10 Dezembro 2012
O cardeal Martini nos deixou às vésperas do 50º aniversário da abertura do Concílio Vaticano II. Isso torna ainda mais significativa a sua herança pessoal, eclesial e civil, que coincide plenamente com a do Concílio.
A opinião é do jesuíta italiano Bartolomeo Sorge, diretor emérito da revista Aggiornamenti Sociali e ex-diretor das revistas Popoli e La Civiltà Cattolica. O artigo foi publicado na revista Aggiornamenti Sociali, de dezembro de 2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Mais do que celebrar a memória de cardeal Martini, é importante recolher o seu ensinamento, de modo que o seu legado não fique disperso, mas continue atuando mesmo depois da sua morte. O fato de ele ter nos deixado às vésperas do 50º aniversário da abertura do Concílio Vaticano II torna ainda mais significativa a sua herança pessoal, eclesial e civil, que – como veremos – coincide plenamente com a do Concílio Vaticano II.
A herança pessoal
Não há dúvida de que o primado da Palavra de Deus é a primeira grande herança do Concílio. De fato, a redescoberta da Sagrada Escritura é a origem de toda a "atualização" por ele promovida. Tanto é que, a 50 anos de distância, podemos bem dizer, sem temer desmentidas, que o documento conciliar mais importante não é nem a constituição dogmática Lumen gentium, nem a pastoral Gaudium et Spes, mas sim a constituição dogmática Dei Verbum.
Ao mesmo tempo, é bem sabido a todos que a principal herança do cardeal Martini está justamente no amor apaixonado pela Sagrada Escritura. No fundamento da liberdade interior, da parrésia evangélica e da clarividência que caracterizaram a sua personalidade, encontra-se, assim como para o Concílio, o amor pela Bíblia.
Martini não foi somente uma testemunha iluminada da Palavra de Deus na sua vida pessoal de sacerdote e de estudioso, mas a inspiração bíblica também marcou profundamente toda a sua extraordinária atividade. No fundo, o verdadeiro "problema" do cardeal Martini está todo aqui: meditando constantemente a Palavra de Deus, ele acabou vendo o mundo, história e os problemas humanos através dos próprios olhos de Deus. Testemunha disso é a frase que ele quis que fosse esculpida na sua lápide: "Lâmpada para os os meus pés é a tua Palavra, luz para o meu caminho" (Salmo 118, 105).
Portanto, não é por acaso que, recém-chegado a Milão, a sua primeira iniciativa foi a de instituir a Escola da Palavra, entendida não como fria academia de exegese, mas sim como cálida experiência de vida. O objetivo – explicou ele mesmo – era o de fazer reviver nos cristãos de hoje, e especialmente nos jovens, "aquela experiência do fogo no coração que tiveram os dois discípulos na estrada de Emaús".
E acrescentava, fundamentando-se na sua própria experiência, que ele considerava a Bíblia, "lida e rezada sozinho, nos grupos e nas comunidades", em particular pelos jovens, como "o livro do futuro" (2002, 9).
Compreendem-se, por isso, as palavras ditas ao padre Georg Sporschill na última entrevista, poucos dias antes de morrer, destinada a permanecer como o seu testamento espiritual: "O Concílio Vaticano II restituiu a Bíblia aos católicos. (...) Somente quem percebe no seu coração essa Palavra pode fazer parte daqueles que ajudarão a renovação da Igreja e saberão responder às perguntas pessoais com uma escolha justa. A Palavra de Deus é simples e busca como companheiro um coração que escute (...). Nem o clero nem o Direito eclesial podem substituir a interioridade do ser humano. Todas as regras externas, as leis, os dogmas nos foram dados para esclarecer a voz interior e para o discernimento dos espíritos" (Martini, 2012).
Em outras palavras – explica Martini –, só uma Igreja que, à luz da Bíblia, olha o mundo com os olhos de Deus e "pensa grande", com os pensamentos de Deus, pode gerar aqueles cristãos livres, necessários para que a Igreja e o mundo se renovem, "pessoas que sejam livres e mais próximas do próximo, como foram o bispo Romero e os mártires jesuítas de El Salvador. Onde estão entre nós os nossos heróis para nos inspirar? Por nenhuma razão devemos limitá-los com os vínculos da instituição" (Ibid.).
Só uma Igreja que "pensa grande", como Deus pensa, pode fazer renascer a fé e o entusiasmo em tantos cristãos apagados e desiludidos. "Eu vejo na Igreja de hoje – comenta Martini amargamente – tantas cinzas sobre as brasas que muitas vezes me assola uma sensação de impotência. Como se pode livrar as brasas das cinzas de modo a revigorar a chama do amor? (…) Precisamos do confronto com pessoas que ardem, de modo que o espírito pode se difundir por toda parte" (ibid.).
Só uma Igreja que olha o mundo com os olhos de Deus e pensa a história com os pensamentos de Deus, como a Bíblia ensina, pode encontrar a coragem para levar a termo a "atualização" iniciada pelo Concílio. De fato, para retomar com coragem o caminho da renovação, que hoje parece parado e interrompido, "a Igreja deve ter a força de reconhecer os próprios erros e deve percorrer um caminho radical de mudança, começando pelo papa e pelos bispos. Os escândalos da pedofilia nos levam a tomar um caminho de conversão. As questões sobre a sexualidade e sobre todos os temas que envolvem o corpo são um exemplo disso. Estes são importantes para todos e, às vezes, talvez, são até importantes demais. Devemos nos perguntar se as pessoas ainda ouvem os conselhos da Igreja em matéria sexual. A Igreja ainda é uma autoridade de referência nesse campo ou somente uma caricatura na mídia?" (Ibid.).
Portanto, é preciso aprender a "pensar de modo aberto", de modo bíblico. De fato – insiste Martini – "não pensar de modo bíblico nos torna limitados, nos impõe antolhos, não nos permitindo captar a amplitude da visão de Deus" (2008, 20). O perigo em que se pode incorrer (também na Igreja) é o de se deixar condicionar pela "mentalidade restrita" do individualismo imperante, do medo do diferente e da indiferença para com as necessidades do outro, preocupados apenas em olhar para si mesmos, até fazer de si mesmos um absoluto.
A Bíblia, ao invés, nos ensina a amar os estrangeiros, a ajudar os fracos, a socorrer e a servir de modos diversos todas as pessoas. Segundo a Bíblia, nem as instituições, incluindo as eclesiais, são um absoluto. Certamente, precisamos delas, mas Deus não pode se reduzir a elas: "Você não pode tornar Deus católico. Deus está além dos limites e das definições que nós estabelecemos [...]. Para proteger essa imensidão [de Deus], eu não conheço um modo melhor do que continuar sempre lendo a Bíblia" (Ibid., 21).
Em conclusão, se "devemos ajudar o mundo a encontrar uma direção [...], [se] devemos decidir para onde a sociedade deve ir", não podemos deixar de "pensar de modo aberto", de modo bíblico. Senão, permanecemos subservientes às modas culturais do momento e a tendências ideológicas, que nos tornam incapazes de discernimento e de iniciativas eficazes (cf. ibid.) O amor à Palavra de Deus, portanto, é a primeira herança, a mais pessoal, que o arcebispo de Milão nos deixou, em plena coincidência com o legado do Concílio.
A herança eclesial
Ao lado do primado da Palavra de Deus, o Concílio deixou outra herança, de natureza eclesial: o diálogo fraterno entre todos os membros da comunidade cristã, no espírito da colegialidade e da sinodalidade.
O cardeal Martini assumiu essa orientação do Concílio e se consumiu com coragem para implementá-lo. Ela – escreve – foi acolhida e seguida com muita esperança nos primeiros anos do pós-Concílio; hoje, porém, o entusiasmo se gastou, e não são poucos os cristãos que não acreditam mais na "atualização" da Igreja sobre esse ponto na sua vida interna e em nível ecumênico.
"Eu posso compreender muito bem as suas preocupações – reflete o cardeal Martini – se penso apenas naqueles que, nesse período, abandonaram o sacerdócio, em como a Igreja é frequentada por um número cada vez menor de fiéis e em como na sociedade e também na Igreja surgiu uma liberdade imprudente" (2008, 103).
No entanto, os limites e os erros do primeiro pós-Concílio não tiram nada da importância dessa herança eclesial. Apesar de tudo – conclui o arcebispo –, "devemos olhar para a frente. [...] Eu acredito na perspectiva clarividente e na eficácia do Concílio" (Ibid.).
Por isso, reagindo ao clima de desconfiança e de resignação que hoje bloqueia muitos cristãos, Martini agiu intensamente para que crescesse o amor ao diálogo, tanto dentro da Igreja, quanto entre as Igrejas irmãs, fomentando como pôde o "espírito colegial" desejado pelo Concílio. A intervenção mais conhecida nessa direção foi o "sonho" do qual ele falou em 1999 no Sínodo dos Bispos da Europa.
Martini, por si só, não pedia um Concílio Vaticano III, mas propunha a convocação, de tempos em tempos, de assembleias sinodais, representativas de todo o episcopado, para enfrentar os nós que o Concílio não havia resolvido, até porque muitos deles nasceram depois. Ele mesmo fez uma lista das principais questões que ainda esperam ser esclarecidas: a posição da mulher na sociedade e na Igreja, a participação dos leigos em algumas responsabilidades ministeriais, a sexualidade, a disciplina do casamento, a prática penitencial, as relações com as Igrejas irmãs da ortodoxia e, mais em geral, a necessidade de reavivar a esperança ecumênica, a relação entre democracia e valores, entre leis civis e lei moral.
E concluía: é preciso um instrumento colegial, universal e com autoridade, onde esses temas possam ser abordados com liberdade, no pleno exercício da colegialidade episcopal, em escuta ao Espírito e olhando para o bem comum da Igreja e da humanidade inteira.
Ao mesmo tempo, ao lado do diálogo interno, a herança eclesial de Martini também compreende a exortação a acolher com fé a purificação à qual hoje a Esposa de Cristo está sujeita: ou seja, o fato de que a Igreja se encontra em minoria e marginalizada na vida social, política e cultural. Não devemos nos desencorajar, repetia. De fato, a condição natural da Igreja é ser um "pequeno rebanho"; a sua missão é ser fermento e sal na sociedade, pequena semente de novos brotos. Essa é uma tarefa aparentemente modesta, mas, de fato, muito exigente e necessária.
Martini, no esforço de ajudar a Igreja a se recuperar, chega a conceder que a nostalgia do velho "regime de cristandade", ainda presente em diversas camadas da comunidade eclesial, não é isento de alguma justificação. De fato – diz – "o fato de querer ser a todo o custo, mesmo nas circunstâncias atuais, uma força relevante no quadro político da sociedade, operante no mesmo plano das outras forças e concomitante e concorrentemente com elas, tem uma tradição própria de séculos de antiguidade, que contribuiu para forjar a sociedade europeia, com os seus valores e as suas conquistas. É também através desses modos de presença, justificados pelas condições e necessidades de outras épocas, que um certo patrimônio de valores cristãos se tornou dote civil da sociedade" (1999, 160 s.).
Dito isso – acrescenta –, porém, é preciso reconhecer que o mundo mudou e que as aquisições teológicas e pastorais do Concílio Vaticano II puseram fim para sempre ao "regime de cristandade", não só no plano histórico, mas também no teológico. A superação definitiva da "cristandade", operada pelo Concílio, não é um mal, mas sim um bem, porque "uma Igreja que é consciente da sua 'minoridade' tem mais vivo o sentido do testemunho, capta melhor as diferenças em si mesma e em torno de si, é mais aberta ao diálogo ecumênico e inter-religioso, vive com mais desenvoltura a sinodalidade e a colaboração entre as Igrejas locais" (Ibid., 161).
Eis por que a Igreja – para usar as palavras de Paulo VI – "deve estar pronta a manter contato com todos os homens de boa vontade, dentro e fora do seu âmbito próprio. Ninguém é estranho ao seu coração materno. Ninguém é indiferente ao seu ministério. Ninguém, se não quer, é seu inimigo. [...] Em qualquer esforço que o homem faça para se compreender a si mesmo e ao mundo, pode contar com a nossa simpatia" (Ecclesiam suam, n. 53-54). Em outras palavras, o diálogo intraeclesial e o diálogo ecumênico não são um fim em si mesmos, mas devem se abrir ao diálogo com o mundo.
A herança civil
O diálogo da Igreja com o mundo, portanto, é outra grande herança do Concílio Vaticano II, que o cardeal Martini compartilhou plenamente e assumiu como própria.
A necessidade do diálogo ad extra – explica o Concílio – não nasce somente da necessidade de ir ao encontro de uma necessidade evidente de nosso tempo, dentro da humanidade globalizada. É uma instância intrínseca à própria natureza da relação religiosa entre Deus e o ser humano. "A revelação, quer dizer a relação sobrenatural que Deus tomou a iniciativa de renovar com a humanidade – comenta o Papa Montini –, podemo-la imaginar como diálogo, em que o Verbo de Deus se exprime a si mesmo na Encarnação e depois no Evangelho. […] É preciso que tenhamos sempre presente esta inefável e realíssima relação de diálogo […] para entendermos a relação que nós, isto é a Igreja, devemos procurar restabelecer e promover com a humanidade" (Ecclesiam suam, n. 41 s.). Justamente por isso, os problemas da libertação e da promoção humana não são estranhos à missão da Igreja: "Não é de fora que salvamos o mundo; assim como o Verbo de Deus se fez homem, assim é necessário que nós nos identifiquemos, até certo ponto, com as formas de vida daqueles a quem desejamos levar a mensagem de Cristo, é preciso tomarmos, sem distância de privilégios ou diafragmas de linguagem incompreensível, os hábitos comuns" (Ibid., n. 49).
Com essas palavras, ditas no início da segunda sessão do Concílio, Paulo VI reforçava a passagem central do discurso de abertura, em que João XXIII explicava as razões que o haviam levado a convocá-lo. O objetivo – disse o Papa Roncalli no dia 11 outubro de 1962 – não era, como para os 20 concílios anteriores, nem a condenação de uma ou de outra heresia, nem a definição de uma ou de outra verdade de fé, nem a preocupação de enfrentar movimentos cismáticos.
O Vaticano II foi convocado a fim de dizer novamente a natureza e a missão da Igreja e quase redefinir a identidade cristã, tomada no seu conjunto e nos seus aspectos principais, no contexto histórico e cultural da humanidade globalizada [1]. Representa, portanto, um unicum na história dos concílios.
A Igreja, dentro de um mundo profundamente mudado, não podia não se interrogar sobre como anunciar o Evangelho a uma humanidade globalizada e unificada, mas, ao mesmo tempo, multi-étnica, multicultural e multirreligiosa. Como dialogar com um mundo em muitos aspectos pós-cristão, com o qual, apesar de tudo, a Igreja compartilha o destino, as esperanças e os problemas?
A isso se liga a herança que Martini nos deixou do diálogo no campo civil, cultural e político. Na nova situação secularizada do mundo – diz o arcebispo de Milão –, não basta proclamar os princípios absolutos, decorrentes do patrimônio da fé, referentes à vida, à família e a outros valores fundamentais. A Igreja deve iluminar e formar as consciências.
Portanto, ela não deve ter medo de fazer um juízo profético acerca da maior ou menor coerência com o Evangelho das diversas culturas ou dos programas políticos que hoje se confrontam entre si: "Então, este não é um tempo de indiferença, de silêncio e nem de neutralidade distanciada ou de tranquila equidistância [para a Igreja]. Não basta dizer que não somos nem um nem outro, para estar a postos [...]. Este é um tempo em que é preciso ajudar a discernir a qualidade moral inerente não só às escolhas políticas individuais, mas também ao modo geral de tomá-las e na concepção do agir político que elas implicam. Não está em jogo a liberdade da Igreja. Está em jogo é a liberdade do ser humano. Não está em jogo o futuro da Igreja. Está em jogo o futuro da democracia" (Martini, 1996, 171).
A dificuldade de um diálogo franco e aberto com o mundo e com a cultura – pontualiza Martini – também vem do fato de que as categorias filosóficas e teológicas neoescolásticas, ainda usadas largamente pela Igreja, se revelam insuficientes para falar com as pessoas de hoje. O método para enfrentar os novos problemas também deve ser repensado. Como a Bíblia faz, é preciso enunciar com clareza os grandes princípios, mas depois se referir à responsabilidade dos indivíduos para acompanhá-los, no respeito da sua liberdade de consciência, rumo à verdade.
O cardeal está convencido de que a valorização da responsabilidade da consciência pessoal facilitará o diálogo e a compreensão mútua com as diversas culturas. É muito diferente entender a nova evangelização como mera adequação da verdade revelada (entendida como um sistema doutrinal a-histórico) à linguagem e aos problemas do mundo moderno, ou entendê-la no sentido bíblico do "pensar de modo aberto".
Isso permitirá, de um lado, conhecer melhor a verdade revelada; de outro, ampliar os horizontes e facilitar o diálogo com a cultura dos nossos dias. O Evangelho, de fato, faz conhecer melhor a história, e a história faz conhecer melhor o Evangelho.
Aqui podemos notar – entre parênteses – que as "novidades" de alguns posicionamentos de Martini, sobre os quais a mídia tanto insistiu, não estão na suposta tentativa de se distanciar das posições oficiais da Igreja, mas sim em repensá-las tomando como ponto de referência a Sagrada Escritura, mais do que a teologia escolástica, e, assim, torná-las mais compreensíveis para a cultura moderna.
Martini nos deixou um exemplo convincente desse novo modo (bíblico) de dialogar com o mundo contemporâneo, instituindo a Cátedra dos Não Crentes. Essa iniciativa nasceu da mesma convicção que estava na origem da Escola da Palavra, isto é, do fato de que todos, crentes e não crentes, estamos em busca da verdade e não podemos dar nada por óbvio. Todo crente carrega consigo o gérmen da incredulidade, e todo não crente carrega consigo o gérmen da fé. É possível, portanto, um encontro entre crentes e não crentes, contanto que uns e outros sejam "pensantes".
É o critério que Martini aplica também à vida social e política. Não basta proclamar os chamados "valores inegociáveis" e exigir que a legislação os promova, "se não se assume uma busca paciente de soluções práticas que também levem em conta aqueles que têm concepções diferentes" (Ibid., 174), se não se buscam caminhos políticas compartilhados.
"A mediação antropológico-ética – diz Martini – é, talvez, um dos trabalhos mais importantes e urgentes para os cristãos empenhados na política e é uma das contribuições mais fecundas que as comunidades cristãs podem dar à sociedade civil hoje". Os princípios da fé, longe de se transformarem em motivo de conflito e de contraposição dentro da convivência civil, "devem ser vivíveis e atraentes também para os outros, no máximo consenso e concórdia possíveis" (Ibid.).
É a própria natureza da arte política que não permite que os chamados "valores inegociáveis" se traduzam imediatamente em leis, mas impõe uma paciente gradualidade, condicionada pela evolução do consenso e do costume dos povos. "É preciso – diz Martini – distinguir acima de tudo entre princípios éticos e ação política. Os princípios éticos são absolutos e imutáveis. A ação política, que também deve se inspirar nos princípios éticos, não consiste por si só na realização imediata dos princípios éticos absolutos, mas na realização do bem comum concretamente possível em uma determinada situação. No marco de um ordenamento democrático, então, o bem comum é buscado e promovido mediante os meios do consenso e da convergência política. Ao fazer isso, nunca é possível admitir um mal moral. No entanto, pode acontecer que, concretamente – quando não seja possível obter mais, justamente por força do princípio da busca do melhor bem comum concretamente possível –, se deva ou seja oportuno aceitar um bem menor ou tolerar um mal com relação a um mal maior" (Martini, 1998, 715).
Mais do que uma aceitação do mal menor (que, porém, continua sendo sempre um mal), deve-se falar, portanto, do maior bem possível: "Vale mais a proposta de caminhos positivos, mesmo que graduais, do que o encerramento dos 'não' que, a longo prazo, permanecem estéreis [...]. Nem toda lentidão no proceder é necessariamente um fracasso. Há também o risco de que, aspirando ao ótimo, se deixe a situação regredir a níveis cada vez menos humanos" (Martini, 1996, 174).
Portanto, é preciso repensar a tarefa da ética pública. "Parece que, ao invés, ao aceitar as leis do consenso, o cristão se sente culpado, como se confiasse ao consenso democrático a legitimação ética dos próprios valores. Não se trata de confiar ao critério da maioria a verificação da verdade de um valor, mas sim de assumir autonomamente uma responsabilidade com relação ao crescimento do costume civil de todos, que é tarefa da ética política. Tal tarefa, por isso, está no coração da Igreja no seu agir como semente e fermento dentro na sociedade" (Martini, 1999, 164) [2].
Por isso, é preciso distinguir entre a tarefa da Igreja como tal e a tarefa dos fiéis leigos. "A tarefa da Igreja é mediada, já que a ela cabe contribuir com a purificação da razão e com o redespertar das forças morais". Ao mesmo tempo, porém, ao lado da contribuição "mediada", justamente pela hierarquia, é tarefa dos fiéis leigos agir "imediatamente" por uma ordem justa na sociedade: "Como cidadãos do Estado, é missão dos fiéis leigos configurar retamente a vida social, respeitando a sua legítima autonomia e cooperando, segundo a respectiva competência e sob própria responsabilidade, com os outros cidadãos, juntamente com todos os outros cidadãos, segundo as competências de cada um e sob a sua própria autônoma responsabilidade" (Deus caritas est, n. 29).
É evidente a todos, 50 anos depois do início do Concílio, que nesse ponto ainda resta muito caminho a fazer. Estamos parados e atrasados. O juízo do cardeal Martini é contundente: "A Igreja ficou 200 anos para trás. Como é possível que ela não se sacuda? Temos medo? Medo ao invés de coragem? No entanto, a fé é o fundamento da Igreja. A fé, a confiança, a coragem. (…) Só o amor vence o cansaço. Deus é Amor" (Martini, 2012) [3].
Como se vê, é notável a coincidência entre as herança do Concílio e a do cardeal Martini. Por isso, assume um significado particular a pergunta final com a qual o cardeal conclui a sua entrevista-testamento, perguntando ao entrevistador: "O que você pode fazer pela Igreja?" (Ibid.).
Com essa simples pergunta dirigida claramente a todos, o cardeal Martini entrega a cada um de nós a herança sua e do Concílio. Agora cabe a nós fazer com que ela não seja desperdiçada, mas viva e seja fecunda de frutos.
Notas:
[1] "O objetivo principal deste Concílio não é, portanto, a discussão deste ou daquele tema da doutrina fundamental da Igreja, em repetição generalizada dos Padres e dos teólogos antigos e modernos [...]. Para isso não era necessário um Concílio […], o espírito de cristã, católico e apostólico do mundo inteiro espera um salto rumo a uma penetração doutrinal e uma formação das consciências; é necessário que essa doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e apresentada de modo que responda às exigências do nosso tempo" (João XXIII, Gaudet Mater Ecclesia, 1962, 54 s.).
[2] É também o que ensina a doutrina social da Igreja: "O fiel leigo é chamado a divisar, nas situações políticas concretas, os passos realisticamente possíveis para dar atuação aos princípios e aos valores morais próprios da vida social. (…) 'A fé nunca pretendeu manietar num esquema rígido os conteúdos sociopolíticos, bem sabendo que a dimensão histórica, em que o homem vive, impõe que se admita a existência de situações não perfeitas e, em muitos casos, em rápida mudança'" (CDSC 1994, n. 568).
[3] Como confirmação de que "a Igreja ficou 200 anos atrás", basta citar a recente sentença com que Paolo Gabriele foi condenado por ter divulgado documentos confidenciais do papa: "Em nome de Sua Santidade Bento XVI, gloriosamente reinante, o Tribunal, invocada a Santíssima Trindade – proferiu o presidente, Giuseppe Della Torre – [...] condena [o réu] à pena de três anos de reclusão" (cf. o texto na íntegra no jornal Avvenire, 7 de outubro de 2012). Evidentemente, essa formulação era apropriada há 200 anos, quando Pio IX era "gloriosamente reinante", o último papa rei. Não menos surpreendente é o fato de que esse retorno ao estilo de 200 anos atrás não causou nenhuma reação.
Fontes:
Magistério
Bento XVI, Encíclica Deus caritas est, 2005, in .
CDSC 1994, Pontifício Concílio Justiça e Paz, Compêndio da Doutrina Social da Igreja, Livraria Editora Vaticana, Cidade do Vaticano [versão em português, in ].
João XXIII, Discurso de abertura do Concílio, Gaudet Mater Ecclesia (11 de outubro de 1962), in Enchiridion Vaticanum, 1, EDB, Bolonha.
Paulo VI, Encíclica Ecclesiam suam, 1964, in .
Textos de Carlo Maria Martini
Martini C. M. (1996), «C’è un tempo per parlare e un tempo per tacere. Discorso di S. Ambrogio (1995)», in Aggiornamenti Sociali, 2, 171-176.
Martini C. M. (1998), «Alcune riflessioni sulla nota “Le comunità cristiane educano al sociale e al politico”», in Aggiornamenti Sociali, 9-10, 713-718.
______ (1999), «Il seme, il lievito e il piccolo gregge. Discorso di S. Ambrogio (1998)», in Aggiornamenti Sociali, 2, 155-170.
______ (2002), La Parola di Dio nel futuro dell’Europa, Incontro di studio su «Cristianesimo e democrazia nel futuro dell’Europa», Camaldoli, 12-15 luglio 2002, in Il Regno, supplemento al n. 4 del 15 febbraio 2003.
______ (2008), Conversazioni notturne a Gerusalemme sul rischio della fede, Mondadori, Milano. [versão em português, Diálogos noturnos em Jerusalém - Sobre o risco da fé. Paulus, 2008].
______ (2012), «L’ultima intervista. “Chiesa indietro di 200 anni. Perché non si scuote, perché abbiamo paura?”», a cura di G. Sporschill e F. Radice Confalonieri, in Corriere della Sera, 1 settembre 2012. [versão em português das Notícias do Dia do sítio do IHU, aqui].
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Carlo Maria Martini, uma herança que não se deve desperdiçar. Artigo de Bartolomeo Sorge - Instituto Humanitas Unisinos - IHU