Nesta entrevista, amigos da Madre Chantal relembram sua trajetória e carisma à frente do Mosteiro do Encontro, no Paraná
O lema assumido pela Madre Chantal Modoux, “A alegria do Senhor é a nossa força”, extraído do livro de Neemias, do Antigo Testamento, expressa exatamente como ela viveu sua longeva vida de 101 anos: um espírito de acolhida, de amor verdadeiro e sem medida. É assim que os amigos cultivados desde 1964 no Mosteiro do Encontro, em Curitiba, lembram-se dela. “Ficou sempre lúcida e presente até ao fim, sua respiração parou, como uma vela que se apaga, gasta, usada por tanto amar até ao fim. Assim ela viveu o seu lema, pois dar alegria ao Senhor, leva a viver para os outros, numa vida dada”, diz Teresa Paula Perdigão, monja beneditina da comunidade do Mosteiro do Encontro, que viveu com Chantal nos últimos 50 anos.
Madre Chantal Modoux nasceu na Bélgica, em 1919, e integrava a Congregação das Monjas Beneditinas da Rainha dos Apóstolos. Em 1960, ao mudar-se para o Brasil, fundou o Mosteiro do Encontro no bairro Pinheirinho, em Curitiba.
Hoje o Mosteiro do Encontro localiza-se em Mandirituba, no Paraná. No dia 03-09-2020, aos 101 anos, ela partiu.
Para lembrar sua trajetória e legado, a IHU On-Line conversou com algumas pessoas que formam a rede de amigos do Mosteiro e em diversos momentos da vida foram acolhidos por Chantal. Participam desta homenagem, Teresa Paula Perdigão, monja beneditina da comunidade do Mosteiro do Encontro, Darli de Fátima Sampaio, professora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC-PR, Paulo de Oliveira Perna, professor aposentado da Universidade Federal do Paraná - UFPR, Gilberto Carvalho, ex-ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República do Brasil, Regina Henklein, dentista, e Anne Marie Crosville, francesa, do Centro Infanto-Juvenil Luiz Itamar, Gravataí, RS.
Celebração do aniversário de Madre Chantal Modoux | Foto: Mosteiro do Encontro
IHU On-Line - Quem foi Madre Chantal Modoux?
Teresa Paula Perdigão - Madre Marie Chantal Modoux nasceu na Suíça, na região de Friburgo, em 21 de fevereiro de 1919. Foi a mais velha de quatro irmãs. Educadora nata, formou-se na Escola Normal e trabalhou como educadora em várias famílias. Durante a Segunda Guerra Mundial viveu no Vaticano como professora das crianças de uma família de diplomatas e depois na Espanha. Vocação tardia, descobriu seu caminho monástico com a leitura do livro de Dom Marmion, OSB, “Jesus Cristo, ideal do Monge”.
Entrou no Mosteiro de Nossa Senhora de Betânia, em Loppem, Bruges, na Bélgica, uma comunidade de beneditinas abertas para a missão. Fez os primeiros votos no dia 21 de agosto de 1954, e a profissão monástica, três anos depois, em 23 de agosto de 1957. Viveu seis anos na República Democrática do Congo, na comunidade Kikula, na cidade hoje chamada Likasi, região das minas de cobre, uma comunidade fundada por Betânia. Em 1962, o Papa João XXIII fez um apelo às comunidades contemplativas para irem para países ou igrejas onde a vida monástica não existia. Nossa Congregação respondeu a esse apelo, e Madre Chantal, que se encontrava na Bélgica, nessa ocasião, foi nomeada para a fundação no Brasil, como responsável, com mais quatro irmãs. As primeiras três saíram da Bélgica num navio cargueiro em novembro de 1963, passaram no Rio de Janeiro, desembarcaram no porto de Santos e chegaram a Curitiba no começo de 1964. A cruz de fundação trazia o nome do novo mosteiro: Mosteiro São José. Mas ao chegarem a Curitiba, descobriram que havia congregações com o nome São José, e colégios e lojas, e resolveram procurar um outro nome, que guardasse a figura de São José, num mistério de Cristo.
Monjas do Mosteiro do Encontro | Foto: Mosteiro do Encontro
A festa de 02 de fevereiro, Apresentação do Senhor no Templo, recebeu o nome de “Encontro”, pois nesse dia o Senhor foi ao encontro do seu povo, que o reconheceu como Luz das Nações, por meio da pessoa do velho Simeão. A Igreja Oriental chama à festa “O Encontro”. Tudo na vida monástica é um encontro, uma procura de Deus. A data oficial jurídica do Mosteiro do Encontro foi dia 1º de novembro de 1965. Era bispo de Curitiba Dom Manuel d’Elboux. As irmãs adquiriram um terreno no Pinheirinho e o primeiro mosteiro foi feito de madeira. O Papa Paulo VI tinha falado muito de Igreja serva e pobre, e era isso que as fundadoras queriam realizar: inserir-se num lugar pobre, perto dos mais simples e aí viver a vida monástica. Fizeram o curso do Centro Cultural Missionário - Cenfi, em Petrópolis, onde criaram laços com muitos outros religiosos e religiosas de várias nacionalidades.
Darli de Fátima Sampaio - Em minha opinião, sem dúvida, uma mulher impressionante! Profundamente impressionante! Esta foi a minha primeira impressão quando eu a conheci no final da década de 1980 no Mosteiro do Encontro, situado no meu bairro, o Pinheirinho, região sul de Curitiba. Esta mulher impressionante que se mostrava e eu a percebia por meio das minhas impressões sensitivas, ao contemplar aquela mulher alegre, de aparência frágil, tão simpática e acolhedora.
Monja beneditina, de vida simples, acostumada ao silêncio, era capaz de ouvir com verdadeira e profunda atenção. E mesmo quando nada era dito, quando as palavras se recusavam a sair, muitas vezes a sua figura silenciosa ficava ao lado, solidária, compreensiva. Madre Chantal dava a possibilidade de, no silêncio do coração, orar.
Não demorava muito para oferecer algum alimento a ser compartilhado, fruto do trabalho realizado no próprio Mosteiro, como as saborosas geleias, como a de Ruibarbo, a minha preferida.
Uma mulher que não teve medo de tomar importantes decisões, viveu grandes adversidades, manteve-se extremamente afetuosa, culta, fraterna, solidária. Dona de um belo sorriso, olhar amoroso, perspicaz, e toque gentil. Mais do que uma monja beneditina, era o próprio amor de Cristo, caminhando.
Paulo de Oliveira Perna - O que sei dela é que foi para mim uma grande amiga, e um ponto de referência na minha formação subjetiva, de valor inquestionável! Preciso introduzir esse tema com uma pequena história, logo a seguir.
Gilberto Carvalho – Madre Chantal veio da Bélgica em 1964 e fundou, em Curitiba, o Mosteiro do Encontro. Era uma pessoa marcada pela capacidade de acolhida e pela alegria de viver. Quando ela escolheu o lema “A alegria do Senhor é a nossa força”, ela era a própria testemunha dessa alegria, mas também era uma mulher de grande firmeza, de posicionamento.
Assim que ela criou o mosteiro, começou a criar uma rede – junto com as outras monjas, como a Irmã Teresa Cristina e a Irmã Anne, que foi uma espécie de braço direito dela – de amigos do mosteiro, dentre os quais se incluía um grupo de pessoas progressistas. Chegou um momento, inclusive, durante a Ditadura Militar, em que ela acolhia as pessoas no Mosteiro e escondia alguns quando havia perseguições; lembro que ela chegou a esconder livros de companheiros no sótão do mosteiro.
O tempo todo, ela nos incentivava a ter um cristianismo engajado na luta social. Desse ponto de vista, dá para dizer que foi uma pessoa muito progressista e, acima de tudo, humana. Me lembro muito bem que quando deixei o seminário e optei por ir morar numa favela e trabalhar na fábrica, ela me acolheu com muito carinho. Foi através dela e da madre Teresa que eu conheci um livro que contava a vida do padre Alfredinho – um padre que viveu nas favelas do Nordeste brasileiro, com uma vida radicalizada no meio dos pobres. Ela tinha uma convivência interessante com o setor progressista da Igreja e dava a linha ao mosteiro, era uma pessoa de um engajamento social muito forte, como consequência da vida evangélica, e foi, para nós, um belíssimo testemunho de vida cristã e de engajamento na luta pela justiça.
Anne Marie Crosville – Madre Chantal, monja beneditina, na Bélgica, iniciou uma missão no Brasil nos anos 1964, fundando um mosteiro num bairro popular, em Curitiba, junto com a Irmã Anne. Elas iniciaram sua missão viajando durante três semanas de barco de carga – e não de turismo –, saindo da Bélgica para o Brasil. Foi uma opção radical para partilhar a vida simples. Madre Chantal, profundamente impregnada do espírito de São Bento, que é a força da oração, via o rosto de Cristo em cada irmão e irmã, começando pelos mais pobres, os descartados. Num mosteiro muito simples, um lugar sagrado que ela construiu no meio do povo, acolhia, junto com sua comunidade, o povo do bairro, que era muito pobre. Tinha filas de gente todos os dias para buscar um pedaço de pão ou algo para comer, ou para simplesmente ser ouvido, confortado e acolhido pelas irmãs.
Foi sempre esse espírito de acolhida, de amor verdadeiro e sem medida, que durante toda a sua vida, nossa irmã, Madre Chantal, praticou. Ela sabia acolher com seu sorriso luminoso, que confortava e ajudava as pessoas a superarem as dificuldades. Ela colocava as pessoas em relação umas com as outras e o mosteiro era verdadeiramente o Mosteiro do Encontro, nome que, junto com suas irmãs, ela escolheu.
IHU On-Line - Como a conheceu e quais são suas principais lembranças e recordações da convivência com ela?
Teresa Paula Perdigão - Sou portuguesa, cheguei ao Brasil no final de 1970, como juniorista, vinda de Portugal, do Mosteiro de Roriz, no Norte do país, onde tinha entrado em 1966, com 24 anos. Era uma comunidade de 60 irmãs e foi-me proporcionado fazer uma experiência de dois anos numa comunidade pequena, da nossa Congregação. Foi uma descoberta marcante de uma comunidade unida, que vivia segundo o Evangelho uma vida monástica simples. A pessoa da Madre Chantal me cativou logo.
Sua capacidade de escuta e empatia, seu discernimento, seu acolhimento não deixava ninguém insensível. Ela era muito firme na formação, sabia ajudar a fazer a verdade; me sentia compreendida e amada, e isso ajudava a aceitar a ver a necessidade de conversão e de crescimento. Alguns exemplos do que chamo viver segundo o Evangelho: um ano depois da minha chegada, uns amigos ofereceram a casa deles na praia. Era a primeira vez que podíamos pensar em férias. Isso não era costume na vida monástica. Foi feito um discernimento comunitário e decidimos aceitar. Era uma expedição, pois precisava levar tudo, não tínhamos carro, precisava de alguém para cuidar do mosteiro na nossa ausência etc. Estava tudo preparado, pronto, a alegria no auge, e chegaram duas religiosas, sem avisar, que pediram para ficar na nossa hospedaria duas semanas. Sem pestanejar, com toda a serenidade, Madre Chantal aceitou. E não fomos! Foi um acontecimento que me marcou, pois vi, e vivi, na carne o que São Bento pede: “guiados pelos caminhos do Evangelho”. Fomos para a praia numa outra ocasião.
Um dia chegou no mosteiro uma senhora jovem, casada, maltratada pelo marido que a queria meter na prostituição. Ela fugiu e veio refugiar-se no mosteiro. Madre acolheu-a na clausura, onde ela ficou até o marido sumir. Havia normas sérias para entrar na clausura, mas a caridade foi mais importante.
Um monge francês, procurado pela polícia militar no tempo da ditadura, escondeu-se no nosso mosteiro, ficou na clausura e daí saiu com nosso hábito de monja.
Outro exemplo: uma moça que descobriu estar grávida depois de uma aventura, fugiu do pai e veio ao nosso mosteiro. Chegou a hora do parto, ninguém para acompanhá-la, e Madre Chantal e mais uma irmã a levaram à maternidade, assistiram ao parto; era uma noite de Páscoa, foi uma Vigília pascal diferente. Depois, ela conseguiu a reconciliação com a família da moça. Acabei pedindo para ficar na comunidade do Brasil, onde fiz a profissão monástica em 1975. Madre Chantal recebeu meus votos. Nunca escondi que a pessoa dela foi importante nessa decisão de ficar no Encontro.
Os primeiros anos do Mosteiro coincidiram com o tempo pós-concílio, um período muito difícil para a vida religiosa e sacerdotal. Quantas e quantos a Madre ajudou a sair da crise, a retomar o caminho certo! Ela tinha grande firmeza nos valores essenciais da vida religiosa. Quantas pessoas a procuraram para falar de suas dificuldades familiares! Sua escuta e capacidade de memória (ela guardava os nomes das pessoas, sua fisionomia e sobretudo a conversa que tinham tido) fazia com que as pessoas voltassem, sentindo-se únicas. E depois sua oração de intercessão, sua bênção tinham força. Sabemos de várias senhoras que não conseguiam engravidar e que, com a bênção da Madre, foram mães.
Em 1988, ela decidiu que tinha chegado o momento de fazer uma fundação, e ajudou a comunidade a escolher, entre os pedidos, o lugar mais necessitado, mais “fronteira”, a Prelazia de Itacoatiara, no Amazonas, onde surgiu o Mosteiro da Água Viva. Cada membro da comunidade visitou o lugar, passou por lá. Ela própria visitava a comunidade fundada a cada ano. Em 1998, uma visita canônica decidiu que a comunidade precisava mudar de lugar. Com 80 anos, ela assumiu a busca e a compra do novo terreno, a venda do terreno antigo e a mudança. A Dedicação da Igreja do novo mosteiro, em 2008, foi para ela uma grande alegria.
Darli de Fátima Sampaio - Na década de 1980, eu participava de grupos de jovens e trabalhava na Paróquia Nossa Senhora do Sagrado Coração, no Pinheirinho, e tinha decidido ser religiosa, só não sabia em qual congregação entrar. O Mosteiro era uma das minhas opções. Muitas vezes eu estive por lá, seja com o Shalom, meu grupo de jovens, ou sozinha, para conversar e entender aspectos da minha própria vocação.
O tempo foi passando, eu acabei intensificando a militância em grupo da Pastoral Operária, depois em núcleos do PT e em outros Movimentos Sociais, mas não deixava de vez ou outra ir ao mosteiro para falar com a Madre Chantal, com a Irmã Anne, a Belga, entre outras tão queridas, como a Irmã Ana Maria.
Com a Madre Chantal foram muitas as conversas sentadas nos bancos espalhados pelo Mosteiro, embaixo de árvores frondosas, no refeitório. Estávamos algumas vezes juntas na adoração ao Santíssimo, na bela capela entre a clausura e o atelier. Saudades das conversas, ouvindo o canto dos pássaros. Em outras, deixando o silêncio falar, ou compartilhando alguma leitura realizada.
Paulo de Oliveira Perna - Conheci a Madre quando também conheci o Mosteiro do Encontro. Era o ano de 1970. Um ano antes, em 1969, aos 20 anos, ingressei no curso de Engenharia Química da Universidade Federal do Paraná. Um ano depois, também ingressou no mesmo curso uma amiga do movimento Emaús, de jovens católicos, Maria Cristina Timmermann. Essa amiga, um ano depois, num belo dia, me comunicou que havia decidido entrar para a vida religiosa com as Irmãs Beneditinas, do Pinheirinho, o que fez logo em seguida. Foi ao visitá-la, pela primeira vez, que conheci a comunidade, e com ela a Madre Chantal, em 1970. A partir daí, nunca mais deixei de frequentar o Mosteiro, com intervalos muito variados.
Em 1974, ao terminar a graduação em Engenharia Química, estava atravessando um período muito conturbado da minha vida interior, pois não queria trabalhar na profissão, que achei muito tecnicista. No entanto, também não tinha muita ideia do que fazer, sabendo apenas que desejava fazer algo de caráter mais humanista, mais próximo às pessoas. Foi aí que Madre Chantal foi de um amparo fundamental quando eu precisei tomar uma importante decisão.
Era o tempo das Comunidades Eclesiais de Base na Igreja Católica, falava-se da Teologia da Libertação, porém, isso em locais mais restritos, com poucas pessoas. Foi no Mosteiro do Encontro que aprofundei esse conhecimento, ouvindo falar, pela primeira vez, do trabalho social da Igreja, da necessidade de compromisso com os pobres, de exigências de mudanças estruturais que levassem a uma sociedade mais justa e igualitária.
Numa conversa com a Madre Chantal, ela me perguntou por que eu não arriscava uma experiência nessas comunidades, pois talvez ali encontrasse um pouco do que buscava. Bem, para encurtar a história, ouvi falar de um movimento que atuava na Amazônia, e no início de 1975, pouco mais de um mês depois da minha formatura em Engenharia Química, segui de ônibus para Belém do Pará, sede do Movimento de Voluntários Internacionais e Brasileiros para a Amazônia - Vibra. Um dos suportes fundamentais para minha estadia a partir daí, frente a tantos desafios, principalmente os de ordem subjetiva, era a correspondência com algumas Irmãs do Mosteiro do Encontro, o que me fortalecia e me convencia da justeza da minha escolha. As cartas da Madre Chantal eram uma fonte de energia poderosa, bem como as da minha amiga, Ir. Cristina! Retornei definitivamente no início de 1978.
Lembro ainda que, numa oportunidade entre 1976 e 1977, as monjas foram a Paranaguá e meu pai, Mário Oliveira Perna, que trabalhava na filial do Banco da Província do Rio Grande do Sul, naquela cidade, levou-as para um passeio, ciceroneando parte do circuito que elas fizeram. O grupo esteve no terraço do Palácio do Café, então o único edifício alto da cidade, e Madre Chantal nunca esqueceu da vista panorâmica da baía e as ilhas próximas à cidade. Sempre que ela encontrava meu pai, ainda agradecia pelo fato.
E assim, eu tive o prazer de continuar com essa amizade por esses anos todos, tendo trocado ideias com a Madre sobre diversos assuntos. A última vez que a vi, e em que conversamos, foi em 2019.
Paulo de Oliveira Perna com Madre Chantal e Isabel, em 1976 | Foto: Arquivo Pessoal
Gilberto Carvalho – Conheci Madre Chantal e o Mosteiro do Encontro em 1970, exatamente quando buscávamos espaços para respirar o novo padrão, à época, de ser Igreja. Eu estava no seminário de uma congregação bastante conservadora, dos Palotinos, e comecei a tomar contato com a Teologia da Libertação e ia ao mosteiro, em parte, para ter momentos de oração, de celebração, de contemplação e, ao mesmo tempo, para beber desta fonte de uma nova forma de ser Igreja.
Quando fiz a minha transição de deixar o seminário para ir morar na favela, fui acolhido no mosteiro. As irmãs procuravam nos alimentar fisicamente, com uma acolhida, e espiritualmente e afetivamente. A comunidade tinha um processo de acolhida e de apoio ao engajamento social e político muito forte. Foi através delas, como já mencionei, que conheci a biografia do padre Alfredinho. Eu traduzi esse livro, pela paixão que tive imediatamente por ele, e a partir dessa obra, a minha vida mudou muito. O título em francês era L’a Anesse de Balaam - Dand Une Favelle Bresilienne [de Joseph Bouchaud e Frédy Kunz], e eu traduzi com o título A Burrinha de Balaão numa Favela Brasileira, que foi publicado pela Loyola. Esse livro marcou muito a minha vida porque relatava a experiência do padre Alfredinho durante sete anos numa zona de prostituição na favela. Depois ele continuou sua vida sendo morador de rua em São Paulo e morreu numa favela em Santo André; por coincidência, onde eu estava trabalhando na prefeitura. É por isso que, para mim, Chantal e o Mosteiro do Encontro estão ligados a esse engajamento e entrega da nossa vida na luta pelo povo.
Regina Henklein - Vim para Curitiba em 1969, para fazer faculdade, saindo de uma cidade do interior, de uma família religiosa e numerosa. Na cidade grande, todas as "tradições religiosas" podem ser questionadas e nossas crenças sofrem abalos. Nesse processo de decisão da vida adulta, conheci primeiro o Mosteiro da Anunciação, de monges franceses, cujo abade era Filipe Ledett. Com eles, redescobri a essência da fé cristã e fiz de minha opção de fé uma decisão pessoal. Também a partir deles conheci o Mosteiro do Encontro, onde Madre Chantal era a prioresa. Eu e meu marido passamos a frequentá-lo, isso era 1971, e nos aproximamos muito de Chantal e Irmã Anne, cada uma com seu elã pessoal. Irmã Anne era mais "teóloga", discreta, Chantal era o acolhimento, a ternura, a fé e a coragem que transpira e vai além do visível, do sensorial.
Anne Marie Crosville – Nos conhecemos em 1992, quando eu trabalhava num bairro popular no município de Cachoeirinha, no Rio Grande do Sul, com crianças e adolescentes em grande vulnerabilidade social. Fundei, junto com meu companheiro, Luiz Itamar, um espaço para acolher crianças vítimas de violência e que precisavam de um local para se encontrarem, serem ouvidas e resgatarem a sua dignidade de filhos e filhas de Deus.
Luiz Itamar era uma pessoa que apesar da sua fragilidade – era cadeirante – irradiava o amor e a força de vida, assim como Madre Chantal. A morte dele foi muito difícil para mim e foi neste momento que precisei encontrar pessoas que pudessem me ajudar a superar essa dor e a continuar o compromisso em defesa da vida das crianças. Maria Giacomel, uma irmã comprometida com o povo, me aconselhou a conhecer o Mosteiro do Encontro e a passar um tempo lá para me fortalecer e fortalecer a minha fé, superar a dor da separação do Itamar, e continuar o compromisso a serviço das crianças.
Chegando lá encontrei a Irmã Anne. Fui muito bem acolhida, senti o calor humano, o calor de um Deus amoroso, e ela me apresentou a Madre Chantal, que com sua alegria de viver e seu sorriso, me abraçou e me acolheu. Ao lado dessa comunidade, fortaleci minha fé. Madre Chantal perguntava sobre minha história e gostava de ouvir as pessoas, porque cada um era único. Ela valorizava todos que chegavam ao Mosteiro e era o espírito da comunidade.
Anne Marie e Madre Chantal | Foto: Arquivo Pessoal
Na ocasião, contei um pouco da minha história e senti que podia me abrir com ela. Contei da minha caminhada como missionária na América Latina, no México e depois, no momento mais forte, em El Salvador, durante a Ditadura. Estive junto com São Romero [Óscar Romero], que me convidou a radicalizar ainda mais meu compromisso a serviço da vida, indo para El Salvador. Com o assassinato dele, decidi ir para as zonas de combate como alfabetizadora, acompanhando o povo na sua luta por liberdade e vida digna. Não sabia se deveria contar isso para as irmãs, mas Madre Chantal insistia em saber sobre a minha história. Pensei que as irmãs poderiam achar que eu fosse uma subversiva, mas não, porque cada história que ela ouvia era valorizada. Ela respeitava muito a caminhada de cada um e me senti, de verdade, em confiança e comecei a me identificar com o espírito da Madre e da comunidade.
IHU On-Line - O lema de vida da Madre Chantal era “A alegria do Senhor é a nossa força”. Como vê a trajetória dela à luz desse lema e da sua fé?
Teresa Paula Perdigão - O lema da Madre era “A alegria do Senhor é a nossa força”, que vem do livro de Neemias. Madre era muito discreta sobre sua vida espiritual, interior. Nunca falava dela mesma. Suas conferências à comunidade revelavam muito. Seu olhar luminoso e sereno, seu sorriso, falavam. Sua presença fiel no ofício, nos trabalhos comuns, nos serviços da comunidade, sua disponibilidade para atender quem a procurava, eram sinais do que ela vivia. Ela foi nossa prioresa e formadora até o ano 2000. Depois era uma irmã na comunidade, pedindo a bênção, obediente à nova prioresa, pedindo as licenças do dia a dia, prestando contas quando saía etc. Sempre com esse olhar luminoso. Madre era muito ciosa de sua autonomia, mas a muita idade trouxe limites, foi perdendo a audição, a visão, a capacidade de cuidar de sua higiene sozinha. Sempre tinha uma irmã com ela de dia e de noite e isso exigiu uma aceitação contínua de mais uma diminuição.
Nunca se queixou, sempre agradeceu tudo com o mesmo olhar luminoso. Lhe custava muito não poder mais ler, ela que lia muito e formou nossa grande biblioteca. No entanto, dava para perceber que viveu uma certa noite escura da fé, típica dos grandes espirituais. Perseverar na oração: “estou ali como diante de uma parede”. Com uma certa angústia no rosto, às vezes ela dizia: “como vai ser a morte?”, “o que é a vida eterna?”. Dava para perceber um combate para perseverar na fé. Ficou sempre lúcida e presente até ao fim, sua respiração parou, como uma vela que se apaga, gasta, usada por tanto amar até ao fim. Assim ela viveu o seu lema, pois dar alegria ao Senhor, leva a viver para os outros, numa vida dada.
Darli de Fátima Sampaio - É um lema inspirado em Neemias, 8:10. Uma exortação sobre a importância de cultivar, exercitar o espírito da alegria mesmo diante das adversidades. Imagino que ao longo de sua vida, mais de 100 anos, Madre Chantal certamente enfrentou inúmeras dificuldades. Quando se reportava a alguma coisa do passado, era com um sorriso nos lábios.
Da última vez que a vi, anos atrás, discorreu sobre o processo difícil do envelhecimento, que não desejara para o seu pior inimigo, se é que tivesse algum. Envelhecer roubava a capacidade de ouvir, saborear, andar... O limite da condição humana, cujo processo, levaria até Deus. Estava pronta para partir.
Paulo de Oliveira Perna - Tenho certeza de que esse lema foi assim escolhido porque refletia exatamente a forma com que Madre Chantal vivia e demonstrava isso de forma muito explícita a quem dela se aproximava. Já fiz menção ao seu humor, o que acho muito especial nos religiosos, em geral sempre muito compungidos. Porém, nela era algo em abundância, sempre mostrando alegria e com isso alegrando o entorno. Dela recebi várias indicações de leitura, de autores que não conhecia, e que foram de enorme suporte para minha vida interior.
Outro traço que me ficou da Madre foi a sua postura de escuta... mais ouvia do que falava... e assim, não havia quem deixasse de ficar marcado pelas conversas sempre tão gratificantes, a Madre se interessando e perguntando mais... Comportamento pouco fácil de se encontrar por aí!
Gilberto Carvalho – A partir deste lema, é possível dizer que Madre Chantal foi uma pessoa extremamente coerente, com a menor distância possível entre aquilo que ela praticava e aquilo que acreditava, e isso se irradiava por toda a comunidade e no ciclo de amigos que ela foi formando ao longo do tempo. Lembro que o Mosteiro do Encontro se tornou, para todos nós, um ponto de referência tanto para a contemplação, a oração, o aprofundamento da fé, e também um estímulo para continuarmos o nosso trabalho à época das Comunidades Eclesiais de Base. Fazíamos muitas reuniões do “grupão”, que era um grupo mais à esquerda da Igreja de Curitiba, no mosteiro. Os mosteiros dos beneditinos e o das beneditinas eram esse espaço físico e espiritual de respiro e estímulo.
Realmente, Chantal encarnava esse aspecto da alegria e da ternura de Deus. Chantal, para nós, era a configuração do rosto da ternura de Deus nas nossas vidas, pela acolhida, pelo estímulo, pela firmeza, pela capacidade que tinha de resistir e de nos estimular a seguir em frente.
Madre Chantal Modoux | Foto: Mosteiro do Encontro
Regina Henklein - A vida passa, o trabalho ocupa, os filhos crescem, mas sempre permanecemos ligados. Muitas vezes, no silêncio do Mosteiro é que tomamos as grandes decisões da vida. E Chantal estava lá, nos escutando, chorando conosco, sim, chorando literalmente, nos mostrando o caminho da fé. Batizamos uma filha no antigo mosteiro e, para meus três filhos, Madre Chantal é a própria expressão de “a alegria do Senhor é a nossa força”.
Pedi a minha filha Isabel que escrevesse sobre Chantal e essas são suas palavras: “Madre Chantal era minha avó espiritual. Já não tinha mais nenhum dos meus avós de sangue, mas essa situação era amenizada, pois a tinha como uma avó. Afinal, conheci ela a minha vida toda; literalmente, foi me visitar na maternidade, ainda recém-nascida. É esquisito pensar que não verei mais aquela fonte de luz e energia sorrir. Toda vez, toda mesmo, que ela me via, abria um sorriso e as mãos para um abraço e falava: ‘Isabel’, com aquele trejeito e sotaque que lhe era peculiar, e me contava que meu nome significa ‘casa de Deus’. Sempre que compartilhava minhas dúvidas, estava pronta para me aconselhar. Eu adorava sentar com ela, em qualquer lugar, para ouvir suas histórias. Contava sobre a Bélgica com um grande carinho. Contava sobre quando chegou ao Brasil e decidiu aqui fazer sua nova morada. Ainda na última vez que a vi, continuava cheia de histórias e sempre querendo saber das minhas e como andava a minha vida. Sempre bem-humorada, lembro que costumava brincar que aos 100 anos ainda não precisava de óculos. O carinho e a gentileza que Madre Chantal demonstrava para com todos ao seu redor era incomparável. Sua falta física será com certeza muito sentida, mas sua presença espiritual, para todos que a conheceram, não deixará que nossos corações fiquem vazios com sua partida”.
Anne Marie Crosville - A preocupação dela era que cada um e cada uma pudessem viver dignamente. Deus quis a felicidade de todos os seus filhos e filhas e ela lutava pelo respeito à vida. Senti que as irmãs do Mosteiro viviam a ousadia evangélica. Jesus foi perseguido porque defendia a vida, os pobres, e elas sempre defenderam e defendem com força, amor e sabedoria a vida de cada pessoa, pobre ou rica, tentando ouvir e aconselhar cada um que acolhem no Mosteiro.
IHU On-Line - O que perdemos com a partida da Madre Chantal?
Darli de Fátima Sampaio - A fronteira de Madre Chantal era o Mosteiro do Encontro, mas esta “fronteira” deve ser vista e entendida como um lugar de fala, e além de um limite territorial que separa a fé contemplativa da “realidade mundana”. Para Madre Chantal, a fronteira não parecia ser um limite, um obstáculo para encontros de “mundos” diferenciados, antagônicos e sem qualquer possibilidade de uma ação efetiva, interativa ou interventiva.
Minha impressão é que Madre Chantal, a partir de sua fronteira monástica, entendia que o fato de ter optado por uma vida de recolhimento, de clausura, de oração contínua, de profunda dedicação a Jesus Cristo, não a fazia cega para o que acontecia no mundo em suas variadas dimensões, seja política, social, econômica, cultural. Ao contrário, era solidária à dor e ao sofrimento que atingia tanta gente no mundo e também as espécies parceiras da humanidade, afinal, mesmo que tardiamente, estamos percebendo que somos um ecossistema de relações. Madre Chantal deixava-se incomodar por tantas situações insustentáveis, especialmente aquelas que estão às portas de suas próprias fronteiras.
Perdemos essa pessoa que alertava para a necessidade de humanização constante, que pensava a partir de sua fronteira, e sabia que é preciso ser e produzir com o(a) outro(a). Madre Chantal, com sua fé inabalável, acolhia no Mosteiro as mais diversas inquietações e sofrimentos. Era uma fonte revigoradora e recuperadora da disposição de luta e resistência. Perdemos essa força estimuladora, acolhedora e resistente.
Paulo de Oliveira Perna - Perdemos uma mulher de caráter muito especial, uma fortaleza espiritual que vivia com um humor que temperava as relações com os outros, de maneira muito especial. Tinha uma formação muito sólida, de forte base humanista, uma cultura sofisticada e diversificada, e com interesse em todos os assuntos que chegassem ao seu ouvido. Ao longo dos anos, estive no Mosteiro com muitos amigos, pessoas que eu levava para conhecer a comunidade. Quando havia a oportunidade de encontrar Madre Chantal, as opiniões eram unânimes: que pessoa!
Ela com a Irmã Anne Farcy, que também conheci, foram as fundadoras do Mosteiro do Encontro e os pilares centrais na formação da comunidade beneditina que se fixou no Pinheirinho, em Curitiba, e depois se mudou para a área rural do município de Mandirituba.
Gilberto Carvalho – Ela faz parte de uma geração que marcou muito a Igreja progressista no Brasil. Também perdemos recentemente Pedro Casaldáliga, Dom Balduíno, Dom Pelé [José Maria Pires], Dom Fragoso, Dom Waldyr Calheiros, ou seja, uma geração de religiosos que nos davam uma linha muito forte de engajamento social. São pessoas proféticas, que têm coragem de fazer a denúncia das injustiças e o anúncio da fraternidade e, acima de tudo, estimularam um engajamento social e político muito amplo de uma gama imensa de cristãos que, ao receberem esse estímulo, acabaram se engajando nos movimentos sociais, nos partidos de esquerda, na luta militante.
O que perdemos com a morte de Chantal é essa memória e esse estímulo de um cristianismo que é consequente e não faz mediações com o poder, não tem medo de viver o Evangelho na sua integridade. Chantal e Pedro Casaldáliga fazem parte de uma geração inteira que estamos perdendo e que foi uma referência fundamental em nossas vidas. O que temos que fazer, a meu juízo, é dar continuidade à vida deles através da nossa vida consequente e engajada na luta social, iluminados pelo Evangelho.
Regina Henklein - Um dia, fazendo uma reflexão sobre Deus, o ser a totalidade do masculino e feminino, e quem seriam esses masculinos e femininos próximos meus, que mais me revelariam a face Dele, incontinenti, me vi frente à Madre Chantal. Então, não perdemos Madre Chantal. Se somos corpo (barro) e espírito (Ruah), Chantal só se tornou invisível para nós, mas seu espírito permanece sempre conosco. Ressuscitou.
Celebração do aniversário de Madre Chantal Modoux | Foto: Mosteiro do Encontro
IHU On-Line - Madre Chantal também era conhecida por agregar pessoas de diferentes crenças e personalidades, era conselheira espiritual e sempre foi bastante procurada por profissionais liberais e políticos que recorriam ao Mosteiro do Encontro. Dizem ainda que ela se interessava muito pela situação do Brasil e seu futuro. Que legado ela nos deixa?
Teresa Paula Perdigão - Madre foi uma grande monja, uma mulher profundamente livre, habitada por uma presença. Queria agradar somente ao seu Senhor, e ao mesmo tempo tinha um espírito de criança, capaz de se maravilhar com tudo. Amava profundamente a vida monástica, amava o meio onde estamos, os vizinhos, o Brasil. Sempre acompanhou a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB e a Conferência dos Religiosos do Brasil - CRB, conhecia os nomes dos bispos, sofria com a linha política do país. Era suíça e defensora da democracia. Quando as notícias revelavam autoritarismo ou corrupção, reagia espontaneamente: “E ninguém faz nada? Ninguém diz nada?”. Isso ela sofria e carregava na oração.
Sua morte é uma grande perda para nós e para a Congregação. Era um pilar e um ponto de referência. Ela nos passou o amor pela vida monástica e a abertura ao mundo, vivida sobretudo no acolhimento, e no zelo pela comunhão fraterna.
Darli de Fátima Sampaio - Pelo que se sabe, muita gente do mundo da política procurava, sempre que possível, conversar com a Madre Chantal. Ela era uma grande referência de encontro, acolhida plural. Foi procurada por perseguidos(as) pela ditadura militar e por ateus convictos. Muitos buscavam proteção, acolhida ou uma boa e inteligente conversa. Até onde eu sei ninguém saiu decepcionado(a).
Paulo de Oliveira Perna - Ao longo dos anos, depois que me tornei professor das áreas da Enfermagem e da Saúde Coletiva, na Universidade Federal do Paraná, sempre Madre Chantal manifestava interesse sobre o que eu fazia, quais os principais desafios da área, inclusive me pedindo que fosse falar com a comunidade, em algumas ocasiões, para dividir conhecimentos e análises da situação sanitária de Curitiba, do Paraná e do país.
Também durante minha vida de trabalho docente (me aposentei em 2018), fui conhecendo pessoas que, nos mesmos idos de 1970, também tinham encontrado um ponto de referência especial no Mosteiro do Encontro. A minha trajetória inicial com a comunidade beneditina não foi marcada por relações que incluíssem o plano da política (eram os anos pesados da ditadura empresarial-militar), pois eu confesso que minha trajetória, até então, tinha me deixado longe de qualquer atividade daquela natureza. Inclusive nos anos em que fiz Engenharia Química, o "silêncio político" dentro da UFPR era uma tônica. Mas soube, depois, que pessoas com história de maior engajamento político encontraram um espaço de liberdade e acolhimento no Mosteiro do Encontro, o que sabemos era uma opção e compromisso da compreensão de vida religiosa da Madre Chantal e da Irmã Anne Farcy.
No entanto, foi a partir da experiência na Amazônia que meu processo de conscientização política se formou e se fortaleceu, exatamente o que me levou depois a trabalhar com as relações sociais e políticas que determinam as condições de saúde (ou doença) de uma sociedade, além de militar em vários movimentos do setor.
Paulo de Oliveira com Madre Chanta e seu pai Mario Oliveira Perna (à esquerda), em 2015 | Foto: Arquivo Pessoal
Gilberto Carvalho – O círculo de amigos e de apoiadores do mosteiro que ela reuniu era múltiplo e, de fato, pela formação intelectual dela, da Irmã Cristina e da Irmã Anne, permitiu-se a formação, em torno do mosteiro, de um círculo intelectual, de profissionais liberais e de pessoas que buscavam uma nova forma de ser Igreja, mas também uma nova forma de vida.
Ela era muito bem informada, acompanhava a conjuntura política da época, mas, claro, não era uma militante engajada fora do mosteiro, porque isso não correspondia à vocação dela. Mas ela tinha uma forma de contemplação absolutamente comprometida com a realidade de uma nova Igreja e da resistência à Ditadura. Ela repassava muitas informações que tinha para nós e a relação dela com os beneditinos também reforçava esse polo de uma atuação em prol de uma Igreja progressista e da Teologia da Libertação.
Eu diria, para finalizar, que o legado que Chantal nos deixa junto com a sua comunidade é exatamente este: de que a fé nos compromete com o pobre, com o excluído, com um padrão de caridade a ser exercido na sua radicalidade no sentido de que o engajamento social e político é uma forma privilegiada de exercício da caridade cristã mais intensa. Fica também, como legado, a ternura, a alegria, a acolhida, que nos trazia ânimo. A longevidade permitiu que ela, durante tanto tempo, seguisse provocando e exercendo essa influência. Nos últimos anos, pelo fato de o Mosteiro ter se retirado do bairro do Pinheiro e ido para a zona rural, diminuiu em parte a intensidade da presença do pessoal de Curitiba no Mosteiro, mas enquanto ela teve saúde ela exerceu, de maneira muito lúcida e muito forte, esse papel.
Regina Henklein - No acolhimento de todos, independente de sua condição social, posição religiosa ou política, o que ela mostrava era o profundo respeito pelo outro, cada um se sentia único, especial, compreendido e amado. Precisa mais?
Anne Marie Crosville – Chantal desenvolveu uma rede de comunicação, de relações humanas entre as pessoas que estavam no Mosteiro, porque todos partilhavam a reflexão juntos. Ela insistia na partilha. Aprendi muito no Mosteiro porque encontrei pessoas de diversas culturas e crenças; esse era o carisma de Madre Chantal. Por lá passavam políticos, pessoas de diferentes lugares e todos podiam conversar com muita confiança com a Madre. Esse era um dom que ela tinha, o qual espalhou no Mosteiro e em cada um de nós, criando uma rede de solidariedade, de cuidado, de saber olhar para as pessoas nos momentos de silêncio. Muitas vezes não sabemos olhar para as pessoas com um olhar de ternura. No Mosteiro, aprendemos a saber olhar, a fazer silêncio para se encontrar com o Deus que nos olha. Isso marcou minha vida e nossa relação começou a se aprofundar, porque me identifiquei com o espírito de Madre Chantal.
Desde o nosso primeiro encontro, continuamos nos encontrando como se ela fosse minha mãe de criação, porque me sentia confortada, apoiada e podíamos dialogar verdadeiramente, cada uma partilhando sua experiência de vida com a outra. Com sua sabedoria, ela sabia discernir o que eu pensava e me ajudava a melhorar a minha vida de fé, de militante. Ela me ajudou inclusive com o Centro Infanto-Juvenil Luiz Itamar e esse foi outro passo importante na nossa relação. Ela não chegou a visitar o Centro, mas a Irmã Anne passou alguns dias lá para nos fortalecer e nos ajudar com a sua presença de amor fraterno, partilhando com as crianças; aquele momento foi um sopro de vida nova para nós. Depois, nossas crianças fizeram uma viagem para o Rio de Janeiro – tiveram a oportunidade de sair do seu bairro –, então passamos alguns dias no Mosteiro do Encontro. Foi um momento bonito e Madre Chantal acolheu cada um. As crianças sentiram a ternura das irmãs e isso foi transformador para elas.
Foi uma graça e um privilégio poder encontrar esse Mosteiro e ter essa relação com a minha mãe de coração. Sobretudo nos últimos anos, vivíamos momentos de muita partilha, confiança, chorávamos juntas, sentíamos que os nossos corações eram unidos ao coração de Deus. Ela dizia para as outras irmãs que eu era a Joana D’Arc dos tempos modernos. Nunca vou esquecer isso.
Seu legado é tudo isto: saber amar sem medida, ouvindo o grito e o clamor dos mais pobres, dos explorados, o clamor por justiça. Ela sempre esteve preocupada com a situação do Brasil e com as injustiças. A desigualdade era a sua grande preocupação. Seu legado é, para mim, saber ouvir o grito dos injustiçados, dos descartados e saber ouvir também o grito de qualquer irmão, rico ou pobre, que precisa de ajuda, de conselho, de conforto, para juntos construir um reino de amor, de reconciliação.
Sem julgar ninguém, ela não se calava diante das injustiças. Estes são os grandes legados dela: a justiça, o amor, a luta pela igualdade, a partilha dos bens e a criação de uma grande rede de amor entre as pessoas, entre o povo de Deus, que somos cada um de nós, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, os que trabalham para defender a vida e unir as pessoas de todas as classes e crenças. Todos têm o mesmo valor diante de Deus e não podemos explorar o outro. Somos a família de Deus, o povo de Deus que deve trabalhar para superar as nossas contradições, amando de verdade.
Tenho muita gratidão pela Madre Chantal e pela comunidade do Mosteiro do Encontro. Peço que ela interceda a Deus por nós, que atravessamos um momento de muito sofrimento, sobretudo para os que são descartados, os que sofrem injustiças. Ela vai continuar olhando por nós.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Darli de Fátima Sampaio - Sim. Insistir na importância do lema de Madre Chantal: “A alegria do Senhor é a nossa força”, especialmente em nosso tempo difícil e sombrio.
Paulo de Oliveira Perna - Talvez ainda reafirmar que ter conhecido Madre Chantal foi um privilégio, e até mesmo um requinte da vida! Meu pai faleceu com 100 anos, em 2016. Um ano antes, cheio de saúde, levei-o para mais um passeio ao Mosteiro. Gravei um pequeno trecho de conversa entre ele e Madre Chantal, e me dei conta da semelhança de modo de vida que os dois tinham. Quando ele faleceu, apesar da perda, eu e meus irmãos nos satisfizemos com a qualidade das relações vividas entre ele e nós, assim que abençoamos a sua partida, com muita serenidade. Da mesma forma me sinto com relação à Madre. Foi uma amizade tão satisfatória que agora fico pacificado, e sei que ela terá o descanso merecido entre suas irmãs e nos corações daqueles que a conheceram.