ao radicalismo o mandato da inculturação nascido do Concílio Vaticano II.
Foto: Periodista Digital
A reportagem é publicada por Religión Digital, 15-11-2017. A tradução é de André Langer.
Ele defendeu as terras indígenas contra os latifundiários, que queriam apropriar-se delas, lutando para que o governo brasileiro fizesse a demarcação oficial das mesmas, algo que foi alcançado após a sua morte.
Em abril de 1987, ele foi assassinado. O primeiro julgamento sobre sua causa aconteceu apenas em 2006, 19 anos após o crime, e os réus foram absolvidos por falta de provas. No próximo dia 29 de novembro, um novo julgamento será realizado para julgar o único acusado que ainda vive. A causa de Kiwxi é a de todos aqueles que ainda hoje defendem com suas vidas os direitos humanos dos povos indígenas e a necessidade de preservar a Amazônia.
No dia 29 de novembro de 2017 será realizado um novo julgamento em Cuiabá (Brasil), no qual se sentará no banco dos réus o então delegado da Polícia Civil, Ronaldo Antônio Osmar (atualmente aposentado), acusado de participar do crime.
Os jesuítas Kiwxi (Vicente Cañas) e Thomaz Aquino Lisbôa fizeram os primeiros contatos na primeira metade da década de 1970 com os povos em situação de isolamento no noroeste do Mato Grosso, entre eles Mÿky e os Enawenê-nawê. Os missionários são fundadores do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e eram membros da Operação Anchieta (OPAN).
(Foto: Periodista Digital)
O irmão jesuíta Vicente Cañas (Albacete, 1939 – Brasil, 1987) foi martirizado aos 48 anos de idade em abril de 1987, supostamente no dia 6 ou 7, de acordo com o cálculo feito a partir do momento em que seu relógio de pulso parou. Alguns sinais do violento assassinato foram a cabana toda revirada em que residia para fazer suas quarentenas, os óculos e dentes quebrados, o crânio quebrado, uma perfuração na parte superior do abdômen para atingir o coração e os órgãos genitais cortados ou arrancados.
Seu corpo foi arrastado para fora da cabana para que os animais o comessem e destruíssem as provas. No entanto, foi encontrado 40 dias depois, mumificado e conservado. Na manhã do dia 22 de maio, ele foi enterrado como os indígenas, em sua própria rede, em um buraco cavado a 4 metros de distância de onde o corpo havia sido encontrado. Vários indígenas Enawenê-nawê, Rikbaktsa e Mÿky, juntamente com vários missionários e leigos, fizeram seu sepultamento.
Desde o primeiro momento após o assassinato suspeitou-se dos latifundiários da região, que não aceitavam a defesa que o jesuíta fazia pela demarcação do território tradicional indígena. Presume-se que a ordem de executar Vicente partiu do então proprietário da Fazenda Londrina (Pedro Chiquetti), já falecido, embora a execução tivesse ficado a cargo de três outras pessoas. Essas três pessoas foram mais tarde assassinadas, para não revelarem a verdade sobre os fatos. Além de Ronaldo Antônio Osmar, comissário da Polícia da região naquela época e encarregado da investigação do crime, não há mais suspeitos vivos ou com idade legal para serem julgados.
O primeiro julgamento aconteceu em 2006, 19 anos depois do crime, e Osmar foi absolvido pelo Tribunal do Júri Federal de Cuiabá por 6 votos a 1. O Ministério Federal apelou dessa sentença argumentando que evidências importantes tinham sido omitidas. Assim, o crânio de Vicente desapareceu e foi encontrado mais tarde em uma caixa em um ponto de ônibus em Belo Horizonte (capital de Minas Gerais). Na época, a investigação assinalava que o fazendeiro pagou o chefe da polícia local para que as provas fossem escondidas e abrandasse a investigação.
Em 2015, após um recurso do Ministério Público Federal (MPF), o Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região determinou a realização de um novo julgamento. A assessora jurídica do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), Michael Mary Nolan, considera que o fato de manter o comissário de polícia no banco dos réus depois de tanto tempo já é uma vitória.
(Foto: Periodista Digital)
Nascido em Alborea (Albacete) no dia 22 de outubro de 1939, entrou no noviciado São Pedro Claver (Raimat, Lleida) da Companhia de Jesus com 21 anos, em 21 de abril de 1961. No juniorado, ele foi amadurecendo, discernindo e manifestando ao Provincial de Aragão, o Pe. Mariano Madurga, sua vocação missionária.
Na festa de São Francisco Xavier de 1965, recebeu o crucifixo missionário no Castelo de Xavier. Chegou ao Brasil no dia 19 de janeiro de 1966. Em 1968, recebeu sua nova missão para a Prelazia de Diamantino, no Mato Grosso. Chegou ali com a visão colonizadora própria da época em relação aos índios, vistos como "selvagens" que precisavam de "civilização" e cristianismo. Por isso, anos depois, reconheceu que ele passou por um novo "noviciado", porque precisava de uma profunda conversão à visão de mundo e à espiritualidade indígenas, o que aconteceu gradualmente. Ele precisava "nascer de novo" (Jo 3, 4) nestas terras de Missão: do "velho" Irmão Vicente nasceu o "novo" Kiwxi, irmão dos índios. Um índio Mÿky que ainda vive foi quem deu o nome índio Kiwxi a Vicente.
Em outubro de 1969, a pedido da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o Irmão Vicente foi, junto com os padres jesuítas Antonio Iasi, Adalberto Holanda Pereira e Thomaz Lisboa, salvar os 41 Tapaiúna que sobreviveram – dos 600 que foram contatados anteriormente e que foram dizimados por uma epidemia de gripe. A causa dessa tragédia foi um contato mal planejado pela FUNAI que levou em sua expedição vários repórteres que estavam com gripe. O resto que sobreviveu, 7% do grupo étnico, foi salvo graças aos esforços e cuidados de Vicente e seus companheiros.
Vicente sabia que, durante décadas, os Tapaiúna, ou "Beiço de Pau" (devido ao enorme disco de madeira que inseriam no lábio inferior da boca), sofriam a perseguição violenta das frentes de expansão no vale dos rios do Sangue e Arinos, no norte do Mato Grosso.
(Foto: Periodista Digital)
Entre os anos 1970-1975, ele trabalhou com os índios Paresi. Em 1971, juntamente com os padres Adalberto e Thomaz, conseguiu fazer os primeiros contatos pacíficos com os índios Mÿky, que eram apenas 23 pessoas e estavam à beira do extermínio no momento do contato. Desde 1975, o padre Tomaz e o irmão Vicente passaram a viver na aldeia Mÿky e receberam os nomes Yaúka e Kiwxi, respectivamente. Pouco a pouco, seus corações foram se "indianizando".
De 1973-1974, eles fizeram várias expedições para contatar outro povo "isolado", o Enawenê-nawê. Eram apenas 97 indígenas no momento do contato, em 1974. Hoje, graças em parte à vida entregue de Vicente, eles são mil. Eles estavam ameaçados de extinção pelos ambiciosos interesses dos latifundiários que queriam roubar suas terras.
Em 1975, Vicente Cañas fez seus últimos votos na aldeia indígena de Zozoiterô, da Missão de Diamantino, no Mato Grosso. E no final de 1975 ele se dedicou mais plenamente aos Enawenê-nawê. De junho de 1979 a junho de 1983, Kiwxi não saiu dessa aldeia. Entre 1979 e 1981, chegaram alguns leigos, principalmente mulheres, para auxiliá-lo.
(Foto: Periodista Digital)
Como missionário, foi tão longe quanto pôde no trabalho de inculturação guiado pela Igreja. Gradualmente, ele foi se tornando um deles: participava de seus rituais, da pesca, dos trabalhos de plantio, da coleta de mel, frutas e tubérculos, fez cestas, artesanato e utensílios próprios. Dedicou-se a aprender sua língua. Escreveu um diário de grande valor antropológico com mais de 3 mil páginas. Isso mostra seu cuidado com pequenas coisas e também é possível ver que ele estava ameaçado de morte.
Ele construiu uma cabana no rio Juruena, a cerca de 60 km da aldeia Enawenê-nawê (um dia de caminhada). Ali ele se escondia esporadicamente para os seus "retiros", ouvir música clássica, organizar seus pensamentos e comunicar-se com o mundo exterior através de um rádio-amador. Ali fazia também suas quarentenas para não levar doenças para a aldeia, deixava suas roupas brancas e vestia-se-desvestia-se de índio. Dali, Kiwxi subia o rio Juruena por cerca de seis horas de barco para chegar à aldeia de seus irmãos Enawenê-nawê. De 1982 até o seu martírio, em 1987, ele ficou morando com eles.
Vicente foi encontrado morto cerca de 40 dias após o seu assassinato (de acordo com relatórios forenses). Seu corpo estava mumificado fora da barraca que ele tinha construído no rio Juruena. Os especialistas forenses, em seu relatório, dizem que o crânio foi quebrado com uma borduna (um pau grosso de madeira feito para bater), que também tinha uma perfuração de arma branca no abdômen e, possivelmente, foi castrado para que sangrasse até morrer. Milagrosamente, os animais (abutres, raposas, tigres e pumas, etc.) não devoraram o seu corpo. Ele foi enterrado ali mesmo, junto à barraca e no meio da floresta, dentro da terra indígena de seus irmãos Enawenê-nawê, que, graças ao seu sangue derramado, finalmente conseguiram sua demarcação.
Sua memória inspirou muitas instituições e iniciativas em diferentes lugares e seu sangue derramado germinou como uma semente de vida em muitos missionários que se encarregaram da causa dos povos indígenas. Dom Pedro Casaldáliga afirmava de seu amigo Vicente: “É o missionário contemporâneo que atingiu o nível mais alto de inculturação: nasceu espanhol, nacionalizou-se brasileiro e inculturou-se Enawenê-nawê”.
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Kiwxi, o missionário jesuíta que se fez índio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU