Por: Patricia Fachin e João Vitor Santos | 21 Dezembro 2016
As secas no Nordeste brasileiro, que até então tinham uma “característica mais rural, agora batem às portas das cidades”, onde as soluções para a resolução do abastecimento humano são mais difíceis, diz Fernando Perisse à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone. Segundo ele, depois de cinco anos de secas prolongadas na região, hoje o Nordeste brasileiro vive uma situação em que se caminha “para as primeiras grandes secas urbanas”.
Perisse explica que os principais açudes que garantem o abastecimento de água no Nordeste estão à beira do colapso e alguns já operam no volume morto. “O açude Coremas, que pertence ao sistema Coremas-Mãe d'Água, que são dois grandes açudes de cerca de um bilhão e duzentos mil metros cúbicos no total, já secou. Então pela primeira vez o gigante Coremas, o açude que era considerado a grande segurança da Paraíba, está seco e já chegou ao volume morto. E hoje o Mãe d’Água, que é o segundo grande açude junto ao Coremas, caminha, inexoravelmente, para o colapso”, informa.
Segundo ele, se os principais açudes entrarem em colapso e o próximo inverno for menos chuvoso, haverá um “colapso antes de 2018 e a situação ficará desesperadora no Sertão. Podemos até retomar aquele período de morte de muitas pessoas em virtude da seca”, adverte. Perisse lembra ainda que, diferente da zona rural, onde existem alternativas para enfrentar a seca, como o uso de cisternas e caminhões-pipa, na zona urbana a situação é diferente. “Uma coisa é abastecer um bairro rural com caminhão-pipa, outra coisa é abastecer um bairro periférico onde a maioria das pessoas não tem sequer caixas d’água em casa”, menciona.
Perisse | Foto: Prefeitura de Sousa
Fernando Perisse é Secretário do Departamento de Água, Esgoto e Saneamento Ambiental de Sousa, na Paraíba.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o cenário atual no Nordeste em relação à seca? Que efeitos já são sentidos?
Fernando Perisse – Em todo o Nordeste a situação é crítica, mais acentuadamente no Ceará e na Paraíba, que são os dois pontos em que a seca está bastante grave. Na Paraíba existem dois locais que estão na iminência de colapso total: um é a cidade de Campina Grande, com cerca de 400 mil habitantes, numa área de influência de 600 mil pessoas; e o outro é o Alto Sertão da Paraíba, com cerca de 500 mil pessoas. A situação de Campina Grande é muito grave, porque o açude Boqueirão já está chegando a uma situação de colapso, e não existe, até o momento, uma alternativa para que isso não ocorra. O governo acena com a chegada da transposição em Monteiro, mas as obras para levar essa água até Campina Grande estão bastante atrasadas.
Estamos nos encaminhando para as primeiras grandes secas urbanas. Antigamente as secas tinham uma característica mais rural, mas agora elas batem às portas das cidades, onde é mais difícil qualquer tipo de solução, como cacimbão ou poço. No Sertão, onde moro, o quadro é bem grave também. O açude Coremas, que pertence ao sistema Coremas-Mãe d'Água, que são dois grandes açudes de cerca de um bilhão e duzentos mil metros cúbicos no total, já secou. Então pela primeira vez o gigante Coremas, o açude que era considerado a grande segurança da Paraíba, está seco e já chegou ao volume morto. E hoje o Mãe d’Água, que é o segundo grande açude junto ao Coremas, caminha, inexoravelmente, para o colapso.
Essa situação se deve a uma gestão errada do nosso governo e uma gestão errada da Agência Nacional das Águas – ANA compartilhada pelo Comitê de Bacias. É bom dizer que o Comitê de Bacias é presidido por um potiguar, uma pessoa do Rio Grande do Norte, e a ANA tem um diretor do Rio Grande do Norte muito influente.
Está se fazendo a perenização do Rio Piranhas com o açude perto do colapso, isto é, está se perenizando o rio para chegar até Caicó, no Rio Grande do Norte e, com isso, está se levando à exaustão o açude de Mãe d’Água também. Essa situação é assustadora porque, secando o Mãe d’Água, não há alternativa no Sertão. Existe, por exemplo, o açude de São Gonçalo, que ainda tem água, mas esse é um açude pequeno, que irá imediatamente à exaustão quando ocorrer o colapso do Mãe d’Água. O Boqueirão, que é o segundo maior sistema, já está perto da exaustão, está abastecendo apenas Cajazeiras e também entrará em colapso a partir do colapso do Mãe d’Água.
Portanto, essa é uma situação muito grave, e diante disso percebemos uma ausência do poder público em oferecer soluções. A única solução apresentada até agora foi garantir água até Caicó. Se o açude entrar em colapso e as chuvas vierem conforme os últimos prognósticos, que são, infelizmente, de um inverno fraco de chuvas, teremos um colapso antes de 2018 e a situação ficará desesperadora no Sertão. Podemos até retomar aquele período de morte de muitas pessoas em virtude da seca.
IHU On-Line - Esta seca já pode ser considerada a mais severa em décadas? Quais são as preocupações de que a seca chegue às cidades?
Fernando Perisse – No campo as pessoas têm as cisternas, e os caminhões-pipa podem abastecê-las, ou seja, já existem algumas alternativas desenvolvidas há alguns anos pela Articulação do Semiárido – ASA e apoiadas, até pouco tempo, pelo governo federal. De certa maneira essas iniciativas remedeiam a situação no campo, mas não resolvem, porque a seca está muito prolongada. Mas uma coisa é abastecer um bairro rural com caminhão-pipa, outra coisa é abastecer um bairro periférico onde a maioria das pessoas não tem sequer caixa d’água em casa. Essa é uma realidade dura que descobri quando me mudei para a região.
Quando ocorrem secas ou esses problemas de falta d’água, as pessoas armazenam, de modo não controlável pelo governo, água em tambores, latas, baldes, e em seguida surgem doenças transmitidas por mosquitos. Então, estamos caminhando para uma calamidade e não vejo ação nem do governo federal, nem do governo estadual e nem do municipal. Essa situação vai repercutir, obviamente, no Sul do país, pois muitas dessas pessoas farão a tradicional migração para o Sul. Logo, estamos caminhando para um período muito crítico para a população nordestina.
IHU On-Line – A imagem do Nordeste era associada a um imaginário de terra seca, mas com o passar dos anos essa imagem mudou e o Nordeste também passou a ser visto de outra forma. Isso se deve a uma melhora da situação do Nordeste ou apenas a um “remendo” feito nas últimas décadas?
Fernando Perisse – Houve uma melhora na medida em que o Programa Bolsa Família possibilitou uma “injeção de renda” importante ao promover o desenvolvimento de diversas regiões. A melhoria do salário mínimo também foi muito importante para o Nordeste. Os programas de valorização rural foram, por sua vez, de extrema importância desde 2002, quando ainda se usava candeeiro no Nordeste. À época, no Nordeste predominava a iluminação com lampião a gás, mas a eletrificação rural trouxe a possibilidade de ligação de bombas e equipamentos para o trabalho rural, o que promoveu certo desenvolvimento na região.
Percebemos esse desenvolvimento à medida que foram sumindo os jumentos - só se andava de jumento e bicicleta na zona rural – e foram surgindo as motos. Outra mudança fundamental foi no transporte escolar, pois quando cheguei aqui ainda se usava o pau de arara. Dois anos depois da minha chegada, houve um desastre em que morreram 13 crianças. Esse foi um dos últimos paus de arara, pois depois vieram os ônibus. Então houve uma melhoria efetiva, essa melhoria foi palpável, mas infelizmente também houve situações tortuosas. Parte do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra recebeu muita verba e valorizou o movimento, dando oportunidade e capacitação às pessoas, mas também surgiram oportunistas, pessoas que passaram a se interessar não pelo movimento, mas pela receita, criando problemas graves de corrupção.
Agora, essa seca que se prolonga por cinco anos parece estar mais ligada ao problema das mudanças climáticas. Sentimos que está havendo uma redução no período de chuvas na medida em que a temperatura está aumentando. Inclusive, estou começando um estudo a respeito do aumento da temperatura real no Nordeste. Fala-se muito que a temperatura subiu 0,8 graus centígrados no Planeta, mas em algumas regiões do Nordeste a temperatura subiu 3,5 graus.
IHU On-Line - Qual é a resposta que tem sido dada pelo Estado em relação às mudanças climáticas?
Fernando Perisse – Já é evidente há algum tempo que essa questão de abastecimento pelo leito do rio se tornou inviável. A segurança hídrica da população que depende desse abastecimento é praticamente zero. Há a necessidade de se construírem adutoras paralelas aos rios, garantindo o abastecimento da população e tornando independente o gerenciamento da água que é destinada à irrigação e ao consumo humano. Essa, para mim, seria uma das grandes metas que não está sendo sequer arranhada pelo poder público. Está sendo construída, no Rio Grande do Norte, uma adutora que vai fazer, inclusive, o caminho inverso, ou seja, vai subir com água de açude a 100 metros de altura para abastecer Caicó. Mas isso ocorre por conta de pressão política; não se trata de uma política de governo, mas de uma política de apadrinhamento bairrista de um diretor para um Estado. Então, nós não vemos uma política desenvolvida pelo governo e pela ANA.
Para manter o abastecimento em 28 cidades da Paraíba e três do Rio Grande do Norte, são lançados no rio três mil litros de água por segundo. Porém esse abastecimento consome só 650 litros por segundo, e o resto todo é desperdiçado em infiltração, evaporação e desviado para uma agricultura ilegal.
O segundo maior açude está secando, mas se ele tivesse uma adutora, ele teria água para mais três ou quatro anos, seguramente. A criação dessa adutora seria emergencial. Em Sousa ocorreu o problema de não poder mandar água de Boqueirão para o açude de São Gonçalo, porque o leito do rio estava interrompido por barragens, desvios. Isso porque os fazendeiros não querem nem saber, eles pegam uma retroescavadeira e abrem um canal até suas fazendas, criam barramentos dentro do rio para que ele encha e, por gravidade, chegue até as suas terras. E não há nenhum tipo de fiscalização e nenhum sistema que possa garantir a segurança hídrica da população.
Além disso, tem o quadro do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas - DNOCS, que foi sucateado. O DNOCS foi o grande instrumento da indústria da seca. Eu não defendo o DNOCS, pois, por exemplo, não existe no Canadá um departamento nacional contra a neve, que é um fenômeno natural e não temos como combater um fenômeno natural, mas temos que aprender a conviver com ele. Logo, essa política de combater a seca é questionada pelos movimentos sociais, porque temos que conviver com o Semiárido e saber que existem duas estações, uma de chuva e outra de seca, mas o DNOCS, pura e simplesmente, fazia grandes açudes. Algumas pessoas até questionam o quanto esses açudes colaboram para a perda de água por evaporação e também para a questão de salinização do ambiente. Isso porque a maioria desses açudes impede que o sal chegue ao mar, o que cada vez torna mais salinizado o nosso ambiente, e esse sal fica preso dentro da maioria dos açudes. Em alguns açudes mais modernos isso não acontece, porque a tomada de água é feita pelo fundo do açude.
Ainda assim os açudes são a grande solução do Nordeste, mas eles precisam de manutenção. A barragem do Engenheiro Ávidos, que é um açude grande, o terceiro em tamanho da Paraíba, está com defeito há uns quatro anos, mas não é consertado. Isso é um problema sério para o gerenciamento do açude. O São Gonçalo, que seria o quarto maior açude, também está com um problema sério na comporta e não é consertado, desperdiçando água, e essa água acaba indo para algumas fazendas de pessoas que têm relações políticas. Ou seja, não se conserta a comporta porque tem uma conveniência de se manter a situação tal como está. O açude Coremas, que é o maior da Paraíba, tem um problema na válvula de abertura e no fechamento da comporta, que o faz perder quase dois mil litros por segundo, o que equivale a três meses de abastecimento de uma população de 500 mil pessoas. Então, na realidade, temos um quadro em que se reclama, se recorre ao Ministério Público, se faz de tudo, mas não se encontra uma solução.
IHU On-Line - O que consta no documento que o senhor está preparando para enviar ao Ministério Público Federal?
Fernando Perisse – O grande problema é que o Ministério Público - MP praticamente deixou de ser um defensor dos direitos difusos, que seria sua grande função. Eu apresentei muitas denúncias de corrupção, e hoje a maioria dos inquéritos existentes no MP de Sousa, que abrange toda uma região do Sertão, deriva das denúncias que fizemos. Apresentamos essa situação caótica em relação à água e o risco de desastre hídrico no Ministério Público Federal há dois meses.
Há dois anos consegui, depois de muita pressão, levar o procurador do MP até a beira do açude para ver a quantidade de água que estava sendo roubada. Ele viu a situação, disse que conversaria com a ANA, mas argumentou que talvez o MP não pudesse intervir na regulação. Eu disse que o que ele tinha visto era um crime, porque a população estava precisando de água e os fazendeiros estavam roubando a água para irrigar suas fazendas. Além disso, não havia nenhum fiscal da ANA fiscalizando a situação, porque a agência reguladora não está regulando, não está agindo.
Hoje estou escrevendo ao MP mostrando que, desde que eu entrei com o pedido, o açude já perdeu 20 milhões de metros cúbicos e, no final desse mês, estará com apenas 29 milhões, ou seja, o colapso está previsto para o mês de março.
IHU On-Line - Quais os principais problemas com a gestão da água? O que seria uma política hídrica adequada para o Nordeste?
Fernando Perisse – Primeiro de tudo, houve muito debate em torno da transposição. Eu mesmo, durante um período, me posicionei de forma crítica ao projeto da transposição, mas hoje não tem mais alternativa, e a transposição passa a ser fundamental. Vemos hoje que o reservatório de Sobradinho chegou a um ponto crítico, isto é, a menor vazão, e se tivesse que reduzir mais alguma coisa, as hidrelétricas parariam de funcionar e a energia teria que ser fornecida pelas centrais movidas a óleo combustível. Por isso acredito que a transposição é inevitável, e é necessário um gerenciamento dessa transposição para que ela não acabe apenas servindo às grandes empresas do agronegócio, o qual também vejo como uma necessidade, desde que não traga tantos males, e um deles é a exaustão de água em várias regiões. Ou seja, é preciso que o agronegócio coexista com uma normalidade, principalmente no abastecimento humano.
Nós precisaríamos, como disse, fazer uma revisão da infraestrutura dos açudes, mas com a falência do DENOCS, está difícil. É preciso garantir o abastecimento humano, e esse é um ponto muito importante vinculado a qualquer política. Precisa ser feito também um gerenciamento melhor da água, pois ele ainda atende a muitos interesses econômicos.
Nós somos hoje o Semiárido mais habitado do mundo, não existe em nenhum lugar do mundo um Semiárido com 23 milhões de pessoas. E já estamos caminhando para virar árido – deserto – e não consigo imaginar um deserto com 23 milhões de habitantes. É possível se adaptar. Nós pesquisamos várias informações sobre a convivência no deserto, sobre o funcionamento da climatização natural, feita a partir da energia geotérmica, que fica em camadas de um ou dois metros, dependendo do tipo de solo. Com essa técnica, a área fica como se fosse uma área sombreada que nunca recebeu a luz sol. Essa tecnologia já era usada no deserto do Saara antes de Cristo, ou seja, a solução já existe há milhares de anos. Então, essa temperatura estável e agradável para o ser humano pode ser trazida para dentro do ambiente, sem o uso de energia hidrelétrica, que é outro grande concorrente do abastecimento humano de água.
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Secas urbanas atingem o Nordeste brasileiro. Entrevista especial com Fernando Perisse - Instituto Humanitas Unisinos - IHU