07 Mai 2015
Uma pergunta central que instiga debates, pesquisas e releituras do Concílio Vaticano II e dos documentos do conciliares é a questão das contribuições que o Concílio pode oferecer para a existência cristã e eclesial nos dias de hoje. Em meio à multiplicidade de trabalhos acadêmicos nesta perspectiva, desponta de modo brilhante a contribuição do teólogo jesuíta e professor do Centre–Sèvres de Paris Christoph Theobald com seu estudo “As grandes intuições de futuro do Concílio Vaticano II: a favor de uma ‘gramática gerativa’ das relações entre Evangelho, sociedade e Igreja” (Cadernos Teologia Pública, ano X, nº 77, 2013).
Theobald propõe uma leitura prospectiva dos documentos conciliares, a qual tem como tarefa prioritária e desafio principal “aprofundar-se nas maneiras de proceder que o Concílio soube inventar”, em vez de ater-se a leituras que visam buscar em documentos tributários do contexto dos anos 60 “um ensinamento relativamente completo a ser aplicado a seguir”.
Tomando emprestada do linguista americano Noam Chomsky a ideia de uma “gramática gerativa”, aplica-a, por analogia, “ao modo de engendramento dos textos conciliares e, sobretudo, à maneira de formar, nos dias de hoje, existências cristãs e eclesiais em nossa própria situação cultural” (p. 6). Essa opção epistemológica lhe possibilita demonstrar como os documentos conciliares estão atravessados por “uma abordagem genética da tradição cristã” e desenvolver uma leitura genética ou processual do Concílio tendo em vista o presente e o futuro do Evangelho e da Igreja no seio da sociedade.
Na primeira parte de seu estudo o autor apresenta uma visão global do Vaticano II, esclarecendo como o “corpus textual”, tomado no sentido da intertextualidade, articula o Evangelho, a sociedade moderna e a Igreja numa perspectiva genética. Primeiramente, mostra como esse conjunto se organiza em torno de dois eixos, o eixo vertical ou teologal da autorrevelação de Deus (DV 2 e 6) e o eixo horizontal da comunicação, ocupado pela Igreja, que, descentrada pela palavra e pela presença do outro, “recebe tudo de Deus para pôr-se a serviço do Reino no próprio seio de toda sociedade” (p. 7). A articulação destes dois eixos no corpus textual coloca a relação de comunicação dos cristãos e da Igreja com os outros numa perspectiva de reversibilidade, que requer atenção pastoral e hermenêutica ao enraizamento histórico e cultural dos destinatários do Evangelho, à diversidade de contextos e à pluralidade de figuras do cristianismo, à historicidade da Revelação e a necessidade reinterpretação contínua da mesma, em função da situação daquelas e daqueles para os quais é transmitida”.
Num segundo momento, esclarece de que se trata a perspectiva genética que propõe tendo como referência o Decreto Ad gentes, “o único documento que nos dá uma visão genética da fé e da Igreja no seio da sociedade”. Ele levanta a hipótese de que “uma nova sensibilidade bíblica para o surgimento das comunidades e Igrejas do Novo Testamento, assim como também a nossa situação histórica de exculturação nos convidam a interpretar a visão global de Lumen gentium a partir da perspectiva eclesiogenética do Decreto Ad gentes” (p.9).
Esta hipótese é fundamentada pelo convite a relativizar a distinção clássica entre países cristianizados e países de missão à luz de um diagnóstico da situação atual, a superar a justaposição dos textos conciliares dedicados à Igreja e a identificar o pano de fundo bíblico do Decreto Ad gentes e de outros documentos, especialmente do Novo Testamento enquanto expressão da criatividade das comunidades primitivas, para lhe conferir “o status de matriz da nossa própria maneira de conceber o nascimento da fé e da Igreja nos dias de hoje” (p.9).
Theobald trata de comprovar sua hipótese e dar crédito à ideia de gênese apresentando uma sondagem sucinta e sistêmica de diversas passagens do Decreto Ad gentes e, em seguida, da Constituição Dogmática Lumen gentium em que aparece a visão genética e sua interligação pela relação com as Escrituras. Na conclusão dessa visão global da proposta do Concílio o autor adverte: “a tendência a fixar, ou mesmo a sacralizar, uma figura da Igreja na sociedade impede de ver a perspectiva genética com o seu enraizamento escriturário, ao preço – muito alto – de limitar progressivamente os terrenos de criatividade ou mesmo de eliminá-la completamente” (p. 11).
Na segunda parte de seu estudo, sempre numa abordagem genética, Theobald expõe a maneira de proceder característica do Concílio, a qual comporta duas vertentes: maneira de ouvir Deus nos falar e uma maneira de ouvir-se mutuamente. Sua exposição evidencia que a maneira de ouvir Deus falar se dá numa tríplice maneira de proceder,: a escuta da Palavra, tratada na Dei verbum), o discernimento dos “sinais dos tempos”, abordado na Gaudium et Spes, e o colóquio íntimo e público com Deus, formulado na Sacrosantum concilium e bem presente em vários textos.
A prática desse tríplice modo de ouvir a Deus pelos padres conciliares evidenciou dificuldades de ouvirem-se mutuamente decorrentes de sua proveniência de diferentes contextos, fazendo com que o Concílio inventassem uma maneira de ouvir-se mutuamente, a qual se expressa principalmente no Decreto Unitatis redintegratio (UR, 11), e na Declaração Dignitatis humanae (DH, 3). De acordo com Theobald, estas duas vertentes formam o núcleo de uma gramática gerativa bem específica, que se enraíza numa vertente cristológica, constituída pelo modus agendi do próprio Cristo (DH, 11), seu modus conversationis (DV, 7) e sua figura de pobreza e humildade (LG, 8), e numa vertente pneumatológica, segundo a qual a escuta e entendimento mútuo se ouve a própria voz de Deus.
Na terceira e ultima parte Theobald explica o duplo descentramento da Igreja em relação à Revelação e à sociedade, a serviço do Reino, expresso na Lumen gentium, confirmado na Ad gentes e elaborado de forma completa na Gaudium et spes. Esse descentramento é esclarecido pela maneira de relacionar o modo diaconal de viver a “vocação cristã” a serviço da “vocação humana” com os “sinais dos tempos”, com os sinais e gestos messiânicos de Jesus, expressos nos Evangelhos, e com a teoria paulina dos carismas, manifestando a presença misteriosa do Reino de Deus, bem além da fronteira do cristianismo instituído e da esfera eclesial (p. 17).
Nessa perspectiva, situa-se a favor de uma teologia do laço social e político, no sentido da filosofia implícita do Reino de Deus presente nos Evangelhos sinóticos, baseada por uma confiança e fé instauradora de relações humanas em face da atual desagregação dos laços sociais e as demandas de outro modo de viver juntos, diferente daquele imposto pelo neodarwinismo social. A linha de argumentação seguida por Theobald leva à conclusão de que traduzir a identidade cristã como “maneira de proceder” é uma forma de (a Igreja) se inserir nas sociedades, deixando que Deus nelas fale, e deixá-Lo falar precisamente graças a, por e em “sinais messiânicos”, através de pessoas que, à custa de sua vida, instauram vínculos de humanidade ou o restauram quando ele é rompido.
Em suma, a abordagem genética dos documentos conciliares oferece pistas e referencias fundamentais para leituras prospectivas e para a busca de aprender o que os modos de proceder o Concílio têm a oferecer para a existência cristã e eclesial em face às transformações socioculturais contemporâneas.
Texto elaborado por Cleusa Maria Andreatta
Veja também:
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
As maneiras de proceder do Concílio Vaticano II: uma perspectiva eclesiogenética - Instituto Humanitas Unisinos - IHU