06 Novembro 2015
"Por causa do alto interesse público no Papa Francisco, praticamente tudo o que vaza hoje acaba se tornando uma sensação, aumentando drasticamente o mercado para os vazamentos. Há também uma gama muito mais ampla de meios de comunicação buscando e publicizando estas coisas, e qualquer sentimento de respeito pelo desejo de confidencialidade por parte de uma dada instituição há muito se perdeu", comenta John L. Allen Jr., editor, especialista em cobertura vaticanista e comentarista sobre assuntos da Igreja, em artigo publicado por Crux, 04-11-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
À primeira vista, o lançamento de dois livros altamente esperados prometendo trazer revelações bombásticas sobre os escândalos financeiros do Vaticano parecem representar algo como um momento “Casablanca”. Quer dizer, eles parecem suscetíveis de provocar reações “pro forma” sobre coisas que, na maioria das vezes, todos já sabem do que se trata.
O jornalista italiano Emiliano Fittipaldi segura o seu livro intitulado “Avarice” em 3 de novembro. Os novos escândalos de vazamentos do Vaticano intensificaram-se nesta semana com dois livros detalhando a má-gestão e as resistências internas que estão manchando os esforços reformadores financeiros do Papa Francisco. Foto: AP Photo/Gregorio Borgia |
Por exemplo, o livro de Gianluigi Nuzzi, intitulado “Via Crucis” (em inglês, “Merchants in the Temple”, literalmente “Mercadores no Templo”), descreve a forma como os cardeais vivem em edifícios elegantes e espaçosos, muitas vezes a custo zero, e que, em geral, os apartamentos de propriedade do Vaticano normalmente recebem hóspedes com custos substancialmente abaixo dos valores de mercado porque os moradores ganham promoções sem igual para tanto.
Enquanto isso, o livro de Emiliano Fittipaldi, “Avarizia”, detalha como operações comerciais do lado de dentro dos muros do Vaticano – um posto de gasolina, uma farmácia, uma tabacaria e um supermercado – geram dezenas de milhares de euros em receita vendendo produtos com descontos advindos decorrentes de isenções fiscais.
Em teoria, estes serviços são reservados aos funcionários do Vaticano, mas Fittipaldi usa relatórios do governo do Estado da Cidade do Vaticano para provar que os números contam uma história diferente.
Na tabacaria, escreve ele, entram 10 milhões de euros a cada ano. Se todos estes cigarros estivessem sendo adquiridos somente por funcionários do Vaticano, então significaria que eles teriam de “fumar como os turcos”, ou seja, muito. Obviamente, pessoas que não deveriam estar comprando nestes locais estão encontrando formas de fazer, neles, as suas compras.
Quase nada destas coisas cairá como novidade nas mãos da velha Roma.
Quando minha esposa e eu vivemos nesta cidade em tempo integral na década de 1990 e nos anos 2000, por exemplo, ela tinha uma amiga que trabalhava num dos departamentos do Vaticano. Esta pessoa a emprestava, ocasionalmente, um cartão de funcionário. Com isso minha esposa tinha acesso ao supermercado. Mais tarde ela relataria que não tinha certeza de que as suas companheiras de compra naquele estabelecimento trabalhavam, de fato, no Vaticano, visto dado que, em geral, tais pessoas se pareciam pessoas comuns, como ela.
Isso não quer dizer que os livros em questão chovem no molhado, pois eles trazem nomes e números concretos a respeito do que anteriormente eram apenas impressões anedóticas de escândalos e conflitos internos.
Isso posto, é pouco provável que o maior impacto destas obras se encontre em seus conteúdos. Em vez disso, o que estes livros fazem é exemplificar e exacerbar a paisagem transformada do Vaticano.
Numa frase, eles representam a morte do “Segredo Pontifício”.
“Segredo Pontifício” é um conceito bem-definido no Direito Canônico aplicando-se a várias categorias de informação, tais como materiais relativos a nomes dos bispos e relatórios dos diplomatas papais. De forma mais ampla, no entanto, ele evoca a pressuposição de que toda a comunicação com o papa é confidencial, e que cabe a ele – e a somente ele – decidir se se deve, ou não, tornar público tais documentos.
Obviamente, não é o que acontece aqui com estas obras.
Tanto Nuzzi como Fittipaldi tiveram um acesso notável a materiais confidenciais supostamente reservados ao pontífice: a gravação em áudio de uma reunião com Francisco e cardeais do alto escalão da Igreja, relatórios das comissões papais de estudos, estimativas de receitas para várias operações vaticanas, e assim por diante. Talvez haja algumas informações bombásticas, mas os próprios vazamentos já são reais.
Com certeza, o segredo pontifício sempre é lembrado pelos vazamentos e pela observância.
Não muito tempo atrás, por exemplo, as proposições adotadas no final dos Sínodo dos Bispos eram consideradas recomendações privadas ao pontífice e nunca eram divulgadas pelo Vaticano. No entanto, dentro de 48 horas após estes encontros, tais proposições acabavam aparecendo na imprensa italiana, em geral na agência noticiosa de tendência progressista Adista.
Para pegar um outro exemplo: durante os anos de João Paulo II, praticamente todos os documentos importantes do Vaticano vazavam durante o processo de elaboração, e frequentemente, no momento em que eram oficialmente publicados, não havia um clima de novidade.
Embora o volume total de vazamentos pode não ser maior hoje do que o fora antes, duas outras coisas mudaram certamente: o papa e o clima midiático em que ele é obrigado a trabalhar.
Por causa do alto interesse público no Papa Francisco, praticamente tudo o que vaza hoje acaba se tornando uma sensação, aumentando drasticamente o mercado para os vazamentos. Há também uma gama muito mais ampla de meios de comunicação buscando e publicizando estas coisas, e qualquer sentimento de respeito pelo desejo de confidencialidade por parte de uma dada instituição há muito se perdeu.
Este cenário confirmou-se durante o mês passado não só por causa dos novos livros lançados, mas também pelo vazamento de uma carta endereçada ao pontífice assinada por 13 cardeais no começo do recém-concluído Sínodo dos Bispos sobre a família.
Consequentemente, qualquer um que repasse informações, hoje, ao papa – não importando do que se trate, nem a forma que elas se apresentam ou a altura do cargo da pessoa – precisa saber que há uma boa chance de que elas se tornem públicas.
Alguns podem interpretar isto como uma boa dose de transparência, dizendo que os fiéis católicos têm o direito de saber o que se passa nos corredores do poder. Outros tenderão a dizer que a falta de confidencialidade vai induzir as pessoas a serem menos amorosas para com o papa, e talvez se esforçarão para que certas informações jamais cheguem até ele.
Outros ainda poderão se arrepender com uma tal quebra do sentimento de confiança no lado de dentro do Vaticano, sem mencionar a sensação advinda de uma falta de integridade entre as pessoas que prometem manter segredo, mas que agem de forma adversa.
Em 2013, na esteira dos primeiros vazamentos do Vaticano naquele ano, Francisco fez da divulgação de documentos confidenciais um crime grave sob as leis do Estado da Cidade do Vaticano, formulando-o como um crime contra a segurança estatal. Os aplicadores da lei aqui têm mostrado um desejo forte em fazer valer esta legislação, recentemente prendendo dois sujeitos por supostamente vazarem materiais a Nuzzi.
Por mais compreensível que possa ser estas iniciativas, elas não vão mudar o principal: tudo em torno do Vaticano pode ainda soar misterioso, mas muito pouca coisa continuará sendo um segredo.
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Vazamentos vaticanos marcam a morte do “Segredo Pontifício” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU