11 Dezembro 2012
Os pontos fortes de uma lição que atravessou a vida social e cultural de Milão. No estilo de Martini, nascem cartas do fôlego de uma comunidade, de sugestões e de perguntas.
A análise é de Gianfranco Ravasi, cardeal presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 09-12-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
"De onde vêm essas Cartas Pastorais? De um momento de desorientação, de confusão, em que eu me perguntava: o que eu digo? Eu havia entrado em Milão como bispo através de uma longa caminhada. Mas, naquele verão de 1980, eu não sabia exatamente como proceder, como pôr ordem na minha confusão. Dessa primeira confissão, nasceu a ideia da Carta Pastoral. (…) Nos primeiros dias de agosto, eu havia ido para as montanhas. Ainda me lembro das grandes cascatas que enchiam os vales de sons e de frescor. Olhando para as cascatas, comecei a escrever a primeira Carta".
Assim, à distância de anos, o cardeal Carlo Maria Martini evocava a gênese da sua primeira Carta Pastoral. Aquele contexto de "confusão" – que se desenrolava através da experiência de um silêncio "branco", que era, como a cor, síntese de todo o espectro cromático, ou seja, cumprimento de todas as palavras importantes – explicava o desabrochar do tema já bem claro no título, La dimensione contemplativa della vita [A dimensão contemplativa da vida]. Era essa a primeira e surpreendente Carta Pastoral do neoarcebispo de Milão.
A cidade, de fato, naqueles anos, ainda estava muito atormentada: entreviam-se os gérmens da próxima crise política, ainda incumbia o terrorismo com toda a sua brutalidade, haviam-se acalmado os valores éticos e se registrava um clima de desconfiança na própria comunidade eclesial. Martini, em vez de mergulhar nesse emaranhado como a Marta evangélica, preferiu o caminho "mais necessário" tomado por Maria, o da escuta contemplativa, da reflexão, do silêncio, da oração, do mistério da pessoa.
Essa linha regeneradora atravessará também a segunda Carta – In principio, la Parola [No princípio, a Palavra] –, explicitamente dedicada à voz de Deus que nos interpela na escuta autêntica, transpassando o burburinho das fofocas e o grito dos eventos históricos.
O mesmo fio temático também percorrerá as Cartas Pastorais posteriores, que também penetram na praça da cidade, ou seja, na vida civil, social, cultural, religiosa da diocese da qual Martini era pastor. Por isso, é significativo que o Corriere della Sera, o jornal de Milão por excelência, tenha querido repropor, em oito etapas, toda a mensagem dirigida pelo arcebispo aos fiéis ambrosianos, mas ao mesmo tempo aberto a todos os cidadãos que, mesmo se distantes da fé, se sentiam muitas vezes interpretadas e interpelados por Martini.
Agora, não queremos delinear os conteúdos desses documentos, até porque, entre os dotes do cardeal, estavam a limpidez de pensamento e a clareza do ditado. De fato, ideal e concretamente, ele confirmava nos seus escritos e na sua pregação o lema daquele grande orador que foi São Bernardino de Sena: "Aquele que fala claro tem clara a sua alma".
Ao invés, é relevante definir para os leitores o gênero literário específico das Cartas Pastorais que são uma expressão fundamental do magistério episcopal, isto é, da função de guia e de mestre que o bispo deve cumprir. A Carta delineia o programa da vida religiosa de uma comunidade, seja na sua dimensão de conteúdos ideais, temáticos e de verdade, seja na concretude da existência pessoal e comunitária.
Trata-se, portanto, não tanto de um quadro geral que normalmente o bispo esboça naquele que é chamado de "Plano Pastoral", mas sim de uma expressão sua daquele "Plano" geral em um aspecto particular, ao longo do caminho que a Igreja local está percorrendo de ano em ano, à luz do Evangelho. Portanto, há uma espécie de articulação progressiva em etapas, que só no fim revelam o seu desenho de conjunto, o que justamente nós definimos como "Plano Pastoral".
Por isso, quem quer conhecer autenticamente o rosto de Martini como pastor deve se ancorar sobretudo nestas páginas, percorrendo-as no seu desenvolvimento plurianual. Dois são, no entanto, os lineamentos delas, próprios da mesma categoria do "crer". Os teólogos usam um curioso binômio latino: falam sobre uma fides quae, isto é, de uma fé que precisa acreditar, ou seja, de um conteúdo seu objeto de verdade permanente; e de uma fides qua, de uma fé com a qual devemos acreditar, isto é, um ato de confiança, de adesão vital, existencial, moral.
Cada Carta Pastoral sempre se move segundo esses dois registros que o cardeal Martini bem expressava em uma homilia sua por ocasião da festa da Catedral de Milão, dedicada a "Maria nascente" (8 de Setembro de 1982): a Carta Pastoral "não quer propor apenas coisas para fazer juntos. Ela também pretende criar as premissas e os estímulos para um pensar juntos: o pensar juntos o rosto da nossa Igreja diocesana é a primeira coisa a fazer importante e decisiva". Pensar e agir, portanto, em simbiose eficaz.
E se a Carta Pastoral é, por excelência, o ato mais alto da missão pastoral do bispo, isso não significa que ela nasça solitariamente. Ao invés, sobretudo no estilo de Martini, ela floresce também do fôlego de uma comunidade, ou seja, das instâncias, das sugestões, das demandas do povo cristão.
Mas não só, porque o cardeal também gostava de ouvir a voz dos não crentes e de todo aqueles que são buscadores de verdade e de justiça. Eu mesmo, por exemplo, fui testemunha, no arcebispado, de um longo diálogo entre Martini e Umberto Eco, Beniamino Placido, Aldo Grasso e Armando Torno em preparação a uma Carta Pastoral que teve um forte impacto também extraeclesial, dedicada à comunicação de massa e intitulada Il lembo del mantello [A orla do manto] (1991-1992). A essa luz, compreende-se como são emblemáticas para a obra de Martini duas palavras de matriz latina usadas pelo vocabulário teológico para definir a missão do pastor na Igreja.
Há acima de tudo o termo "magistério", que se fundamenta no magister, o "mestre", mas também o "senhor" da cultura clássica. Na sua raiz, está contido o advérbio magis, "mais": denota-se, portanto, uma função de "superioridade", isto é, de guia, um pouco como faz o pastor "bom/belo", descrito por Jesus no quarto Evangelho: "Ele caminha na frente das ovelhas; e elas o seguem porque conhecem a sua voz" (João 10, 4). A voz do pastor ressoa forte e clara, o seu bastão indica "o caminho certo" e "dá confiança" (Salmo 23, 3-4), e o rebanho prossegue ao longo desse traçado, ouvindo as palavras do guia. É por isso que, no Cenáculo, na última noite da sua vida terrena, Cristo declara explicitamente: "Vocês dizem que eu sou o Mestre e o Senhor. E vocês têm razão; eu sou mesmo" (João 13, 13).
Mas Jesus pronuncia essa frase justamente enquanto está de joelhos e está lavando os pés dos discípulos, em um gesto extremo de serviço. Eis, então, o outro vocábulo, "ministério", que se fundamenta no latim minister, o "servo", um termo que tem como raiz o advérbio minus, "menos": o verdadeiro pastor, de fato, deve se doar pelo seu rebanho ou, melhor, "dá a sua vida pelas suas ovelhas" (João 10, 11). E o lema autobiográfico de Cristo é emblemático: "O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e para dar a sua vida como resgate em favor de muitos" (Marcos 10, 45).
O "magistério" do cardeal Carlo Maria Martini foi um verdadeiro "ministério", e a participação dos fiéis e de todos os cidadãos ambrosianos no evento da sua morte foi a atestação mais viva e direta disso.
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Os anos de chumbo e o terrorismo: como Martini deu confiança a Milão. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU