08 Novembro 2017
Pedro Ribeiro de Oliveira, doutor em Sociologia, professor aposentado dos PPGs em Ciências da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas, analisa a conjuntura do País em artigo publicado no blog Fé e Política e reproduzido por Cebs do Brasil, 03-11-2017.
A percepção da espécie humana como força capaz de impactar significativamente a superfície da Terra e seus processos vitais levou importantes cientistas a propor a hipótese do antropoceno. Embora não haja consenso sobre ela, nem sobre o início dessa era geológica, assumo como ponto de partida que em meados do século 20 a Terra já estava no antropoceno. Isso deveria provocar enorme mudança em nosso método de análise de conjuntura, que até então podia desconsiderar as relações entre a espécie e o ambiente por não afetarem significativamente os processos históricos das sociedades humanas. Tal mudança, porém, ainda não ocorreu, apesar de algumas tentativas nesse sentido. A proposta aqui apresentada é mais uma tentativa de ampliar o horizonte temporal e espacial da análise de conjuntura, para nela incluir as relações entre a nossa espécie e o Planeta em que vivemos.
O surgimento do homo sapiens deve ter ocorrido entre 200 e 300 mil anos, certamente na África, de onde iniciou sua migração para outros continentes entre os anos 100.000 e 20.000 AEC (antes da era comum). Formaram-se pequenas sociedades caçadoras-coletoras que, beneficiadas pela estabilização do clima após a última glaciação (10.000 AEC), passaram a fixar-se em territórios onde iniciaram a domesticação de plantas e animais. Surgem então as sociedades agrícolas e pastoris, e, por volta de 5.000 AEC, as primeiras cidades. A partir de então começam a se constituir na Ásia, África, Europa e América impérios que se impõem pela dominação militar. Original é a constituição do sistema-mundo (I. Wallerstein), a partir da Europa, no “longo século 16”, porque nele a dominação não passa necessariamente pela conquista militar, mas por relações de trocas assimétricas. Aí situa-se a grande colonização europeia, com a conquista da África, da América, da Ásia e da Oceania, e a submissão de seus povos à civilização ocidental-cristã e ao seu modo de produção e consumo.
A expansão europeia por meio do sistema-mundo regido pelo mercado cada vez mais submetido ao capital impulsiona fortemente o processo de destruição ambiental, cultural e humana (escravismo) que vai culminar na globalização atual. A revolução industrial em meados do século 18 acelera aquele processo com o uso de energias fósseis, a produção de materiais artificiais (como plástico, concreto, alumínio etc) que a natureza não consegue reciclar, e a energia nuclear e seus resíduos. Em 1945 o crescimento econômico torna-se muito grande, até a crise de 1974. A partir de então o ritmo diminui, mas não o crescimento absoluto da produção, consumida por 7,4 bilhões de pessoas. (Para efeito de comparação, outras espécies numerosas de grandes mamíferos são apenas as domesticadas: bovinos, ovinos e caprinos que perfazem menos de 4 bilhões de cabeças). Atravessamos hoje a 6ª grande extinção de espécies da Terra.
Temos muita dificuldade de perceber as mudanças climáticas porque nossa temporalidade não é a temporalidade da Terra. Para nós, dois séculos é o tempo que normalmente conseguimos perceber (três gerações antes e três gerações depois de si mesmo); para Terra, o tempo se mede em milênios. O que para Terra é ritmo acelerado, para nós parece ser lentíssimo, quase estagnado. Por isso temos dificuldade de perceber fenômenos evidentes como:
Embora especialistas alertem para o risco de aquecimento em espiral devido ao metano liberado pela tundra, o degelo polar e o desmatamento, parecemos não acreditar que o clima que há 12 mil anos é favorável a nossa espécie possa mudar substancialmente. Cabe portanto um alerta drástico: 2020 é a data-limite para se evitar a grande catástrofe climática. Este foi o alerta dado pela conferência do clima, em Paris, em 2015: se até lá não forem cortadas as emissões de carbono na atmosfera, o aquecimento ultrapassará 1,5º C e fugirá do controle humano. O problema é que até agora as emissões não foram cortadas… Trump, Temer, e outros governantes irresponsáveis estão a pavimentar o caminho para o advento da catástrofe.
A catástrofe ambiental prejudicará principalmente as populações mais pobres e vulneráveis, mas será uma boa oportunidade de renovação do capitalismo (“doutrina do choque” – Naomi Klein). Preventivamente, é apresentada a economia verde como solução: a pretexto de evitar o aumento dos danos ambientais pela precificação dos danos (quem causar danos, pagará por eles) ela abre o caminho para a privatização de bens comuns (como a água, o ar e os conhecimentos tradicionais) transformando-os em campos seguros para a aplicação do capital. Por isso termino esta parte citando J. M. Vigil: “Se simplesmente não fazemos nada – ainda que seja não deixar de falar no assunto – a catástrofe está garantida. Continuar tendo medo em dizê-lo é um erro”. (Agenda latino-americana e mundial 2017, p. 33).
O item anterior deve ter-nos feito entender que crise climática não é fenômeno meteorológico, mas resultado do modo de produção e consumo que rege o sistema-mundo. Por essa razão, sua solução só pode vir por outra política econômica (mundial). Vamos focar então o sistema-mundo regido pelo modo de produção capitalista.
A relação desse modo de produção com o ambiente – tratado como mera fonte de recursos naturais – segue o roteiro de extrair > transformar > consumir > descartar. (Note-se a diferença com as outras espécies vivas, que também extraem, consomem e descartam, mas não transformam para consumir). É enorme a quantidade de riqueza assim produzida, devido aos avanços da tecnociência. Segundo Ladislau Dowbor, se a produção mundial total fosse igualmente repartida, teríamos “cerca de R$ 11 mil de bens e serviços por mês por família de quatro pessoas”. O mesmo valeria para a economia brasileira, que está exatamente na média mundial. A realidade, porém, é de grande concentração de riqueza: 147 grupos controlam 40% do sistema corporativo mundial, sendo 75% deles bancos. Escapam ao controle governamental pelo uso de paraísos fiscais (US$20 tri, dos quais US$520 bi saídos do Brasil) e são os principais financiadores dos organismos internacionais que seriam a única instância capaz de controlá-los. Resultado é que 1% dos habitantes da Terra detêm riqueza igual àquela dos 99% restantes, e 8 homens têm riqueza igual a de metade da população mundial. Esse gigantismo das corporações transnacionais não impede, porém, que esteja em curso uma crise de grandes proporções.
Tudo indica que chegou ao fim o ciclo de acumulação puxado pelos EUA desde o início do século 19 e que esta é uma nova crise de longa duração. Essas crises são bem conhecidas[1]: caracterizam-se pela financeirização do capital (torna-se mais lucrativo emprestado do que investido na produção) e marcaram a transição do polo capitalista de um país para outro: de Gênova (sec. 15) para Amsterdã (sec. 16-17), depois Londres (sec.18-19), e atualmente Nova Iorque. Há sinais de que neste século 21 o polo vai se transferir para Pequim, onde o capitalismo poderia retomar seu desenvolvimento baseado na economia verde. Isto se a catástrofe não climática não ocorrer antes, é claro.
Nesse contexto situa-se a crise de época que analisaremos no item seguinte. Antes, porém, devemos destacar dois componentes da atual crise do sistema-mundo: o clima de guerra e o impasse ecológico da economia global.
A história das transições no interior do sistema-mundo mostra que elas só se tornam viáveis ao substituir as formas de produção vigentes por novas formas capazes de dar mais vigor ao capital. É o que os economistas chamam de “destruição criativa”, porque combina destruição – em forma de guerra – e criatividade na geração da nova forma de produção. Assim foi, por exemplo, a criação da bolsa de valores em Amsterdam, a revolução industrial na Inglaterra, e o new deal nos EUA. O problema é que o advento das armas nucleares multiplica tanto a capacidade destrutiva da guerra que ela ameaça a própria sobrevivência da espécie humana. Não é sem motivo que o papa Francisco refere-se à atualidade como sendo a Terceira Guerra Mundial “em capítulos”. São guerras localizadas, ditas de baixa intensidade porque envolvem pequenas potências (p. ex. Qatar, Coreia do Norte, Síria, Ucrânia, Irã) mas respaldadas pelas grandes potências. A política externa de Trump só faz aumentar o risco de expansão dessas guerras.
Além delas, uma nova forma é a guerra de 4ª geração que visa destruir o inimigo por meio de aparelhos de informação, do Judiciário, do Ministério Público e de acordos multilaterais (contra as drogas, o terrorismo, a corrupção, ou em defesa de Direitos Humanos ou da Democracia). A criação da Agência Nacional de Segurança dos EUA após os atentados de 11/set. 2001 possibilitou o controle das informações que circulam por internet colocando-as a serviço de sua Política Externa. (Denúncia de Snowden e Assange). O abuso da informação (inclusive a pós-verdade e os fake news) permite a destruição do inimigo quase sem mobilização das Forças Armadas.
O impasse ecológico reside numa evidência incontestável: a economia capitalista do sistema-mundo só produz resultados positivos quando cresce. O problema é que o crescimento econômico atual ultrapassou os limites de reposição da Terra. E ela não cresce. A tecnociência promete encontrar saída, mas até agora tem devorado as matérias-primas do Planeta, transformando-as em objeto de compra e venda, e nada indica que parará de fazê-lo enquanto não esgotar todos os recursos potenciais (como o petróleo do pré-sal ou do Ártico, as minas da Amazônia ou as fontes hídricas do Cerrado). Diante dessa realidade, toda projeção de futuro torna-se uma grande interrogação porque uma catástrofe climática destruiria não somente o modo de produção e consumo capitalista como grande parte da espécie humana. E a Laudato Si’ de Francisco corre o risco de ser voz que clama no deserto se não receber a adesão massiva dos cristãos e das pessoas de boa-vontade.
Crise de época foi a expressão foi usada no documento dos bispos católicos da América Latina e Caribe (Documento de Aparecida, de 2007) para sinalizar a gravidade do momento histórico atual. Ela quer enfatizar que está terminando a época histórica na qual a civilização ocidental cristã impôs sua hegemonia ao mundo. De fato, a crise financeira de 2008 sinaliza que neste século 21 o polo vai se transferir para a Ásia (Pequim), onde o capitalismo poderia retomar seu desenvolvimento tendo por base a economia verde.
Essa transferência de centro do sistema-mundo para a China – e não se pode esquecer a Índia e o Japão – implica também a perda de hegemonia da civilização europeia de origem greco-romana que se expandiu pelo mundo sob a forma de sistema-mundo.
A Europa – acrescida dos EUA, o “extremo Ocidente” – e sua cultura, baseada na razão, na tecnociência, no cristianismo, mas também no patriarcalismo, no colonialismo e no capitalismo, dá sinais claros de decadência e perde gradativamente a função exercida nos últimos cinco séculos: imprimir a direção intelectual e moral do conjunto da população humana. Neste contexto, o pensamento liberal recrudesce e tenta esmagar qualquer pensamento diferente, como se a eliminação da oposição assegurasse sua sobrevivência.
É gigantesca a quantidade de informações hoje difundidas no mundo por meio da internet e outros meios de comunicação de massa; mas porque o excesso de informações resulta em anulação da informação, o conhecimento da realidade é, em geral, de péssima qualidade. Embora a produção científica, cada vez mais especializada, desvende os enigmas da natureza e da história humana, ela é inacessível ao grande público, que não consegue entender sua linguagem e por isso se torna dependente das informações oferecidas pela mídia. Incapaz de distinguir informações falsas das verdadeiras, ingenuamente consome fake news e produtos da propaganda. Por isso fala-se hoje da pós-verdade: diante de informações as mais diversas, a pessoa tender a aceitar como verdadeiro aquilo que corrobora sua opinião. A complexidade das modernas sociedades só reforça essa dificuldade de discernir. A experiência do indivíduo – que ignora a complexa teia de relações envolvidas na produção e distribuição dos bens que consome – mostra que tudo que ele necessita encontra-se no mercado e que tendo dinheiro suficiente terá o que desejar. É a forma atual de alienação: ignora-se as realidades dos sistemas social, econômico, político e ecológico, mas essa ignorância não faz diferença para a vida cotidiana.
Esse pragmatismo do pensamento, que vê o mercado como algo tão natural quanto a lei da gravidade (já dizia Delfim Netto), representa o triunfo do pensamento liberal que justifica o modo de produção e consumo capitalista. Seus valores – progresso, liberdade individual, competitividade, intocabilidade da propriedade e dos contratos, eficiência etc – continuam a dominar o imaginário/ideário ocidental moderno. Em contrapartida, os valores anticapitalistas – como justiça social, socialismo, democracia, igualdade, humanismo e outros já não mais ameaçam a ordem estabelecida. A própria religião, relegada ao foro privado, quase nada mais tem a dizer diante desse mundo ordenado pela lógica do capital.
Nesse contexto entende-se a pertinência da afirmação do bilionário estadunidense Warren Buffet: “A luta de classes existe e a minha classe está ganhando”. Agora em situação de vantagem, a classe dos grandes ricos propõe a sua paz: o fim da luta dos oprimidos e oprimidas por sua libertação até que triunfe a justiça. Pedro Casaldáliga retoma uma frase de Ernesto Cardenal (ou vice-versa) que bem expressa essa derrota das classes oprimidas no plano das ideias: “Combatentes derrotados de uma causa invencível”.
É preciso situar o golpe de 2016 no Brasil no contexto dessas realidades mais amplas – a Terra, o sistema-mundo e o fim de hegemonia do Ocidente – para entender sua dimensão estrutural.
As grandes corporações mundiais têm o interesse estratégico de garantir suas fontes de energia e de matérias-primas na ALeC, a baixo custo, para fazer face à financeirização do capital. Esse interesse associa-se ao interesse estratégico dos EUA de impedir avanço da China no Continente. Embora os governos de Lula e Dilma não fizessem oposição às grandes corporações, tampouco se alinhavam automaticamente aos rumos definidos pelos EUA: a política externa de abertura ao Sul (o chamado Terceiro Mundo) e a parceria comercial e financeira com a China contrariavam os interesses dos EUA. Aí reside, em meu entender, a razão principal do golpe de 2016, da mesma estirpe dos golpes contra M. Zelaya em Honduras (2009), F. Lugo no Paraguai (2012), e as sucessivas tentativas de tirar N. Maduro na Venezuela. (Argentina não sofreu tentativa de golpe porque elegeu Macri para tomar as medidas favoráveis ao grande capital e aos EUA).
O processo do golpe teve seu início durante as mobilizações sociais de junho de 2013, quando a resposta negativa do Governo às demandas populares abriu o caminho para as forças golpistas tomarem as ruas. É relevante o papel da grande mídia, da FIESP e de ONGs tipo MBL e Vem pra rua que contam com financiamento externo (entre outros, o bilionário brasileiro Jorge. P. Lemann). A crise econômica artificialmente estimulada em 2014/16 para desestabilizar o governo Dilma, incapacitada de encontrar uma saída eficaz, foi o estopim do processo que culminou com o impeachment em abril de 2016. Foi então usado o método da guerra de 4ª geração, já referida[2].
É preciso destacar que o golpe teve pelo menos 3 efeitos: reforçar a desigualdade social, dar resiliência ao projeto elitista das classes dominantes e romper o pacto social que gerou a ordem constitucional de 1988.
A desigualdade social no Brasil expressa-se pela concentração da renda e da riqueza.
Quanto à renda, são expressivos os dados da Receita Federal de 2013: do total de 26.500.000 declarantes, 208.000 declararam renda igual ou superior a 80 salários-mínimos / mês (= R$75.000 hoje) e 71.500 declararam renda igual ou superior a 160 salários mínimos mês (= R$150.000 hoje). Se fossem considerados os rendimentos não declarados, ficaria ainda maior a sua concentração em mãos de uma minoria privilegiada. Os 5% mais ricos abocanham o mesmo que os outros 95%.
Também acentuada é a concentração da riqueza: 1% da população concentra 48% da riqueza nacional e 10% têm 74%. Na ponta estão 31 bilionários (há 15 anos eram apenas 10). Em 2017: os 6 maiores bilionários do País juntos possuíam riqueza equivalente à da metade mais pobre da população. Na outra ponta está a população em condições de extrema pobreza: 8,5 milhões de pessoas vivendo com até R$140 mensais (estimativa para 2017).
As classes dominantes têm um projeto histórico elitista contrário ao projeto de Nação.
Herdeiras da casa-grande escravista e detentoras do poder de Estado (por eleição e por corrupção), elas se compõem no jogo político excluindo as forças que postulam a necessidades de reformas estruturais (v.g. agrária, política, fiscal, urbana etc). Detém o capital que controla as empresas e os meios de comunicação de massa. São, porém, submissas às metrópoles neocoloniais (empresários aceitam ser gerentes do capital externo). Contam com a cumplicidade de economistas e pensadores (institutos como Casa das Garças, Millenium e outros) e têm forte presença no Judiciário e nos altos postos de poder cujo acesso se dá por de concurso público. Sua hegemonia cultural e religiosa, abalada durante a ditadura empresarial-militar de 1964-84, foi recuperada pela conivência da maioria das Igrejas evangélicas e do setor majoritário da Igreja católica. Tem hoje sua tranquilidade assegurada pela polícia e pela segurança privada (inclusive milícias) e habita espaços exclusivos (condomínios fechados, alphavilles, resorts, Miami, Portugal etc).
O golpe resultou na ruptura do pacto social que está na base da Constituição de 1988.
Golpe uniu diferentes setores da sociedade brasileira: empresários e ruralistas querendo suprimir direitos trabalhistas para aumentar a taxa de lucro, políticos profissionais que queriam estancar a Lava-jato e livrar-se de Lula e do PT, setores da pequena burguesia temerosos da ascensão econômica dos pobres, igrejas cristãs em oposição a propostas inovadoras na legislação referente ao aborto, às drogas, políticas de gênero e ensino laico. Hoje esses setores constatam a incapacidade do grupo no poder de cumprir o prometido. Desmorona a coalizão que possibilitou o golpe e cada setor tira o proveito que consegue, sem encontrar quem se imponha politicamente para escorar um governo sem respeitabilidade moral. Desenha-se então a intervenção militar como última saída. Seu projeto para 2018 é manter as aparências da democracia sem perder o controle do governo e do Estado. Em caso de risco de derrota, serão suprimidas as eleições.
O golpe pegou a maioria das Organizações e Movimentos populares – com exceção daqueles que tinham feito oposição aos projetos de Lula e Dilma – mais próximos dos órgãos de governo do que do cotidiano vivido nas bases. Esse efeito do lulismo tornou muito difícil a resistência ao golpe porque, diferentemente dos setores médios que se mobilizaram massivamente para desalojar o PT do governo federal, as classes populares pouco se mobilizaram. Sem a percepção clara da dimensão estrutural do golpe, os Movimentos e Organizações não conseguiram elaborar uma estratégia de retirada para entrincheirar-se politicamente numa posição de onde pudessem resistir. Aceitaram cada embate político, sofrendo sucessivas derrotas para os golpistas. Fragilizadas, até agora elas só impediram a implementação de medidas muito impopulares e o avanço da proposta de reforma da previdência. Neste contexto, empate ganha o sabor de vitória…
De fato, a constituição cidadã de 1988 tem sido interpretada pelo Poder Judiciário de modo unilateral, de modo a ser rigorosamente cumprida quando em prol das classes dominantes, mas não quando se trata de preservar direitos de povos indígenas, trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade, e seus representantes políticos. A isso se somam os assassinatos e abusos policiais, chacinas (nas periferias urbanas, no campo e de indígenas) configurando-se o que Paulo Sérgio Pinheiro havia chamado “terrorismo preventivo de Estado”. Trata-se de manter as classes dominadas, potencialmente perigosas para a ordem pública, inertes e recolhidas em seu domicílio por medo de serem objeto da violência policial.
Apesar disso, pode-se perceber a emergência de várias propostas no sentido de desfazer os danos sociais e políticos causados pelo golpe de 2016 e estabelecer uma nova ordem social que faça justiça às classes e setores sociais oprimidos. Aponto aqui três delas:
Não há dúvidas de que as três merecem consideração, porque de forma diferente encaminham soluções concretas para o problema da desordem institucional pós-golpe. Seu ponto fraco reside no fato de que o golpe não foi uma simples troca de governo, mas sim a retomada do poder absoluto pelos representantes das classes dominantes e submissas às grandes corporações internacionais, sendo portanto irreversível. Ele só poderá ser derrubado por um amplo consenso nacional (que foi irremediavelmente rompido) ou por uma insurreição popular (que não está no horizonte). Aliás, pode-se perguntar se alguém ou algum grupo teria hoje poder convocatório para liderar uma insurreição que revertesse a atual correlação de forças. Tudo isso nos obriga a prever longo tempo para criar laços sociais que resultem em força política popular.
Para quem luta por um mundo onde reinem a Justiça, a Paz e a integridade da Casa Comum, toda essa análise da realidade nacional, considerada em seu contexto planetário e sistêmico, só tem sentido na medida em que descortina o horizonte para a ação política libertadora. Por isso, termino a análise apontando os caminhos que hoje vislumbro como viáveis, os novos obstáculos a superar e a necessidade de elaborar-se uma nova compreensão do mundo.
Conscientização: para superar a situação de alienação e descontrole da informação, impõe-se a retomada do trabalho de conscientização popular. O método de Paulo Freire – que une o aprendizado à autoformação da consciência de quem somos, qual nosso lugar no mundo, quem são nossos aliados e quem são nossos adversários e inimigos – é um excelente instrumento para isso. Outro excelente instrumento é o método da leitura popular da Bíblia, sempre confrontada à realidade vivida pelo grupo. Quem toma gosto pela Palavra de Deus inserida na vida do povo torna-se incansável na luta pela instauração do Reino de Deus na história humana.
Organização: neste momento histórico em que os donos da riqueza e do poder reforçam sua posição, é necessário reunir quem partilha o mesmo projeto, tendo em vista ações conjuntas. É preciso mirar no longo prazo – “outro mundo possível e necessário” – sabendo que vivemos conjunturas desfavoráveis nos curto e médio prazos. Por isso, é preciso saber dosar as forças: não jogar tudo nas lutas imediatas, mas fazer delas pontos de apoio para lutas de longo prazo. Cabe então optar por objetivos imediatos bem concretos e que aglutinem o maior número de pessoas (como campanhas e lutas pela água, ambiente, transporte público e saúde, por exemplo).
É preciso retomar o método da Formação na ação, que implica a reflexão em grupo sobre sua prática comum. Ele se completa pelo método ver, julgar e agir ao qual se acrescentou o celebrar.
Novos obstáculos: as transformações do modo de produção e consumo capitalista – fala-se em 4ª revolução industrial, com o advento da inteligência artificial – trouxeram dificuldades antes desconhecidas, como a diluição dos laços sociais oriundos da participação no processo de trabalho – cada vez mais individualizado e controlado pela informática (uberização) – e a redução da mobilidade urbana, que torna as famílias e as pessoas mais isoladas em seu espaço doméstico. Outro obstáculo a ser destacado são as redes sociais que em vez de serem espaço de diálogo e debates se tornaram comunidades virtuais de quem pensa da mesma maneira.
Nova compreensão do mundo: o pensamento iluminista sistematizado na Europa do século 19 e desenvolvido no século 20 – agora globalizado – mostra-se incapaz de fundamentar projetos de construção de uma civilização planetária que substitua a civilização ocidental-moderna. Buscamos hoje um novo paradigma – ou uma nova base hermenêutica – de pensamento carregado de valores que impulsionem a construção da Paz e da Justiça no mundo. A sabedoria do Bem-Viver (Sumak Kawsay) é um desses pensamentos que hoje vem ganhando espaço entre os Movimentos e Organizações sociais, porque (i) inclui a Terra como sujeito de Direitos, (ii) assume a dimensão espiritual e mística (a capacidade de ver o que está por detrás do perceptível e que energiza o real), (iii) reconhece as diferenças de gênero, étnicas, culturais, de geração e outras ao pensar as condições de existência e (iv) inclui outras espécies além da humana como parceiras na comunidade de vida.
A sabedoria ou utopia do Bem-Viver tem sua origem na experiência de lutas populares contra o capitalismo neoliberal e tem seu fundamento nas raízes culturais dos povos originários da América, mas não é um retorno ao passado e sim um projeto pós-capitalista. Por isso tem afinidades com o ecossocialismo e outras propostas de superação histórica do capitalismo. Importante notar que ele brota da prática popular, mas não é espontâneo: exige elaboração teórica para sustentar aquela prática.
Para as comunidades cristãs fica uma questão: a Fé que está baseia nossa Esperança é ingenuidade? Ou temos razões para afirmar nossas convicções?
Notas:
[1]. ARRIGHI, Giovanni: O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo;Contraponto e UNESP, 1996
[2]. A guerra de 4ª geração visa destruir o inimigo por meio de aparelhos de informação, do Judiciário, do Ministério Público e de acordos multilaterais (contra as drogas, o terrorismo, a corrupção ou em defesa de Direitos Humanos e da Democracia). A criação da Agência Nacional de Segurança dos EUA após os atentados de 11/set. 2001 possibilitou o controle das informações que circulam por internet colocando-as a serviço de sua Política Externa. (Denúncia de Snowden e Assange). O uso da informação (inclusive a pós-verdade e os fake news) permite a destruição do inimigo sem o uso das Forças Armadas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Um novo paradigma para análise de conjuntura. Pedro Ribeiro de Oliveira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU