12 Junho 2013
Quase cinco horas de aula com apenas um recesso de quinze minutos. Com toda referência, um mapa de Peters ampliado no continente latino-americano para o qual só olha quando a tela se apaga, ao passar para o modo de espera. Aproveita esse lapso para fazer alguma piada e, assim, dar um rápido descanso à quinzena de estudantes que acompanham seu trepidante discurso em um sábado desde às nove da manhã no master de Cooperação da Universidade de Oviedo. O sociólogo e politólogo Juan Carmelo García fala de modo apaixonado sobre a atualidade com o devir histórico do continente latino-americano, tecendo, com dados, uma geografia dos povos e dos movimentos sociais. Está há meio século estudando o assunto no Instituto de Estudos Políticos para a América Latina e África (IEPALA), um espaço de análise e divulgação da esquerda, do qual é presidente.
“Nunca havia suspeitado de que a América Latina pudesse mudar tanto e para tão melhor. Nos últimos quinze, vinte anos, houve mudanças imprevisíveis, que estavam na estrutura profunda do continente, mas não claramente manifestadas nas estruturas públicas. Há muitas Américas Latinas e, nessa complexificação a que estamos assistindo, cada um vai se afirmando, se recuperando”. E, para começar, lembra as estudantes mulheres – da quinzena, só há cinco – que a história não é linear, que “o que vemos agora não é consequência lógica do que aconteceu anteriormente (…) Nós mistificamos a lógica da razão e isso causou muitos danos, pois acreditamos que sabemos o que está por vir pelo fato de conhecermos as premissas”. Aqui está a chave de seu enfoque para a análise do continente: “A chave para entender a América Latina está nos movimentos sociais”. E aponta como os mais importantes a educação libertadora, liderada por Paulo Freire, a filosofia da libertação, de Enrique Dussel, e a teologia da libertação. “Não se compreendeu sua importância até comprovar que não houve agressão mais violenta que a do Vaticano à teologia da libertação”.
Volto a me encontrar com ele uma semana mais tarde em seu escritório, na sede do IEPALA, em Madri, rodeado por lembranças de suas viagens e entrincheirado atrás de uma enorme mesa literalmente repleta de livros e documentos. Ao fundo, toca a rádio Clásica. E começamos pelo país da atualidade, Venezuela.
A entrevista foi publicada por Opera Mundi, 10-06-2013.
Eis a entrevista.
Durante a aula, o senhor argumentou que é uma incógnita se os sucessores de Chávez serão capazes de encher com conteúdo o chamado chavismo, tendo como referente um líder que se converteu em um mito. Chávez estava consciente de que estava construindo um mito? E, em caso afirmativo, estando ciente dos problemas futuros que isso poderia acarretar, ele foi vaidoso?
A construção de um mito de gente lúcida, como ele era, é, de alguma forma, consciente. O mito vai sendo construído pelas pessoas, mas ele vai respondendo e as provocando. E vai engrandecendo o que as pessoas esperam dele. Boa parte do chavismo se baseia no fato de que o fizeram dizer muitas coisas que seriam possíveis no futuro, mas que não as pôde realizar porque não tinha nem capacidade nem recursos suficientes para colocá-las em prática a partir do aparelhamento de Estado que ele construiu.
Há uma parte da qual ele está consciente. Tenho a sensação, além disso, de que ele descobriu isso muito rapidamente, tão logo saiu da prisão após o golpe militar. Ele se dá conta de que tem poder e que gerou expectativas em um círculo pequeno. E começa a construir o chavismo, contraditoriamente, às vezes com coerência e outras dando saltos. E dá um muito complicado, que é o de partilhar um dinheiro que tem graças aos petrodólares, sem um projeto socioeconômico e político para os receptores, que são as pessoas das pequenas comunidades afastadas. Isso lhe convém porque fomenta o chavismo e uma clientela fiel, dentro do que seria um populismo normal. Isso foi feito por muitas pessoas, como Perón, López de la Torre... Mas Chávez obtém uma resposta muito grande porque havia muitos pobres. E continua havendo muitos.
Mas não reestrutura o sistema produtivo venezuelano, muito polarizado em torno do petróleo, em uma economia muito mais participativa, organizada. E não sei se é porque não tem os mecanismos ou os recursos de inteligência para fazê-lo, porque esse é outro problema: não houve muita inteligência orgânica dentro do chavismo e foi ele quem teve de construí-lo por completo.
Ele se dá conta de que é um mito, começa a fazer as coisas na América Latina e as expectativas são muito grandes. As esquerdas da Europa, que desde a queda do Muro de Berlim não tinham em quem se agarrar, o fazem em Chávez. Por sua vez, está surgindo um Brasil muito novo com Lula, ao qual deveria se voltar mais, porque precisava de um apoio internacional forte e foi deixado um pouco sozinho.
A partir desse momento, não creio que o problema seja de vaidade. É verdade que os líderes políticos têm o problema do ego inflado. Mas a iniciativa que ele provoca é algo muito sério e pode trazer complicações: manifestar excessivamente sua repulsa aos Estados Unidos, quando este é seu principal cliente. Na lógica do discurso chavista, era preciso ter um inimigo, mas Maduro, a quem falta muita maturidade, não controla o que diz e solta algumas grosserias que podem gerar conflitos nas relações internacionais. O que Maduro e os dirigentes chavistas poderiam fazer é colher o que Chávez disse e fazer disso o seu programa.
Porque se as últimas eleições ocorrem após dois meses da morte do mito – que vai se esvaziando se não é alimentado –, perdeu-se uma porcentagem muito alta de eleitores. Ou isso é bem apreendido ou o chavismo durará um ano. E não vale se meter com os Estados Unidos, Espanha, ou chamar o Capriles de todo tipo de barbaridade. Maduro poderia ter vencido a vaidade e acreditado que é um filho de Chávez. E não. É um sindicalista não muito bem preparado, que tem uma boca da qual saem barbaridades facilmente.
O senhor diz que as esquerdas internacionais não apoiaram suficientemente o Brasil de Lula. Por quê?
Primeiro, porque têm medo dele, pois é um país grande: a América Latina sem o Brasil é muito pouca coisa, ainda que o Brasil, sem a América Latina, também o seja. O Brasil é a força importante na economia mundial e nas relações internacionais. E o Partido dos Trabalhadores do Brasil é muito especial, uma formação política alternativa integrada por 30 organizações pertencentes a movimentos sociais, sindicatos, que acabam se transformando em um partido político, seguindo o rastro de muitos outros países latino-americanos, nos quais não funcionaram nem os partidos tradicionais, nem os conservadores, nem os liberais e nem os social-democratas. E também encontram em Lula uma pessoa um tanto mitificada: um trabalhador que perdeu um dedo trabalhando em um equipamento em mal estado, preso por fazer parte da oposição sindical durante a ditadura, que vai emergindo e que se converge em um líder social que se candidata nas eleições e não as ganha... Até que as ganha. E chega depois que o presidente social-democrata Fernando Henrique Cardoso reestruturou a economia brasileira e foi ganhando credibilidade no exterior.
Lula é uma pessoa sensata que não perde a cabeça por estar na presidência, que não pôde fazer tudo o que queria por conta da estrutura econômica e política de um Estado muito difícil de controlar, mas que talvez tenha feito menos do que poderia. Mas cumpre um papel muito importante frente aos organismos internacionais, frente às Nações Unidas, ao G7 e ao G20. Cria-se o grupo dos emergentes, BRICS, que são os únicos com capacidade para mudar o Conselho de Segurança da ONU... E agora chega Dilma Rousseff, também uma presa por terrorismo, uma revolucionária que se transforma em presidenta de um país no qual o machismo é infinito.
Estamos em um momento de transição, com uma tendência altamente positiva. A América Latina é o único continente que continua crescendo e de maneira mais homogênea – ainda que continue tendo o problema da desigualdade, e aí faltou coragem a Lula para miná-la –, que continua solucionando a democratização pouco a pouco... E, para isso, não bastam nações, mas são necessárias uniões.
Se os Estados Unidos entendessem que a América Latina amadureceu politicamente em muitas de suas camadas e que já não são mais apenas oligarquias, que há um projeto democratizador... E, nesse processo de entendimento, a Europa poderia ajudar, para servir como referência quanto aos direitos humanos, a boa governança, os direitos dos povos... Mas temos uma Europa néscia e estúpida, e não se pode esperar muito dela. Se mudasse a partir das eleições alemãs, e depois do Parlamento da União Europeia, poderíamos pensar que assumiria outro papel.
No caso do Chile, chama a atenção que uma sociedade formada politicamente nas esquerdas e com uma ditadura tão recente eleja como presidente Sebastián Piñera, dono de uma das maiores fortunas do país.
Piñera é muito de direita, mas não é pinochetista, é democrata, de uma direita inteligente, poderosa e civilizada. E à frente tinha o conjunto das forças de esquerda, preso com alfinetes, uma força que poderia ser interessante, mas que não tinha um projeto comum. E, além disso, que teve presidentes que não foram coerentes com o fato de resgatar a democracia e colocá-la a serviço do povo, mas que se deixaram levar pela economia criada por Pinochet, liberalizada e aberta por completo ao capital exterior, incluindo Ricardo Lagos. E o último mandato de Michele Bachelet foi muito errático, não fez política com o enfoque de gênero, como foi colocado em prática na ONU Mulheres, e poderia ter dito “eu sou socialista de Allende”, em vez da coalizão. Também teve o problema que se rebelaram os jovens e os indígenas, com os quais nunca se lidou bem, nem nos tempos de Allende. Tampouco houve muita inteligência, por parte das populações indígenas, em suas relações a respeito do projeto nacional.
Mas o fato de que Bachelet tenha decidido voltar é muito bom porque aprendeu uma lição em nível mundial de política de gênero e porque se deu conta da decadência do Chile quanto ao significado político. O maior capital do Chile continua sendo Salvador Allende e a referência ante o mundo de que aquela foi uma possibilidade que solaparam da maneira mais selvagem, violenta e néscia. E sua volta pode ser muito positiva para toda a América Latina. A vantagem do Chile é que é um país muito grande e tem que ter relação com muitos países, tem uma economia avançada e bem articulada, sem ter que passar por essa oligarquia reduzida. Se isso é colocado em prática, teremos um par de legislaturas muito boas, que contribuirão muito inteligentemente para essa latino-americanização do continente.
E, em todo esse panorama esperançoso que o senhor traça para a América Latina, como o narcotráfico pode malograr esses processos?
Tem um papel muito importante, é uma potência financeira internacional, mas poderia ser controlado se o presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, fosse capaz de conseguir a paz, que dependem dele, e não dos guerrilheiros, que já não têm nada a propor.
Nem sequer a reforma agrária?
Eles têm que propô-la porque, se não, vão perguntar a eles o que estão defendendo, mas quanto deles irão ao campo trabalhar? Quantos criarão cooperativas de produção para colocá-las a serviço dos despejados? Eles perderam categoria política. Mas Santos precisa da paz mais do que eles e, então, poderiam ir pelo narcotráfico, que, ainda que não dependa apenas da Colômbia, os cartéis dependem, em uma porcentagem muito alta, da produção, transformação e venda desse país.
E no caso do presidente Santos, que era ministro da Defesa do governo de Álvaro Uribe quando se cometeram os falsos positivos, assassinatos de civis, apresentando-os à opinião pública como baixas dos rebeldes, isso não vai acarretar um custo político? E, em relação a seu enfrentamento público com Uribe, trata-se de uma fofoca política ou tem algo a mais?
Na realidade e, de fato, a apresentação de Santos nas eleições já foi uma maneira de se distanciar e assinalar que era ele quem tinha categoria política. Porque é verdade: Uribe tinha que se travestir de “ditadorzuelo” porque o pobre homem não tinha capacidade para mais. Santos pode governar um grande país como pode ser a Colômbia, com uma economia mais articulada e diversificada que a venezuelana, com uma classe média mais ampla e mais formada... Mas deveria abrir mais o processo de paz à participação da cidadania, em vez de fazê-lo com secretismo. As FARC poderiam se fazer de valentes, mas isso seria muito torpe porque não têm nada a oferecer e tudo para ganhar em nível pessoal, grupal e também como projeto.
“Passar do Estado de bem-estar ao de bem-querer, conversas nas quais o outro tenha importância, que as relações não sejam de poder, mas de querer (…) Me pergunto se estamos assistindo a mudanças de paradigmas fundamentais, se surge outra forma de convivência baseada na soberania do povo. Se começa a tomar corpo no 15M... Ainda estamos vivendo da Revolução Francesa”, disse Carmelo na aula.
o caso da proposta indígena do Bem Viver, incorporada nas constituições bolivianas e equatorianas, que influência podem ter, para além desses países, na concepção dos Estados?
É um referencial que tem muitos níveis. No plano teórico, pois se atreveram a propor, em um momento de grande crise teórica, um Estado não-nação, que mantém a unidade e que incorpora um quarto poder, o comunitário, colocado como base dos outros. E isso fez com que comunidades como as Aymara e as Quechua enfrentassem Evo porque ele não sabe ser coerente com o que foi estabelecido constitucionalmente. Mas também é certo que não há um substituto, como ocorria com Lula no Brasil. O Movimento dos Sem Terra (MST) rompia com o PT, mas logo tinha que votar por ele porque, se não fosse assim, seria por quem?
No caso do Equador, Rafael Correa, que é mais inteligente, mas mais mentiroso, tem mais estrutura de poder porque já foi ministro com Lucio Gutierrez, que tinha um artifício para fazer com que os indígenas acreditassem que eles estavam participando.
Essas constituições acolhem os direitos humanos, mas também os da natureza, e os juristas estudam como a natureza pode ser sujeito de direito... Ainda não sabemos bem o que significam, mas poderiam ser um modelo alternativo de organização para a convivência, a economia, a vida cotidiana, a produção que se leva nos países desenvolvidos. E, logicamente, parece mais coerente que sejam os povos aqueles que decidirão.
A Espanha reduziu, nos últimos anos, 70% do orçamento dedicado à Cooperação ao desenvolvimento, e muitas ONGS tiveram que abandonar projetos já iniciados e demitir uma grande de seu pessoal contratado. Nesse sentido, rodeado de profissionais que se especializam em um master para trabalhar no Terceiro Setor, também reivindica que essa crise seja aproveitada pelas organizações para questionar e repensar a cooperação ao desenvolvimento. “Também não é ruim que desapareça a cooperação ao desenvolvimento tal como ocorre hoje, esse humanismo que encobre o desastre da desigualdade. Mas o ruim é que não vai desaparecer, mas será substituída por alianças político-empresariais. Os únicos que têm consciência crítica estão no mundo das ONGs. Se, nesse meio, pudessem surgir movimentos para questionarem a cooperação atual...”
O que o governo espanhol está fazendo com a cooperação?
O mesmo que estavam fazendo antes, o ridículo. Não entenderam isso, pois a utilizam como uma arma política externa e agora mais ainda, com o ministro de Relações Exteriores tão arrogante que temos. Mas não apenas na Espanha, como também na União Europeia e na ONU. Levamos sessenta anos com isso, e algo de errado devemos ter feito, se o mundo está como está.
Tenho pena do fato de, por conta da política de cooperação, caírem um monte de organizações que estavam fazendo pequenas coisas, com um senso crítico, e permanecerem apenas as que têm capacidade econômica. O que a capacidade econômica tem para colocar a serviço dessas pessoas, fazendo emergir um sujeito sociopolítico e econômico alternativo? Isso me entristece porque é um dos grandes temas que temos pendentes no mundo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
"Chave para entender América Latina são movimentos sociais", diz sociólogo espanhol - Instituto Humanitas Unisinos - IHU