21 Dezembro 2015
“Em um processo de licenciamento técnico, e não político, a obra não teria recebido as licenças de instalação e operação e os estudos seriam refeitos”, ressalta o biólogo.
Foto: gestaoambientalufsm.blogspot.com.br |
Para o biólogo André Aroeira Pacheco, no caso de Belo Monte a chave de todas as violações que se veem atualmente teve origem já nos primeiros movimentos de concepção do empreendimento. “O grande problema, em minha opinião, ocorreu lá atrás, na emissão da licença parcial, que abriu caminho para a instalação dos canteiros de obra e o início da construção da usina. Este fato praticamente consolidou a ideia de que a Belo Monte ia sair mesmo com a precariedade ultrajante dos estudos apresentados pela Norte Energia e a insistente insubordinação aos ritos do licenciamento. Este era o momento mais delicado do processo e não por acaso demandou forte interferência política”, aponta em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Os reflexos da instalação desta megaestrutura continuam se agravando, principalmente pelo descumprimento de uma série de cláusulas que apontam reparações de diversas ordens que a empresa responsável pela obra deveria fazer. Porém, apesar dessa gama de problemas, neste mês de dezembro a Usina recebeu autorização para iniciar suas operações. “Com a licença de operação já emitida, criou-se a situação aberrante: ao invés de as condicionantes condicionarem a autorização para a operação da usina, como a própria língua portuguesa indica, é a operação da usina que passa a condicionar o cumprimento destas condicionantes”, constata Pacheco.
Ao longo da entrevista, o biólogo analisa os sérios danos ambientais e sociais provocados pela instalação da usina na região, bem como as questões políticas envolvidas nesse caso, e denuncia: “Belo Monte frauda o processo o licenciamento ambiental duplamente, por não reconhecer ou não mensurar adequadamente a existência de determinados impactos e por não mitigar ou compensar sequer os impactos reconhecidos”.
André Aroeira Pacheco é graduado em Ciências Biológicas, com ênfase em conservação da biodiversidade, e Mestre em Ecologia, Conservação e Manejo da Vida Silvestre, ambos pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Sua atuação é focada em Economia Ecológica, Serviços Ecossistêmicos, Mecanismos de Financiamento e Gestão de Unidades de Conservação e Políticas públicas para a conservação da biodiversidade. Atualmente trabalha como guia naturalista no projeto de turismo de base comunitária da Pousada Uacari, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, Amazonas.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Recentemente a Usina Hidrelétrica de Belo Monte foi autorizada a operar. Como está a situação do empreendimento? A obra já foi concluída?
Foto: facebook / arquivo pessoal
André Aroeira Pacheco - Aqui cabem duas respostas: a liberação da Licença de Operação autoriza o enchimento dos reservatórios (iniciado no último dia 12-12-2015) e a posterior geração de energia, o que legalmente atesta que a obra está pronta para tal.
Entretanto, várias das condicionantes para a operação de Belo Monte não foram cumpridas pela Norte Energia, o que indica a não conclusão da obra. Ainda assim, com a licença de operação já emitida, criou-se a situação aberrante: ao invés de as condicionantes condicionarem a autorização para a operação da usina, como a própria língua portuguesa indica, é a operação da usina que passa a condicionar o cumprimento destas condicionantes.
IHU On-Line – Em termos de infraestrutura, que implicações a construção da Usina de Belo Monte trouxe para a comunidade onde ela está inserida? Como Altamira está nesse momento em que a obra foi autorizada a operar?
André Aroeira Pacheco - Uma obra colossal como Belo Monte é capaz de atrair pessoas desde o momento de seu anúncio, dada a expectativa de oportunidades que gera. Estima-se que a população de Altamira aumentou de 100 mil para 150 mil pessoas em 6,7 anos. Um agravante nesse contexto é a absoluta predominância de pessoas do sexo masculino nesta onda migratória, muitos dos quais são operários nômades que vagam de grande obra em grande obra por várias décadas. Em outras palavras, Altamira aumentou a população em 50% praticamente apenas com homens trabalhadores da construção civil.
Nenhuma cidade da Amazônia com o porte de Altamira tem estrutura para absorver este fluxo de pessoas, o que deveria estar previsto nos estudos iniciais da obra com a adoção de medidas mitigatórias. E não ocorreu. Altamira tem experimentado uma explosão na demanda de serviços básicos como transporte, saúde, educação, segurança pública e moradia acima de sua capacidade, enquanto a entrega de hospitais, escolas, aterro sanitário e a rede de esgoto municipal pela Norte Energia não ocorreu. De acordo com o “Dossiê Belo Monte” [5], do Instituto Socioambiental - ISA, homicídios, roubos, furtos, acidentes de trânsito e episódios de violência doméstica praticamente dobraram desde 2011. Um estabelecimento com prostituição de menores chegou a ser fechado pela Polícia Civil dentro do canteiro de obras da usina.
Há relatos em audiências públicas de pessoas que foram removidas de suas casas para darem lugar ao empreendimento e que não conseguem adquirir imóveis equivalentes devido à inflação no setor imobiliário da cidade. O mesmo acontece com o preço de alimentos e bens de consumo, cujo aumento de demanda é impossível de ser atendido. Também é comum que recém-chegados que não conseguem empregos no empreendimento passem a ocupar irregularmente áreas públicas e a se dedicar a atividades de grilagem, pesca predatória e desmatamento, aumentando a pressão sobre os recursos naturais. Tais problemas, amplamente conhecidos em empreendimentos minerários e hidrelétricos, foram identificados nas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio recentemente, e também em Belo Monte, com invasão e saque de madeira em Terras Indígenas.
O ponto mais grave é que tudo isso deveria ser previsto, compensado e mitigado pelo empreendedor, pois esses impactos são mais pronunciados na fase aguda de construção, ocorrida por volta de 2013. Agora, com o fim das obras e todo o sofrimento imposto aos moradores de Altamira tendendo a se arrefecer nos próximos anos, a tendência é que “fique tudo por isso mesmo e segue a vida”. Não poderia ser assim.
“Belo Monte já é a terceira maior Usina Hidrelétrica do mundo, mas raramente irá operar em sua capacidade máxima” |
IHU On-Line – Como será o esquema de funcionamento da Usina de Belo Monte?
André Aroeira Pacheco - Belo Monte tem uma capacidade instalada de mais de 11 mil MW e já é a terceira maior Usina Hidrelétrica - UHE do mundo. Mas raramente irá operar em sua capacidade máxima. Sua produção média anual será apenas 40% disso, chegando a 10% do total na época da seca. Sua posição, distante dos grandes centros, exigirá ainda uma grande extensão de linhas de transmissão, o que significa uma perda significativa da produção ao longo do caminho. As perdas no Brasil estão entre as maiores do mundo. Belo Monte custou 28,9 bilhões de reais. É um modelo de UHE tecnicamente ineficiente, com baixo fator de capacidade e alto custo, além de socioambientalmente inviável.
IHU On-Line – Que implicações o início do funcionamento da Usina de Belo Monte trará para o meio ambiente da região do Xingu e às comunidades tradicionais do local?
André Aroeira Pacheco - É importante ressaltar que os problemas socioambientais advêm principalmente de dois aspectos:
1) o subdimensionamento dos impactos da obra, denunciados amplamente [1], [2] e atestados pelos técnicos do Ibama antes e após a liberação da famigerada licença parcial;
2) o não cumprimento das condicionantes restantes.
Assim, Belo Monte frauda o processo do licenciamento ambiental duplamente, por não reconhecer ou não mensurar adequadamente a existência de determinados impactos e por não mitigar ou compensar sequer os impactos reconhecidos.
Relatórios técnicos do Ibama e de pesquisadores independentes [1], [2], [5] demonstram claramente a insuficiência dos estudos, a inadequação da metodologia aplicada, o curto espaço temporal das coletas de dados, a diminuição deliberada da área considerada como afetada pelo empreendimento e a sumária ocultação de impactos nos estudos iniciais, o que inviabiliza qualquer prognóstico e a consequente tomada de decisão. Mesmo tendo conhecimento disso, o governo concedeu as licenças, e a obra seguiu, acumulando as pendências socioambientais. Em um processo de licenciamento técnico, e não político, a obra não teria recebido as licenças de instalação e operação e os estudos seriam refeitos.
População ribeirinha usurpada
Do ponto de vista social, os impactos começam com o já citado aumento de 50% na população de Altamira e continuam ao longo de todo o licenciamento, principalmente na relação com os povos ribeirinhos e indígenas. Para os primeiros, o Ministério Público tem apresentado sucessivas denúncias de irregularidades como remoção forçada, contratos abusivos firmados com pessoas analfabetas e sem nenhum apoio jurídico, invasão de propriedades, indenizações insuficientes, coerção, uso de força, constrangimentos e intimidação. Ribeirinhos, que viveram do rio por décadas e gerações, foram removidos pela usina para a periferia de Altamira. Hoje moram em deprimentes assentamentos coletivos de alvenaria, sem acesso ao rio e seus modos de vida tradicionais e sem equipamentos básicos de segurança e transporte público.
Etnocídio indígena
A questão indígena é curiosa: governo e empreiteira, que muitas vezes parecem difíceis de serem separados na questão Belo Monte, adotaram a estratégia de negarem que aldeias indígenas seriam afetadas. O presidente da Norte Energia S.A. alega que “nem um centímetro de área indígena foi afetado”, quando a expressão correta seria: nenhum centímetro foi afogado.
A empresa traçou um plano para abafar as vozes das lideranças se utilizando de uma interpretação deliberadamente equivocada do Plano Emergencial. Diante da obrigatoriedade de investir R$ 30 mil reais em cada aldeia por 24 meses no pico das obras, optou pelo caminho fácil de enviar mercadorias e comida industrializada, destruindo a organização social e a produção de alimentos locais e gerando consequências catastróficas, que a procuradora da República em Altamira classificou como “etnocídio indígena”.
Resumidamente, ações desse tipo são emergenciais e visam garantir a manutenção da integridade das aldeias durante a fase de construção da obra, com a ideia de que, quando a usina ficar pronta e o fluxo de pessoas acabar, os índios tenham sido o menos impactados possível no processo. Mas a necessidade de negar tais impactos pelo governo e pelo empreendedor criou essa aberração, que acabou tornando a questão calamitosa. Mais da metade das condicionantes do componente indígena acordadas inicialmente apresentam pendências ou não foram atendidas.
“A empresa traçou um plano para abafar as vozes das lideranças indígenas se utilizando de uma interpretação deliberadamente equivocada do Plano Emergencial” |
Reflexos ainda mais graves chegarão
O maior impacto social ainda está por vir, com a “morte” em médio prazo de um grande trecho do rio e as incertezas do que irá ocorrer após a redução de até 80% da vazão na volta grande do Xingu (área de duas Terras Indígenas), cuja água será desviada para as turbinas da usina. Indígenas e ribeirinhos, em seus modos de vida, têm uma forte relação de proximidade e dependência com o rio e os recursos naturais associados.
O licenciamento ambiental não fornece subsídio para o correto prognóstico dos danos ao rio, mas alguns são velhos conhecidos. De forma geral, antes da formação do reservatório os impactos são menos severos, quando é prevista uma pequena alteração de qualidade de água do rio, o afugentamento de espécies de peixes pelas obras e a supressão de fragmentos de mata para dar lugar aos reservatórios. Tais impactos, que na Mata Atlântica poderiam ser desastrosos, não chegam a ser tão sérios na Amazônia. O fato de a usina ser a fio d’água reduz boa parte da área ocupada pelos reservatórios e evita o desmatamento de uma grande área de floresta, mas os impactos sobre o rio permanecem. É a partir do momento em que a barragem for fechada e o reservatório começar a se encher que a situação se tornará realmente dramática.
A interrupção do fluxo hídrico leva a uma completa transformação ecológica dentro do rio. As corredeiras, com grande oxigenação e velocidade da água e uma infinidade de microambientes associados – fundamentais para a alta diversidade ecológica -, são rapidamente substituídas por um ambiente mais uniforme, com temperatura estratificada, água parada e acúmulo de poluentes, característicos de lagos. Uma analogia comum para esse fenômeno é que um lago está para os peixes de corredeira (e a volta grande do Xingu é famosa mundialmente por sua riqueza nestas criaturas) como uma pastagem está para um macaco arborícola.
Várias espécies de peixes sequer conseguem atingir a maturidade sexual se não forem forçados a nadar contra a corrente, e de fato a expectativa é de extinção local de várias delas, todas adaptadas à alta velocidade da água no trecho barrado. No caso das espécies endêmicas, esta extinção local pode significar a extinção completa. Mesmo para as espécies que conseguem sobreviver no ambiente lêntico, surgem duas novas situações:
1) a primeira é que a grande maioria dos indivíduos não consegue passar a barragem de jusante para montante mesmo com mecanismos de transposição, e a taxa reprodutiva das espécies cai a níveis tão baixos que sua manutenção se torna inviável;
2) a segunda é que as populações a montante e a jusante passam a viver isoladas pela barragem, o que interrompe a troca de genes e leva à diminuição da resistência a variações ambientais e aumento dos riscos de extinção.
Tudo isso é ainda mais importante para os animais maiores e de topo de cadeia, grandes migradores e fundamentais para o equilíbrio ecológico e a “saúde” do rio. Assim, quando se trata de hidrelétricas desse porte em rios desse porte, não existe estratégia de mitigação ou seriedade no licenciamento ambiental que deem jeito: a escolha entre fazer ou não fazer o empreendimento se dá a partir do pressuposto de que o rio irá perder as espécies mais importantes em longo prazo. E por mais importantes, entenda-se aquelas espécies cruciais ao equilíbrio ecológico e as mais valiosas para os pescadores e as populações locais.
Assim, ficam comprometidas a geração de serviços ambientais, o equilíbrio ecológico e a integridade da qualidade da água do rio. É nessa questão que também reside o grande drama dos povos do Xingu com Belo Monte: perda ou substituição das principais espécies de peixes por outras de menor valor, restrição do seu acesso à água e aos recursos e perda da qualidade de água em uma larga faixa do rio, do qual estas pessoas dependem/dependiam para sua sobrevivência e para manutenção dos seus modos de vida.
É um fato científico que o rio Xingu deixará de ser o rio Xingu, em suas características físicas, biológicas e antropológicas na área de influência da Usina de Belo Monte. E é sempre válida a lembrança de que nenhum desses impactos tem os custos contabilizados na já absurda fatura de Belo Monte.
IHU On-Line – De que modo você avalia os processos de licenciamento da Usina de Belo Monte, tendo em vista que uma série de condicionantes não foram cumpridas?
André Aroeira Pacheco - Não houve licenciamento ambiental em Belo Monte. É tudo ilegal. Foi adiante em um grande teatro, processo essencialmente político e muito pouco técnico, tendo como protagonista o governo federal se confundindo em seus interesses de licenciador, financiador e empreendedor.
O licenciamento político começou logo após o anúncio da obra, fruto do interesse pessoal de Dilma e Lula na época, e foi um dos motivos que levou à saída da então ministra do Meio Ambiente Marina Silva, desgastada pelas irregularidades das UHEs anteriores. O clímax foi atingido na sucessiva troca de presidentes do Ibama, que culminou com o terceiro deles, Américo Ribeiro Tunes, aceitando entrar de maneira gloriosa para a história da burocracia ambiental ao emitir uma licença não prevista por nenhuma lei brasileira - a licença parcial.
Tornou-se quase um detalhe a liberação da licença prévia por seus antecessores, mesmo com a precariedade dos levantamentos de impactos do projeto e contra a opinião dos servidores. A obra seguiu, sempre acompanhada de perto pela Ministra de Minas e Energia, depois da Casa Civil e finalmente Presidente da República, Dilma Rousseff, que desde o início avisou [3] que Belo Monte sairia, e “sairia no menor horizonte temporal possível”. Além dos técnicos, o governo também ignorou estudos independentes [1], [4] que atestavam a inviabilidade socioambiental e econômica da obra, além da opinião pública nacional e internacional.
Diante do teatro de licenças fingidas e discursos políticos nauseantes, ficou por conta do judiciário a tarefa de cobrar o mínimo de seriedade do processo, mesmo após o enfraquecimento deliberado dos órgãos de controle pelo governo federal - Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio, Fundação Nacional do Índio - Funai e Defensoria Pública foram inexplicavelmente afetados por ações do governo no período mais crítico da obra.
Já ao fim de 2012 a Norte Energia somava quase 50 ações judiciais. Apesar disso, um artifício jurídico antidemocrático e amplamente denunciado, a suspensão de segurança, tomado em estância única e embasado em questões políticas ao invés de jurídicas, permitiu a suspensão de todas as decisões contrárias à Norte Energia com o objetivo de garantir “ordem, saúde, segurança e economia públicas” [5], [6]. Impediu-se assim que as irregularidades paralisassem os ritos de leilão, licenciamento e financiamento da obra. Belo Monte também é imune ao poder Judiciário.
Em 23 de novembro de 2015, o golpe político derradeiro: Marilene Ramos, a atual presidente do Ibama, assinou a liberação da licença de operação mesmo sem o cumprimento das condicionantes que haviam permanecido após o longo processo de negação, ocultação e postergação. Sinceramente, não havia como Belo Monte ser construída de outra forma, dada a extensão de seus impactos. É uma obra integralmente forçada pelos altos escalões do governo federal, em especial de Lula e de Dilma, e a eles deve ser creditada toda a responsabilidade.
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“Não houve licenciamento ambiental em Belo Monte. É tudo ilegal” |
IHU On-Line – Dessas condicionantes ainda não cumpridas, quais você destacaria como mais preocupantes e nocivas aos povos indígenas, às populações ribeirinhas da região e ao meio ambiente?
André Aroeira Pacheco - Sem dúvidas, durante as remoções, as violações dos direitos das populações ribeirinhas, que viviam com relativa fartura em sua simplicidade e tiveram a reprodução de seu modo de vida impossibilitada; e a citada condução dos procedimentos de mitigação dos impactos em relação aos indígenas. Em termos ambientais, diante da falta de alternativas à extinção dos peixes, talvez a não finalização do sistema de tratamento de esgoto de Altamira, que seguirá sendo jogado no rio e que agora será barrado e concentrado no lago da hidrelétrica, contaminando ainda mais a água.
Mas nunca podemos esquecer que isto é o que sobrou das condicionantes que deveriam ser implementadas desde o início. Assim, o grande problema, em minha opinião, ocorreu lá atrás, na emissão da licença parcial, que abriu caminho para a instalação dos canteiros de obra e o início da construção da usina. Este fato praticamente consolidou a ideia de que a Belo Monte ia sair mesmo com a precariedade ultrajante dos estudos apresentados pela Norte Energia e a insistente insubordinação aos ritos do licenciamento. Este era o momento mais delicado do processo e não por acaso demandou forte interferência política, consolidada nas várias trocas de comando do Ibama.
A empresa tinha e tem desde então a certeza de que não precisava se dedicar aos estudos de impacto ambiental, pois o governo é um poderoso aliado - e de fato não precisou. Desde a licença parcial a luta em Belo Monte passou a ser para minimizar os danos que já são inevitáveis, e nem isso sabemos se poderemos alcançar. A empresa adotou o procedimento de contestar judicialmente muitas das condicionantes e simplesmente não as executa até que exista uma ordem judicial para tal. O licenciamento ambiental de Belo Monte ficou a cargo do poder Judiciário.
IHU On-Line – Que reflexos futuros podem acarretar a exploração indiscriminada dos rios amazônicos a partir da construção de empreendimentos como as usinas hidrelétricas?
André Aroeira Pacheco - Essa é a grande pergunta sobre a questão das hidrelétricas. Como falado anteriormente, os impactos sobre a comunidade de peixes, a qualidade de água e os serviços ambientais são irreversíveis em muitos níveis. Itaipu carrega o fardo de ter enterrado um dos maiores monumentos naturais que o Brasil um dia teve, as Sete Quedas, no Parque Nacional de mesmo nome. É algo que não volta mais. Poderemos perder o bagre do qual o Lula uma vez riu, no rio Madeira [7]; e perderemos alguns dos trechos de maior biodiversidade do mundo nas hidrelétricas do rio Tapajós, o mais bonito da Amazônia e o próximo da fila de Dilma.
Os prejuízos são praticamente incalculáveis atualmente, mas já sabemos pelos trabalhos do professor Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - INPA, que os lagos das hidrelétricas podem emitir mais gases de efeito estufa do que as termelétricas [8].
Já sabemos que a perda de qualidade de água e a interrupção do fluxo hídrico regular fragiliza inúmeras espécies de peixes e mamíferos aquáticos já ameaçados por sobrecaça/pesca, perda de hábitat e poluição, podendo levar muitos animais à extinção. Já sabemos também que algumas espécies deverão ser efetivamente extintas, como o acari-zebra e o pacu-capivara[1] da volta grande do Xingu.
Já sabemos que a alteração da vazão hídrica e da qualidade da água prejudicará enormes trechos de floresta a jusante das barragens, pela escassez de água e pela homogeneização do fluxo dos rios. Grandes regiões de várzeas e igapós, as florestas alagadas ao longo dos rios amazônicos, que por alguns milhões de anos evoluíram e se adaptaram ao ciclo anual de seca e cheia, serão afetadas pela irregularidade da vazão após as barragens e terão a sua integridade e papel ecológico comprometidos.
“Os impactos sobre a comunidade de peixes, a qualidade de água e os serviços ambientais são irreversíveis em muitos níveis” |
O rio Amazonas, por exemplo, chega a alagar florestas distantes em mais de 100 quilômetros de seu leito regular, aumentando o nível da água em algumas dezenas de metros durante 3,4 meses por ano. A floresta fica literalmente embaixo d’água e depende disso para renovar os nutrientes, dispersar sementes e viabilizar as migrações animais. Ninguém sabe o que vai acontecer com estes ecossistemas quando o Operador Nacional do Sistema - ONS passar a decidir quantos litros de água devem correr no leito do rio em cada momento, a partir de gráficos de demanda energética em seu monitor, 3 mil km distante da Amazônia.
Falando mais claramente, o fluxo hídrico natural destes rios passa a ser dependente de questões que nada têm a ver com a ecologia da floresta amazônica, como um apagão no Sudeste ou um novo parque industrial construído no Sul. Mais preocupante ainda é a tendência de se construir usinas em sequência, como no Madeira e agora no Tapajós, cujo licenciamento deveria ser feito conjuntamente, mas é dividido em várias partes para evitar ter que tratar destas questões, que custam tempo e dinheiro. Tudo isso é muito incerto e tem possibilidade de se tornar um desastre ecológico de grandes proporções, e o princípio da precaução deveria ser adotado nesse momento. Se não sabemos, não fazemos.
Daqui a 50, 100 anos, olharemos para trás com incredulidade para constatar o quão insanas foram as primeiras décadas deste século, em que comprometemos alguns dos maiores rios do mundo, com a sua cada vez mais valiosa biodiversidade associada, em troca de uma fonte energética transitória que já dava sinais claros de que seria obsoleta rapidamente. Pior ainda, fizemos isso mesmo tendo ciência do trade-off negativo envolvido e fraudando os procedimentos de licenciamento ambiental. Qualquer decisão que tomemos agora, seja em relação ao Xingu, ou aos outros rios amazônicos, precisa considerar o peso de tal perspectiva.
IHU On-Line – Como você avalia a meta de redução de emissões assumida pelo Brasil na COP 21 diante de todos os problemas graves com licenciamento para exploração de minérios e construção de usinas hidrelétricas no país, e a aposta do governo em incluir fontes renováveis em sua matriz energética?
André Aroeira Pacheco - Belo Monte deu a mais clara demonstração de como o Brasil atualmente conduz suas questões sociais e ambientais, com muito marketing e muito discurso político e pouca transparência e conhecimento científico. Calejado por esse modus operandi, creio que não é absurdo desconfiar das medidas que serão tomadas. Enquanto se discutia em Paris uma forma de combate ao aquecimento global, discutia-se no Congresso Nacional a flexibilização de licenciamentos ambientais e a PEC 215, que na prática coloca em risco os indígenas de todo o país.
Não tenho dúvidas que, no somatório dos impactos ambientais e sociais, e pensando em longo prazo, os investimentos energéticos deveriam ser direcionados para a eficiência nas linhas de transmissão, para a racionalização do consumo através de campanhas e para o investimento em energia eólica e solar, principalmente em sistemas descentralizados de produção (produção doméstica) e incentivos ao estabelecimento de mercados que irão baratear e aumentar a eficiência dos sistemas em longo prazo.
Ainda assim, temos que nos preocupar com uma questão negligenciada neste debate: os gases de efeito estufa são sim um problema sério e urgente, mas a solução para isso não pode ser dissociada de uma busca mais ampla pela racionalidade ambiental na tomada de decisões. Fechar termelétricas e construir hidrelétricas talvez nos dê algumas toneladas de carbono de crédito na conta final, mas a extinção de grande parte do rio Xingu compensa o corte de emissões? Em outras palavras: uma hidrelétrica é tão melhor que uma termelétrica, cujos impactos na poluição são grandes, mas que no fim das contas não matam nenhum grande rio?
Isso precisa ser discutido, ou vamos acabar sacrificando uns ativos ambientais para tentar recuperar os outros. Quando o governo fala de fontes renováveis já vem a primeira preocupação: este é um termo dúbio e precisamos ter cuidado quando o usamos para falar de hidrelétricas. Primeiro porque não é um tipo de energia exatamente limpa como o termo renovável geralmente leva a pensar e segundo porque atualmente é difícil pensar na água como recurso renovável, dada a atual crise hídrica que passamos e a grave redução de vazão de vários grandes rios brasileiros, que afeta a geração energética e o abastecimento hídrico. Se o plano é reduzir emissões com o aumento da participação já incrivelmente alta das hidrelétricas na matriz, tudo começa errado.
O mesmo raciocínio se aplica quando o governo também propõe o aumento do uso de biocombustíveis na matriz, cuja cadeia produtiva apresenta imensos impactos sociais e ambientais. Quer dizer, vamos reduzir essas emissões a que custo? O desmatamento do Cerrado e da Mata Atlântica para as monoculturas de soja e etanol não vão entrar nessa conta?
Existem muitas lacunas que ainda não foram esclarecidas em relação às metas brasileiras: a “redução do desmatamento ilegal” deixa implícito que há uma margem para a manutenção de um “desmatamento legal”, cujas possibilidades foram ampliadas no novo Código Florestal, o que pode ser desastroso para os biomas brasileiros. Os programas de reflorestamento do “nosso” plano também não esclarecem exatamente o que se entende por reflorestamento, podem se referir a monoculturas de eucalipto, por exemplo, ao invés de matas nativas. Tudo isso precisa ser muito bem discutido, e mais importante, com transparência e com democracia.
“Belo Monte deu a mais clara demonstração de como o Brasil atualmente conduz suas questões sociais e ambientais, com muito marketing e muito discurso político e pouca transparência e conhecimento científico” |
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
André Aroeira Pacheco - Gostaria de alertar que tudo que foi dito também é válido para as demais grandes obras do país, que passam pelos mesmos problemas de concepção, delineamento, financiamento e execução, incluindo as hidrelétricas que estão começando a ser “licenciadas” no rio Tapajós. O licenciamento ambiental no Brasil precisa ser levado a sério.
É urgente que se aumente o nível de conhecimento científico na tomada de decisão. A retalhação do Código Florestal, Belo Monte, os projetos de mineração e hidrelétricas na Amazônia, tudo isso precisa de uma grande dose de racionalidade e de imunidade às interferências políticas.
Não conheço um político com bagagem científica para opinar nestas questões, embora todos eles queiram dar pitaco nas legislações e nos procedimentos. Precisamos nos insurgir contra isso.
Por Leslie Chaves
Referências:
[1] - www.socioambiental.org/banco_imagens/pdfs/Belo_Monte_Painel_especialistas_EIA.pdf
[2] - http://www.riosvivos.org.br/arquivos/site_noticias_403884930.pdf
[3] - https://www.youtube.com/watch?v=62Q9BYPHYzA
[4] - http://iieb.org.br/files/1813/5215/3882/public_out_belo_monte.pdf.pdf
[5] - http://www.socioambiental.org/sites/blog.socioambiental.org/files/dossie-belo-monte-site.pdf
[6] - http://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-xingu/porque-a-justica-nao-consegue-decidir-sobre-o-caso-de-belo-monte
[7] - http://www.oeco.org.br/reportagens/1920-oeco_21677/
[8] - http://philip.inpa.gov.br/publ_livres/Press/2009/hidreletricas%20fabridas%20de%20metano-Humaitas-fev-2009.pdf
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Usina de Belo monte: “O licenciamento ambiental no Brasil precisa ser levado a sério”. Entrevista especial com André Aroeira Pacheco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU