16 Agosto 2017
Quando os bispos latino-americanos se reuniram na cidade brasileira de Aparecida, em 2007, para planejar uma estratégia pastoral para o continente, o então cardeal Jorge Mario Bergoglio foi o principal arquiteto do documento. O cardeal Odilo Pedro Scherer, de São Paulo, diz que eles ainda não estão à altura da sua visão, dizendo que é hora de mudar da “manutenção” para a “missão”.
A reportagem é de Filipe Domingues, publicada por Crux, 14-08-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há dez anos, os bispos latino-americanos se reuniram na cidade brasileira de Aparecida para “repensar a missão da Igreja” e “relançá-la com fidelidade e ousadia”. Essas são as palavras do Documento de Aparecida, cuja comissão de redação foi liderada por Jorge Mario Bergoglio, então arcebispo de Buenos Aires.
Aparecida diz que a fé católica não pode ser “reduzida a mera bagagem, a um elenco de algumas normas e de proibições, a práticas de devoção fragmentadas”. Ao contrário, ela é “encontro com um acontecimento, com uma Pessoa [Jesus Cristo], que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva”.
Fazendo um balanço do 10º aniversário do Documento de Aparecida, o Crux teve uma longa conversa com o cardeal Odilo Pedro Scherer, arcebispo de São Paulo. Membro de seis comissões vaticanas e um dos candidatos favoritos no conclave que elegeu o Papa Francisco, ele provavelmente é a voz mais influente na Igreja brasileira.
“Não dedicamos energia suficiente para pôr em prática o que é afirmado no Documento de Aparecida”, disse ele, em seu escritório na Cúria Metropolitana de São Paulo, no dia 4 de agosto. “A Igreja na América Latina precisa passar de uma abordagem pastoral de manutenção e conservação a um estilo pastoral decididamente missionário”, acrescentou.
Scherer acredita que, às vezes, os documentos da Igreja demoram muito para serem aplicados: é necessário um movimento “do chamado à ação”. Para ele, Francisco é o papa certo para os nossos tempos.
“Ele está fazendo muito ao mostrar qual é a contribuição da América Latina para toda a Igreja”, disse.
Entre outras questões, Scherer comentou alguns dos principais desafios da Igreja no Brasil, o país mais católico do mundo. Ele analisou a migração de fiéis das comunidades católicas para as evangélicas, e a atual crise de corrupção no cenário político do país.
Sobre a Amoris laetitia, ele disse que a sua arquidiocese ainda está “no início de uma interpretação”, já que se supõe que ela deva ser lida devagar. Ele pretende fazer isso com a ajuda do clero local. De qualquer forma, “uma mensagem central da Amoris laetitia é que a Igreja não exclui as famílias por causa das suas imperfeições”, afirmou o cardeal.
Dez anos depois da publicação do Documento de Aparecida, como você avalia as realizações da Igreja?
O documento é um ponto-chave de referência para a Igreja na América Latina. Através do Papa Francisco, muitas das questões levantadas pelo documento foram entregues à Igreja no resto do mundo. Ele era o chefe da comissão de redação. No entanto, eu acredito que não dedicamos energia suficiente para pôr em prática o que é afirmado no Documento de Aparecida. Há muitas questões que precisam ser recapturadas e postas em prática com mais perseverança. Ela ainda tem muito para render.
Pode dar exemplos do que precisa ser aplicado melhor?
A questão central é que a nossa fé não nasce de um belo discurso. A nossa fé e as nossas práticas religiosas não se baseiam em uma ideologia ou em um sistema elaborado de doutrinas. Ela nasce do encontro pessoal com Deus através de Jesus Cristo. Essa é uma palavra do Papa Bento XVI que se tornou uma das principais diretrizes de Aparecida. A evangelização é um processo que deve ajudar as pessoas a se encontrar com Deus e a ir além, aprendendo os caminhos de Deus através da prática da vida cristã, da vida ética, moral e religiosa. Isso continua sendo verdade, mas ainda há muito a fazer. Muito a fazer. É isso que, de fato, o Papa Francisco está nos pedindo para fazer.
Outra questão era que a Igreja na América Latina precisa passar de uma pastoral de manutenção, conservação, para uma pastoral decididamente missionária. Isso requer uma nova abordagem. Não podemos pensar apenas em cuidar do que temos, do que somos, mas também sempre manter à nossa frente a abertura missionária. É o que o Papa Francisco está nos dizendo. Uma Igreja em saída em um constante estado de missão. Um terceiro pensamento é sobre a conversão pastoral. A Igreja precisa passar por uma conversão prática em suas atitudes e processos. Isso significa integrar muito mais a dimensão missionária na constante ação da Igreja da vida comum. Ser missionários não pode ser apenas um momento, mas toda a vida eclesial. É para toda a comunidade.
Você usa a palavra “prática” muitas vezes. Aparecida também fala de praticar a fé através das obras. Isso tem a ver com a “opção preferencial pelos pobres”?
Quando falo da prática da vida eclesial, eu também incluo a teologia, a liturgia e, é claro, incluo as virtudes morais, um compromisso no mundo, um compromisso social. A prática da vida eclesial é todas essas coisas juntas. É claro, Aparecida, na linha das conferências anteriores, chamou a atenção para a situação social na América Latina. A Igreja não pode ignorar a pobreza, a injustiça social, a violência, a corrupção, o tráfico, o desrespeito à dignidade humana. Você sempre deve estar muito comprometido com essas questões, na fidelidade ao Evangelho. O Papa Bento XVI disse no discurso de abertura de Aparecida que a opção preferencial pelos pobres não é uma questão de ideologia, mas de cristologia. Ela é coerente com o ato e o ensinamento de Jesus Cristo. Isso, é claro, precisa ser traduzido em práticas de vida eclesial.
A eleição do Papa Francisco foi uma resposta à necessidade de olhar para a Igreja periférica?
Eu acho que a escolha do Papa Francisco, em primeiro lugar, está no plano de Deus. Nós invocamos o Espírito Santo e pedimos a sua orientação para todo o trabalho do conclave. Neste ponto da história, não deveria ser considerado extraordinário que fosse alguém da América Latina, pois ela representa mais da metade dos católicos. Mas foi providencial que Bergoglio tenha sido escolhido, já que ele tem uma vasta experiência da Igreja na América Latina, não só como arcebispo de Buenos Aires...
Ele foi um personagem-chave em Aparecida. Então, ele estava preparado para realizar a missão que lhe foi dada e está fazendo isso de uma maneira muito boa. O Espírito Santo se manifesta deste jeito: ele envia o homem, o papa, que é importante para cada momento da história. Eu acredito que, para este momento da história da Igreja, era importante ter alguém como o Papa Francisco. Ele está fazendo muito ao mostrar qual é a contribuição da América Latina para toda a Igreja. Ele tem o seu próprio jeito de evangelizar, de se relacionar com o mundo, com a sociedade, com a cultura, com o povo. É uma forma de vida eclesial que pode ser transmitida.
Quais são os principais desafios que a Igreja enfrenta no Brasil?
O primeiro é um déficit de evangelização, que é histórico. Pouco tempo atrás, nós tínhamos uma maioria absoluta de católicos, e, portanto, não havia nenhuma preocupação com uma evangelização a mais. Transmitir a fé era apenas normal. Era uma prática social. Historicamente, a evangelização no Brasil começou com os missionários, desde 1500. Mas foi deficitária durante quatro séculos, porque os missionários eram poucos.
No período do Império brasileiro, no século XIX, a Igreja precisava de um decreto imperial até mesmo para fundar uma paróquia. Chegamos à República, em 1889, com muito pouco clero, apenas 12 dioceses em todo o Brasil. Praticamente não havia nenhum seminário. Só então é que a Igreja organizou dioceses, paróquias, missionários, formação do clero. Ainda sentimos isso hoje. O nosso povo é tradicionalmente religioso, mas de uma religiosidade superficial, isto é, com pouca profundidade. Em todos os tempos, isso corre o risco de ser abandonado ou substituído por outras comunidades cristãs.
É por isso que os grupos evangélicos cresceram tão rapidamente?
O sucesso dos evangélicos ocorreu de 1950 até agora, mas especialmente desde os anos 1970. Eles encontraram um terreno fértil de católicos não evangelizados. E esses católicos “apenas de nome” encontraram alguém que pregava com insistência e perseverança. Hoje, temos uma população que deixou de ser católica em sua maioria. De acordo com as projeções, ainda temos 65% de católicos, mas o grupo de pessoas “sem religião” também cresceu. Essa imagem mostra a evangelização superficial. De alguma forma, ainda temos que resolver esse problema.
Os padres ainda são poucos?
Temos uma escassez de clérigos, historicamente, mesmo que tenhamos um número maior de padres do que no passado. Até 1970, pelo menos metade do clero era estrangeiro. Hoje, a grande maioria é brasileira. Há desafios em todos os lados. Existem grupos cristãos fortemente proselitistas ou até mesmo anticatólicos. A grande maioria dos católicos é indiferente. Não se vinculam à vida da Igreja, à prática cristã. Precisamos fazer um trabalho melhor para sair e ir ao seu encontro, porque são católicos. São filhos da Igreja.
Você convocou recentemente um sínodo arquidiocesano. É uma forma de pensar sobre esses desafios?
A ideia desse sínodo vem da minha preocupação de passar do chamado à ação. A Igreja tem muitos documentos, muitas indicações. Mas eu percebo que ela demora muito, quando o faz, para chegar ao “andar térreo” da Igreja, a prática cotidiana. O sínodo é um momento para que a nossa arquidiocese pense sobre “o que tudo isso tem a ver conosco?”. Como traduzimos os chamados de Deus em novas formas de vida eclesial e de prática pastoral?
A Igreja no Brasil tem se preocupado com as questões ambientais há muito tempo. A Laudato si’ oferece alguma ajuda extra?
A Igreja no Brasil trabalha nessas questões desde os anos 1980. A contribuição do Papa Francisco é realmente enorme, porque é mais ampla. Quero destacar dois aspectos. Primeiro, a consciência pública em preservar o ambiente. Isso está bem dito na expressão “casa comum”. É mais fácil de entender que toda a humanidade é uma família, e, portanto, todos fazem parte da casa comum, não apenas algumas pessoas, alguns Estados. A casa deve beneficiar a todos, mas também deve ser bem conservada por todos.
O segundo ponto: grande parte da deterioração do ambiente deriva da acumulação de riqueza dentro de alguns grupos ou povos. Isso é injustiça social. As pessoas mais pobres não têm nem a mínima capacidade de cuidar do ambiente, porque precisam sobreviver de alguma forma. Uma maior justiça econômica é importante para preservar a casa comum. Outra questão está relacionada com a responsabilidade. Lidar com o ambiente de forma egoísta implica uma responsabilidade moral, inclusive diante de Deus. Esse é um novo elemento.
Como a Igreja de São Paulo interpretou e implementou as diretrizes da Amoris laetitia? Como você as interpreta pessoalmente?
Ainda estamos no início dessa interpretação ou aplicação. Temos de entendê-la bem para traduzi-la melhor em novos modos de vida eclesial e pastoral, seja em relação à família, seja em relação à juventude, e ajudar a enfrentar situações problemáticas que afetam as famílias. Precisamos mudar a forma tradicional da pastoral para a família, que não pode ser um apêndice. Não pode ser uma pastoral entre muitas outras. Ela deve ser transversal e estar presente em toda a Igreja. A Amoris Laetitia deve nos guiar por um longo tempo.
Aqui em São Paulo, tentamos receber o documento imediatamente. Mas, primeiro, devemos ajudar a lê-lo e ajudar a explicá-lo. Teremos um curso de atualização do clero no qual abordaremos a Amoris laetitia e, com eles, vamos tentar entender melhor o que o papa diz e tentar refletir sobre como isso deve ter consequências para a nossa ação pastoral. O papa disse que o documento deve ser lido devagar, a fim de evitar tomar conclusões equivocadas ou adotar práticas erradas.
Mas a Igreja pode ajudar as famílias que, às vezes, são vistas como imperfeitas?
Toda realidade humana é imperfeita. Graças a Deus, temos muitas boas famílias, mas uma mensagem central da Amoris laetitia é que a Igreja não exclui as famílias por causa das suas imperfeições. Primeiro, nós acolhemos as famílias e melhoramos o que já é bom nelas. Nós as ajudamos a caminhar nos caminhos do Evangelho. Nós apoiamos aqueles que têm dificuldades para identificar as situações problemáticas e ver se há alguma solução. Se não houver solução, mesmo assim não podemos abandonar as famílias a si mesmas. Devemos expressar esperança para todos. Se Deus não fecha a porta a ninguém, a Igreja não deveria fechar as portas a priori a ninguém. A Igreja deve ajudar a todos a compreender os caminhos de Deus.
O Papa Francisco diz que a corrupção é uma forma de pecado. Como você avalia a situação política do Brasil e como podemos superar a crise?
Não é apenas nos nossos dias que a corrupção é um pecado! Ela colide com pelo menos dois mandamentos: o quinto e o oitavo. A corrupção é uma falsidade, mas também significa roubar. E os pobres sempre são as principais vítimas dos desvios de recursos públicos. Felizmente, no Brasil, estamos pelo menos tentando limpar um pouco a vida pública. A Igreja tem falado sobre corrupção há muito tempo. Uma vez, um presidente da nossa conferência episcopal, em 2004 ou 2005, disse que o maior mal do Brasil é a corrupção. Isso criou um escândalo. Hoje, estamos vendo que, de fato, é assim. A Igreja deve ajudar a denunciar a corrupção, mas também a propor critérios de moralidade. Isso depende de uma mudança de cultura.
Vivemos em tempos de grande polarização política. O radicalismo é um risco?
Todo radicalismo começa com um preconceito. Alguém pode ser muito injusto contra outra pessoa por causa de um preconceito. Portanto, os radicalismos não constroem justiça. Eles devem ser evitados e, portanto, a serenidade, o discernimento, uma busca imparcial pela verdade e o respeito por todas as pessoas devem estar em primeiro plano. Até mesmo antes de quaisquer posições tomadas anteriormente.
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“É hora de passar da conservação à missão.” Entrevista com D. Odilo Pedro Scherer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU