15 Mai 2017
Eram crianças, surdas e muito pobres. As vítimas ideais. Foi fácil convencê-las a não contar nada. E se contassem, como aconteceu com algumas, ninguém iria acreditar nelas. Ainda hoje, com vinte e poucos anos, surpreendem advogados e promotores pelos rostos de terror que fazem em rodadas de reconhecimento quando veem o padre Corradi, de 82 anos. Colocam a mão na boca e fecham o punho. Ainda têm medo mesmo com ele na cadeia. São as crianças do Provolo de Mendoza (oeste da Argentina), um instituto para surdos onde foram cometidos abusos sexuais de todos os tipos durante anos contra menores, inclusive de cinco anos. Realizados principalmente por sacerdotes, às vezes com a ajuda de uma freira que testava meninas e meninos para encontrar os mais fracos e entregá-los aos sacerdotes.
A reportagem é de Carlos E. Cué e Federico Rivas Molina, publicada por El País, 14-05-2017.
Há seis pessoas detidas e o centro foi fechado em dezembro. Nem a Igreja tem coragem de negar o que acontecia lá dentro. Os estupros e as humilhações de todo tipo – uma adolescente denuncia que foi acorrentada e abusada por quatro pessoas ao mesmo tempo – quase sempre aconteciam em um sótão, em uma sala que chamavam de “a casinha de Deus”. A polícia encontrou as correntes e material pornográfico. “Ao subir as escadas em uma inspeção, uma vítima apontou uma imagem da Virgem e disse: ‘Sempre que passava por aqui, a freira malvada fazia o sinal da cruz’. Como podia ser tão hipócrita?”, pergunta o promotor do caso, Gustavo Stroppiana, que tem problemas para dormir à noite – tem filhos pequenos – depois das coisas que ouviu na investigação. A freira foi presa esta semana pelas provas encontradas.
“Várias testemunhas concordam. Primeiro, a freira Kumiko Kosaka batia nos menores para testá-los. Aqueles que resistiam, se salvavam. Os que eram submissos acabavam sendo abusados”, explica Sergio Salinas, advogado de várias vítimas e grande incentivador da causa apoiado por sua associação, Xumek. Uma menina de cinco anos, agora adolescente, foi repetidamente estuprada por Corbacho, outro padre do Provolo que está preso. “A freira a levava ao quarto do padre, sabendo o que acontecia, e um dia colocou uma fralda para esconder a hemorragia e levá-la ao refeitório. Doía tanto que não podia se sentar. Ela mostrava pornografia, fazia as meninas se tocarem. Eram crianças muito pobres, com famílias problemáticas, que pouco viam os filhos porque estavam internados. Além disso, os escolhidos eram aqueles que tinham mais dificuldade para se comunicar com os pais, que não conheciam a linguagem de sinais”, diz Salinas.
Todas as vítimas e até mesmo os promotores da causa concordam em uma ideia: a enorme responsabilidade da Igreja no que aconteceu no Provolo.
Especialmente porque sabiam há muitos anos quem era Nicolás Corradi. E, longe de pará-lo, de denunciá-lo à justiça ou de afastá-lo das crianças, simplesmente o mudavam de cidade ou país, onde só mudavam as vítimas, sempre crianças surdas e pobres.
Corradi chegou a La Plata, perto de Buenos Aires, em 1986. Vinha de Verona, onde supostamente tinha abusado de outras crianças surdas. Uma gravação com câmera escondida de um dos padres do Provolo de Verona feita por jornalistas italianos mostra o sistema: quando havia denúncias, o padre tinha que escolher: "para casa ou para a América". Todos optavam pela segunda.
Em 2009, o caso de abusos em Verona tornou-se público. Houve um julgamento. Foi um grande escândalo. O nome de Corradi apareceu como um dos piores abusadores. Mas nem no Provolo de La Plata, onde tinha estado, nem no de Mendoza, que dirigia, fizeram algo. Os pais, muito pobres, não ficaram sabendo. E Corradi continuou abusando das crianças. "Nunca chegou qualquer notícia, nunca. Não sabíamos absolutamente dos antecedentes dessas pessoas, não tínhamos ideia", afirma o porta-voz do bispado de Mendoza, Marcelo de Benedectis.
O escândalo de Verona foi publicado em jornais, incluindo o El País, mas a Igreja local afirma que não sabia e insiste que o Provolo depende diretamente do Vaticano. "Esses eventos causaram uma comoção na sociedade e na Igreja", explica. "Tomamos medidas para que esses fatos não aconteçam nunca mais. Foi nomeado um visitante diocesano que percorre a província, faz visitas pastorais às escolas para que o clima seja saudável e de proteção para as crianças. Todos os padres devem apresentar um documento oficial de sua aptidão psicofísica, demonstrar que podem trabalhar com crianças".
O advogado e as vítimas, cerca de vinte por enquanto – continuam aparecendo novas testemunhas, que se atrevem a denunciar ao ver na televisão que estão presos os padres que os aterrorizavam – não estão sozinhos. O promotor conta a mesma versão. “Quando estavam dentro, ameaçavam expulsá-los se falassem. É preciso levar em conta que muitas dessas crianças vieram de favelas, o centro era como um hotel de luxo para eles. Diziam que suas famílias teriam muitos problemas se dissessem algo. Quando saíram, conviveram com medo e vergonha. Alguns hoje têm filhos, têm dificuldade para contar o que fizeram com eles. Mas dão força uns anos outros. Alguns eram tão pequenos que não podiam transmitir o que acontecia, não sabiam. Encontramos muitos que se autolesionavam porque não podiam dizer o que estavam fazendo com eles. Agora querem falar ao vê-los presos. Um garoto que agora vive na província de San Luis nos contou: ‘Se eles forem soltos, eu me mato’”.
As vítimas, que têm audição reduzida (hipoacústicos), estão bem protegidas. Suas famílias preferem não falar. Mas uma concordou em falar com o El País. É Cintia Martínez. Seu filho, agora com 20 anos, foi abusado por seu cuidador, que antes tinha sido outro interno do Provolo e que, por sua vez, também tinha sido estuprado por um dos sacerdotes. “Meu filho viu como abusavam do que depois o estuprou. Era uma corrente. Ainda hoje tem pavor de Corradi. Sua história sempre para nele. Diz tem muito medo dele”.
Cintia está especialmente machucada. Se tivessem prestado atenção nela poderiam ter evitado muitas vítimas. Em 2008, ela viu que seu filho, internado no Provolo, estava muito mal. “Dormia com a luz acesa, começou a se machucar, cortava os braços, as pernas, disse que não queria ficar lá. E um dia me trouxe um desenho pornográfico, era uma pessoa mais velho fazendo sexo oral em outra. Tinha colocado olhos como se outros estivessem olhando. Me disse que tinha sido forçado a fazer sexo oral com outro aluno”. Cintia foi até a escola escandalizada. Mas ali pediram para não que não contasse nada, prometeram que iriam afastar o responsável. Ela fez a denúncia e tirou a criança. Ninguém a levou a sério.
“Nem mesmo as mães acreditaram em mim. Disseram que meu filho e eu éramos briguentos. Teria parado aí. Mas não. Continuou até 2016. Isso é o que dói mais”. Quando entraram no Provolo para prender os padres e fechar o centro, os investigadores encontraram sêmen na roupa interior de uma menor.
Os abusos continuaram até o último dia, e só pararam por acaso, porque uma menor contou tudo a uma intérprete bem quando estavam em um edifício com o promotor e a vice-governadora ao lado. Foram rapidamente explicar isso a eles e a causa foi aberta. Uma vítima levou a outra e todas foram confessando em um efeito dominó. A Igreja nunca fez nada para detê-lo. “Eu ainda acredito em Deus, mas certamente nunca mais na Igreja”, indigna-se Cintia. Apenas na Argentina, o país do papa Francisco, há 62 padres denunciados por abusos desde 2002. Apenas três deles foram expulsos. Os outros continuam sendo sacerdotes, mesmo presos.
Os Provolo eram grandes institutos, com pessoal de limpeza e muitos professores. Todos se perguntam em Mendoza como é possível que ninguém tenha visto ou dito nada em tantos anos. Leticia Grellet foi professora por 17 anos.
“Nunca tivemos qualquer suspeita. Víamos todos os dias essas pessoas, eram de confiança para nós, exceto Corradi que era muito abusivo com o corpo docente”, afirma. “No início, nós nos recusamos a acreditar que isso poderia acontecer, tínhamos uma relação familiar. Alguns alunos estudaram lá por 15 anos. Vimos o crescimento deles, eram parte da nossa família. É terrível que não tenham dito nada, que não pudemos vislumbrar que alguma coisa acontecia à noite. Todos os professores foram ao psicólogo pelo trauma. Esses monstros eram nossos colegas de trabalho, nossos empregadores”.
Os promotores acreditam que alguns professores sabiam. Especialmente porque houve denúncias que não foram atendidas. “Em 2015 uma mãe reclamou que os maiores baixavam as calças de seu filho. Perguntamos e eles negaram. Os que cuidavam deles são os que estão presos”, admite Grellet. Esse menino era o filho de Beatriz Escudero, que tem outra visão: “Eu falei com a diretora e ela minimizou tudo, disse que os meninos eram alunos muito bons sem problemas. Ninguém acreditou em mim. Até que explodiu o escândalo”.
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Argentina. Inferno na “casinha de Deus”: dois padres estupravam crianças surdas ajudados por uma freira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU