28 Março 2017
A Igreja ambrosiana não é uma Igreja à parte – disse o papa –, mas sim um componente do grande Povo de Deus. Indiretamente, essa perspectiva evocou, sem nomear, o ensinamento do cardeal Martini, outro jesuíta que tinha semeado Evangelho e Concílio em Milão.
A reportagem é de Carlo Di Cicco, publicada por Tiscali, 26-03-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Dez horas para uma reviravolta: Milão, a maior diocese europeia, recebeu a revolução suave do Papa Francisco. Sinais nesse sentido já eram legíveis na véspera, quando o cardeal Angelo Scola, indicado pela mídia sempre como alternativo a Francisco, escreveu que o papa “segue o estilo de Jesus. É por isso que é tão amado”. E, depois, acrescentou: “Os dois fundamentais – confirmar na fé os irmãos e anunciar a alegria do Evangelho, começando pelos mais pobres – já parecem ser inseparáveis”.
O propósito teve consequências, porque o arcebispo da capital italiana das finanças e da tecnologia, nas duas saudações públicas dirigidas ao papa, confirmou a mesma linha. “Os gestos feitos pelo senhor – disse, dirigindo-se a Francisco no fim da grande celebração no parque de Monza, justamente a partir daquele palco que custou tanto, despertando críticas e reservas – são uma significativa indicação para a evangelização desta nossa metrópole. Em particular, o abraço aos mais pobres, aos imigrantes, aos encarcerados indica o caminho para que Jesus Cristo, nossa paz, Jesus que é a beleza, a verdade, a bondade e a justiça e do qual todas as mulheres e os homens das nossas terras precisam, chegue a todos aqueles que as habitam”.
Em San Vittore – talvez imagem-síntese da visita que quis enfatizar a proximidade concreta dos pastores com as pessoas, dando espaço para as mais necessitadas –, onde Francisco disse que se encontrava tão bem quanto em sua casa, o papa se encontrou com todos, de algum modo. E também se permitiu um pouco de repouso, antes de se dirigir para o parque de Monza para a missa.
Mas, na realidade, não se tratou de um verdadeiro repouso, como ocorreu em outras visitas às dioceses italianas, mas apenas cinco minutos de parada no escritório do capelão. Um senso de proximidade e partilha como um bom pároco, que ele repetiu no encontro com os jovens crismados este ano, com os quais se encontrou no estádio de San Siro. A eles, o papa deixou a missão de nunca ceder à tentação do bullying.
Mas o que o papa fez e disse de especial para obter esse resultado tão evidente? Ele passou um dia “à la Francisco”, cumprimentando as pessoas com afeto, fazendo-se ouvir ao lado da sua cotidianidade e dizendo com o seu exemplo que os cristãos devem viver ao lado dos mais fracos e excluídos, porque ninguém está do seu lado até o fim.
Ele não apontou o dedo para discriminar ou repreender, para criar barreiras entre bens e maus, cristãos e não cristãos, praticantes e não praticantes, crentes e não crentes. A Igreja como verdadeiro hospital de campanha que tenta curar as feridas da vida cotidiana de todos os homens.
Ele não se dirigiu a nenhum dos palácios do poder econômico ou da representação política e administrativa, mas apenas para a periferia, pessoas comuns, presos e, depois, para o grande parque onde todos, sem distinção, são convidados para a celebração da missa, independentemente de quem se é na profissão e na vida cotidiana.
Enquanto escolhia de que lado estar, Francisco não trovejou contra aqueles que não estavam do seu lado, mas disse palavras claras tanto para os fiéis ambrosianos quanto para a cidade em geral. Essa fala clara com decisiva mansidão foi o legado para a cidade. Palavras que serão lembradas ao longo das décadas e, portanto, que devem ser relidas imediatamente.
Aos fiéis, ele disse que “o novo Templo de Deus, o novo encontro de Deus com o seu povo ocorrerá em lugares que normalmente não esperamos, nas margens, na periferia. Lá se encontrarão”. De fato, na sua opinião, “Deus mesmo é Aquele que toma a iniciativa e escolhe se inserir, como fez com Maria, nas nossas casas, nas nossas lutas cotidianas, repletas de ansiedades e, ao mesmo tempo, de desejos. E é justamente dentro das nossas cidades, das nossas escolas e universidades, das praças e dos hospitais, que se cumpre o anúncio mais belo que podemos ouvir: ‘Alegra-te, o Senhor está contigo!’. Uma alegria que gera vida, que gera esperança, que se faz carne na forma no modo como olhamos para o amanhã, na atitude com que olhamos para os outros. Uma alegria que se transforma em solidariedade, hospitalidade, misericórdia para com todos”.
E, como exemplo, o papa não indicou uma figura carismática da cidade, mas Maria, humilde jovem de Nazaré da qual, nesse domingo, se recorda a anunciação de que ela se tornaria mãe de Jesus.
“Assim como Maria, também nós – insistiu o papa – podemos ser tomados pela desorientação. ‘Como se fará isso’ em tempos tão repletos de especulação? Especula-se sobre a vida, sobre o trabalho, sobre a a família. Especula-se sobre os pobres e sobre os migrantes; especula-se sobre os jovens e sobre o seu futuro.”
Tudo parece se reduzir a cifras, deixando, por outro lado, que a vida cotidiana de tantas famílias seja tingida com precariedade e insegurança. Enquanto a dor bate a muitas portas, enquanto em muitos jovens cresce a insatisfação com a falta de oportunidades reais, a especulação abunda por toda parte.
“Certamente, o ritmo vertiginoso a que estamos submetidos parece roubar a nossa esperança e alegria. As pressões e a impotência diante de tantas situações parecem endurecer a nossa alma e nos tornar insensíveis diante dos inúmeros desafios. E, paradoxalmente, quando tudo se acelera para construir – teoricamente – uma sociedade melhor, no fim, não se tem tempo para nada e para ninguém. Perdemos o tempo para a família, o tempo para a comunidade, perdemos o tempo para a amizade, para a solidariedade e para a memória.”
Elegante também é o modo de Francisco indicar uma alternativa cultural para o medo que vai engrossando as fileiras dos populismos. “Esta terra e a sua gente conheceram a dor das duas guerras mundiais; e, às vezes, viram a sua merecida fama de laboriosidade e civilidade poluída por ambições desreguladas. A memória nos ajuda a não ficarmos prisioneiros de discursos que semeiam fraturas e divisões como único modo de resolver os conflitos. Evocar a memória é o melhor antídoto à nossa disposição diante das soluções mágicas da divisão e do estranhamento.”
A Igreja ambrosiana não é uma Igreja à parte, mas um componente do grande povo de Deus. Indiretamente, essa perspectiva evocou, sem nomear, o ensinamento do cardeal Martini, outro jesuíta que tinha semeado Evangelho e Concílio em Milão.
“Faz-nos bem recordar – foi a conclusão de Francisco – que somos membros do Povo de Deus! Milaneses, sim, Ambrosianos, é claro, mas parte do grande Povo de Deus. Um povo formado por milhares de rostos, histórias e proveniências, um povo multicultural e multiétnico. Essa é uma das nossas riquezas. É um povo chamado a hospedar as diferenças, a integrá-las com respeito e criatividade e a celebrar a novidade que provém dos outros; é um povo que não tem medo de abraçar os confins, as fronteiras; é um povo que não tem medo de dar acolhida àqueles que precisam, porque sabe que ali está presente o seu Senhor.”
Em Milão, Francisco deixou uma tarefa desafiadora, à altura da sua fama e, portanto, só seu alcance: mudar a si mesma, humanizar-se, em vez de se vender à Bolsa da cidade e à tecnologia sem alma.
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Francisco na Milão dos poderosos: a opção por abraçar apenas os últimos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU