22 Mai 2015
No último dia do Colóquio, Routhier, Theobald e Faggioli analisaram a atual conjuntura eclesial a partir do “fator Francisco” que ilumina a experiência do Vaticano II.
Routhier, professor doutor da Universidade Laval do Canadá, deteve-se em analisar como a figura do Papa é tirada de uma centralidade pelo próprio Francisco. É a manifestação de mais um dos princípios do Vaticano II: a colegialidade. E não só uma colegialidade que divide as decisões com os pares, mas aquela que incita todos a participarem e a exercerem seu papel evangelizador. “É preciso organismos vivos no corpo eclesial”, pontua.
Theobald, professor doutor do Centre Sévres – Facultés Jésuites de Paris, seguiu numa linha similar. No entanto, destacou os desafios de se entender as mensagens de Francisco e também de tornar tais ideias ações concretas. O primeiro obstáculo é encarar o conservadorismo doutrinal. Algo que tenta minimizar Francisco, considerando-o “apenas” pastoral e pouco teológico. “É assim que se chega a um grande mal-entendido no espaço doutrinal da Igreja”, destaca, ao apontar que a pastoralidade não é contrária à ideia de doutrina.
Já o professor doutor Faggioli, da University of St. Thomas, EUA, buscou entender o atual pontificado pela perspectiva da historicidade. Por isso foi até o conclave que elegeu Bento XVI, e que teve Bergoglio entre os votados. São momentos significativos para se entender Francisco que, enquanto cardeal que perdeu o conclave, teve um tempo de preparação e maturação. Como se visse os desafios da Igreja, avaliasse as posturas de Ratzinger e pensasse como agiria naquela situação. “Por isso digo que Francisco foi um presente de Bento. E digo, também, que Bergoglio de 2013 é diferente do conclave anterior”, avalia.
Exortação ao Evangelho, e não ao Papa
Na abertura de sua fala, Routhier demonstra como a figura do Papa Francisco é posta em segundo lugar. Princípio que se materializa a partir dos ideais do Concílio Vaticano II. Por isso, para ele é tão interessante olhar para o pontificado à luz do Vaticano II. É como se no Concílio fosse possível encontrar as respostas para as dúvidas diante de Francisco. “A chegada desse Papa foi tão promissora que a tendência seria desenvolver um messianismo. O que não seria bom. Claro, é inegável a sua importância. Mas devemos lembrar que a História da Igreja não pode ser confundida com a história do Papa”, destaca.
Para o professor, não se pode cair numa idolatria a Francisco, acreditando que ele sozinho será capaz de resolver todos os problemas da Igreja no mundo todo. “Assim, estaríamos esperando as mudanças como se viessem de cima.” Por isso acredita que messianismo não se alinha com a ideia do Vaticano II. Essa segunda concepção é a adotada por Bergoglio. “Ele, em todos os momentos, chama atenção para o corpo eclesial”. Significa que delega e ao mesmo tempo chama bispos e padres a assumirem a sua missão evangelizadora a partir da busca pelo entendimento de questões locais.
Na análise que faz de trechos da Evangelii Gaudium (EV), demonstra como Francisco se retira da cena principal. “Diz que o Papa não pode substituir o episcopado local. Ou seja, remete ao corpo eclesial. Fala em descentralização”, destaca, ao citar EV 16. O professor ainda usa trechos da Exortação (EV 38) para destacar que se dá um foco errado na pregação quando se fala mais das leis do que da própria Igreja. “Ou quando se fala mais do Papa do que do próprio Deus.”
Muitas vezes acreditamos que o Sumo Pontífice vai nos dar respostas, resolver nossos problemas. Com EV 51, Routhier evidencia, mais uma vez, como Bergoglio se coloca: “não é tarefa do Papa apresentar análise da realidade contemporânea. É sua função despertar as comunidades”. Ou seja, é fazer a comunidade despertar para questões da atualidade constituindo suas próprias interpretações e caminhos para análise. E ainda segue: “nem o Papa e nem a Igreja têm a interpretação da realidade. Isso seria proferir uma palavra única. É assim que se volta mais uma vez às comunidades cristãs, o povo de Deus”, explica o professor a partir da EV 144.
Routhier também não esquece o papel do laicato. “Acredito que algo vai realmente acontecer se as assembleias regionais dos bispos fizerem alguma coisa. É preciso se voltar para os seus fiéis, se voltar ao povo de Deus”, destaca. Para o professor, a grande reforma de Francisco se dá a partir daí. “Ele quer reativar os sujeitos dos corpos eclesiais e as pessoas. No Rio de Janeiro, por exemplo, convidou os jovens a caminhar.”
O professor encerra lembrando que o desafio imposto é de um longo e sinuoso caminho. Será preciso vencer resistências e aqueles que desacreditam nesses valores inspirados no Vaticano II. Na sua mensagem, Francisco aponta uma saída: “ele sugere práticas. E se suas práticas sugeridas não forem seguidas, as coisas podem ser bloqueadas”. Routhier ainda lembra de Paulo VI, que promoveu audiências e suscitou reformas. Mas que acabou sozinho, esvaziado e isolado por uma estrutura dura. “Francisco pode ser neutralizado se não houver resposta ao seu convite, seu elã”, sintetiza.
O doutrinal e a pastoralidade
Theobald abre sua fala com polêmica. Ele recupera as declarações do cardeal Gerhard Müller, prefeito da Congregação para Doutrina da Fé. Em declarações à imprensa, Müller diz que Francisco é pastoral e não teológico. Por isso, fala que é preciso que a Congregação para Doutrina da Fé dê essa base teológica a um Papa pouco doutrinal. “Mas o estilo de Francisco me parece muito mais o combate espiritual sendo travado de uma forma diferente, com apelo à conversão”, destaca.
O professor entende a situação com o cardeal como a representação de uma queixa proferida por alguém a quem falta clareza espiritual. Sua hipótese: “a postura de Müller é a mesma do cardeal Alfredo Ottaviani [1] com relação a João XXIII. Ambos se apresentam como guardiões da doutrina e não conseguem entender o que é a pastoralidade da doutrina”. Ou seja, Francisco desloca as linhas. É como se fizesse a linha da pastoralidade se desenvolver até que, em determinado ponto, convirja com a doutrina. Assim, lendo EV, o professor entende que Bergoglio se inspira em João XXIII, tendo presente o Vaticano II.
Theobald ainda destaca a extrema simplicidade de Francisco. “É através dela que ele impõe o desafio pastoral.” É o chamado estilo evangelizador, da Igreja em saída. É aqui que está a característica do texto de Francisco (em especial a EV). “O texto — EV — está a serviço da Exortação. O Papa dá à palavra a exortação de Deus”. Essa simplicidade de linguagem é um estilo que permite promoção plural. “E nisso o Papa implica sua própria experiência.”
E é assim que, na visão do professor, Francisco estabelece a relação entre missão e reforma. “Não há uma sem a outra. É impossível não entender EV na medida em que é algo que emerge”, pontua. A ameaça à reforma, no entanto, se dá pela possibilidade de erosão da missão. É o que Theobald entende como a “perda do fervor missionário”. Para ele, esse estilo missionário bergogliano é somente de anúncio do Evangelho. É também uma “mística alegre de viver em conjunto. Essa é a reforma interna e externa que parte do Evangelho”.
E a doutrina? Para Theobald, o Papa não marginaliza a doutrina. Ele a reorganiza. São as implicações doutrinais como estilo de evangelização. “O estilo, a forma de fazer, está em primeiro plano. Isso organiza e reestrutura a doutrina”. Assim, entende que Francisco reforma o conceito de pastoralidade já empregado por João XXIII.
Com isso o professor chega na compreensão que tem do conceito de “Igreja em Missão”, que potencializa o “povo de Deus como infalível”. É uma nova concepção da Igreja que parte da localidade para chegar na totalidade. Como se “A Igreja” fosse feita da união de corpos da pluralidade que é a Igreja em todos os lugares do mundo, com suas particularidades. “É o conjunto de Igreja que forma o princípio do poliedro.” Abordagem que desacomoda quem está amarrado à doutrina. “O pontificado não precisa ficar apoiado no doutrinal. Há aí um mal-entendido no sentido da pastoralidade”, finaliza.
De Bento XVI a Francisco
Numa perspectiva de historicidade, Faggioli lembra que a renúncia de Bento XVI não é algo que passou. “Ainda está acontecendo. Ele está vivo. Precisamos entender como uma pessoa como Ratzinger vive a poucos passos de Francisco que, por sua vez, tem o desafio de vir depois dele”, provoca, ao indicar que ainda há muito sobre a renúncia que não é sabido. “Em uma entrevista, Ratzinger disse que gostaria de ser chamado Papa Bento, mas outras pessoas decidiram isso. Quem são essas pessoas? Tem algo aí que não sabemos.”
Para ele, a transição de Bento a Francisco ainda é muito recente. Só com mais tempo será possível entender melhor esse momento. “Só vamos entender daqui a 10 ou 20 anos. E o personagem Francisco pode nos ser muito importante para entendermos.” O que é claro para ele é que houve o fim da controvérsia em torno do Vaticano II. “O pontificado de Bento XVI tinha uma sombra sobre o Vaticano II. Isso desapareceu”. E sumiu porque Bergoglio tomou o Concílio como algo dado. O Concílio Vaticano II é a Igreja hoje. “Podemos sentir falta da Igreja pré-Vaticano II. Mas isso não vai voltar”, destaca.
Faggioli ainda considera que Francisco tem uma vantagem sobre Bento. “Ao longo do pontificado de Bento, ele teve um curso relâmpago de como ser Papa”, brinca. Quer destacar que não é sempre que se tem um cardeal que sai perdedor de um conclave. Volta para ser arcebispo de Buenos Aires. De lá, via o que acontecia com a Igreja e as ações de Ratzinger. “E poderia se preparar. Pensar o que faria no lugar de Bento.”
Ainda sobre a transição, destaca como a Igreja não consegue entender e lidar com um teólogo, um teórico enquanto Papa. O fato de Francisco não ser isso o faz diferente. “O fato de não ter terminado o doutorado faz com que passe sua mensagem sem necessidade de mediação”, pontua. O que não quer dizer que isso não traga desafio para o entendimento de Francisco.
Para o historiador, os desafios de Francisco se perfazem em seus adversários. Quem são? Os mesmos que entendem o Concílio Vaticano II como um desastre. Para Faggioli, eles se articulam em três grupos: oposição institucional, não só a Cúria, mas aqueles que fazem parte do status quo da Igreja em todos os níveis; oposição cultural do catolicismo (ou do católico), que é mais voltada aos leigos que se prendem a tradições e não entendem o momento; e a política ou geopolítica, que tem a ver com seus posicionamentos políticos diante de questões globais.
Por fim, Faggioli destaca que ainda é preciso conhecer, estudar mais depois do Vaticano II. “Não há narrativas sobre o pós-concílio. Precisamos entender o que está acontecendo em mais diferentes níveis, olhar para práticas pastorais. Observe que passamos de um Papa que achava o Vaticano II um desastre e chegamos a outro que diz que o Vaticano II somos nós.”
Reações aos desafios
Ao fim da exposição dos três professores, era visível o quanto a plateia foi desacomodada. Isso foi possível mensurar a partir das manifestações do público aos próprios painelistas. Como todos chamaram a atenção para o quanto Francisco mexe com o sentido pastoral, da Igreja em saída, missioneira, à luz do Vaticano II, teólogos e religiosos parecem ter sido tocados a pensar seus entendimentos. Dos que se pronunciaram, a maioria queria saber dos desafios, como superar as barreiras.
Foi o caso de Afonso Murad, da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – Faje, de Belo Horizonte. Ele reconhece esse atual momento como de mudança. Porém, diz sentir o peso das forças conservadoras. “Como romper as resistências? Como mobilizar os padres, bispos e em especial o laicato?”, questiona.
Geraldo De Mori, também da Faje, vai na mesma linha ao lembrar do grupo que tinha expectativas quanto às novidades conciliares e da própria Teologia da Libertação, mas que “acabou tomando muita paulada e perdendo força”.
Nenhum dos três debatedores apresenta receitas mágicas para vencer os desafios. Os caminhos apontados são o do conhecimento, fazer as pessoas viverem as experiências e através delas chegarem ao entendimento. “Um exemplo é a experiência dos sínodos, articulando melhor pastoral e doutrinalmente”, diz Routhier. “Ser padre não é pertencer a uma tribo, um grupo. A América Latina ensinou que é preciso formar as pessoas, formação pastoral da teoria e prática”, completa Theobald. “Sobre os conservadores, é preciso conhecer, ler o Vaticano II. Não há como não dizer que ele é a Igreja hoje. É a melhor vacina ao conservadorismo”, aponta Faggioli.
Notas:
[1] Alfredo Ottaviani (1890-1979): cardeal católico italiano, considerado como o “policial da fé”, porque foi o mais rigoroso defensor da tradição em sua época. Em 1922, foi nomeado secretário pessoal do novo papa Pio XII. Em 1928, foi chamado para a Secretaria de Estado do Vaticano. Em 1953, Pio XII o nomeou pró-secretário da Congregação do Santo Ofício (atual Congregação para a Doutrina da Fé), sendo elevado a cardeal. Em 1962, escreveu o documento “Crimen sollicitationis”, dirigido a todos os bispos, em que eram instruídas as modalidades de gestão dos casos de pedofilia no interior da Igreja, incluindo a excomunhão. O documento foi aprovado pelo Papa João XXIII. Foi nomeado por João XXIII presidente da Comissão Doutrinal. Em 1968, pediu sua renúncia, escrevendo, no ano seguinte, junto ao cardeal Antonio Bacci, uma carta ao Papa Paulo VI, expressando sua oposição à reforma litúrgica e ao novo missal romano “Novus Ordo Missae”, prestes a entrar em vigor. Foi um severo opositor de algumas das reformas da Igreja católica, sendo considerado por muitos também como o “homem das excomunhões”. (Nota da IHU On-Line)
Por João Vitor Santos | Fotos: Ricardo Machado
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A busca pela compreensão da mensagem e do “momento Francisco" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU