23 Mai 2012
“Investir em energia nuclear é a negação total do desenvolvimento sustentável, porque o desenvolvimento sustentável permite atender às necessidades da geração atual, sem prejudicar a possibilidade das gerações futuras de fazê-lo”, adverte o engenheiro nuclear.
Confira a entrevista.
Para ampliar a produção de energia no Brasil, não é necessário desenvolver todos os recursos hidráulicos e eólicos existentes. Se o país “aproveitar metade do potencial hidráulico e eólico identificados hoje, daria para dobrar o consumo brasileiro tendo acesso a um padrão de consumo semelhante ao europeu, italiano e espanhol ou até o padrão alemão e inglês”, assegura o engenheiro nuclear Ildo Sauer, em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone.
Crítico da maneira como os governos Lula e Dilma conduziram a questão energética nos últimos anos, Sauer afirma que a reestruturação do setor não foi feita porque o governo “não fez o dever de casa”, mas “lançou mão do que tinha na prateleira: um projeto feito no governo do FHC, de energia elétrica no rio Madeira, e Belo Monte, que foi um projeto gestado no tempo da ditadura, desenvolvido naquele tempo visando a exportação de alumínio”.
Na entrevista a seguir, o engenheiro explica os equívocos da atual matriz energética, apresenta a proposta da criação de uma empresa estatal para gerenciar a energia e enfatiza a inviabilidade de o país investir em energia nuclear. “As outras opções que estão disponíveis custarão a metade desse valor, sem deixar como herança toneladas de combustíveis irradiados, rejeitos de baixa radiatividade, expondo a região e a população a riscos”. E dispara: “A minha proposta é simples: abandonar o projeto de Angra III, poupar os 10 bilhões de reais, investir em energia alternativa na combinação das que citei antes: hidráulica, eólica, biomassa, complementação térmica. Esse modelo custaria 5 bilhões de reais”.
Ildo Sauer (foto abaixo) é graduado em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre em Engenharia Nuclear e Planejamento Energético pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e doutor em Engenharia Nuclear pelo Massachusetts Institute of Technology. É professor titular da Universidade de São Paulo – USP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O governo tem ampliado a construção de hidrelétricas sob a justificativa de que poderá faltar energia no país futuramente. O risco existe?
Ildo Sauer – A economia brasileira e a população estão ainda em crescimento. Aí há uma nuança muito importante que precisa ficar clara. Efetivamente ainda não se sabe, em escala mundial, qual é o padrão de consumo e produção necessários para atender às necessidades das pessoas. Isso depende de como a sociedade está organizada, que modo de produção ela utiliza para atender às suas necessidades, como organiza a produção, e como reparte o produto entre os cidadãos. É evidente que, concomitantemente com a Revolução Industrial, a estrutura produtiva se concentrou em fábricas, indústrias e sistemas urbanos, que trouxeram junto consigo o sistema capitalista de produção, que organiza e intensifica a produção não com o objetivo de atender necessidades, mas de aumentar a acumulação ou criar mercadorias que têm um curso de circulação. Quando fecha o circuito entre produção e consumo, produz-se mais excedente econômico para quem controla a produção e os meios de produção. Então, essa contradição existe e está presente também na sociedade brasileira.
Energia para setor industrial
O Brasil evidentemente é uma sociedade de mercado capitalista. Então, não necessariamente a produção incremental de energia para permitir a ampliação da produção econômica e do sistema urbano industrial irá atender às necessidades humanas. Pelo contrário, irá incrementar a produção e o ganho empresarial. O que sobrar será destinado aos cidadãos via salário, etc. Nesse sentido, uma sociedade que está em desenvolvimento e crescimento populacional, se quiser remover suas assimetrias, precisa incrementar a produção de energia e de bens e serviços, mas também precisa encontrar maneiras de distribuir melhor o que é produzido. Essa segunda parte (distribuir melhor o que é produzido) é uma questão política social, que está no limbo, digamos assim, porque o dogma do crescimento permanente parece ser a única forma possível de atender às necessidades sociais de todo mundo.
No Brasil, independentemente do regime social de produção existente, é desejável incrementar a capacidade de produzir energia como forma de alimentar o sistema econômico e social. Um país como o Brasil detém recursos naturais em grande escala para permitir o crescimento da oferta de energia em geral, e elétrica em particular.
IHU On-Line – É possível aumentar a produção de energia diversificando a matriz energética, ou o Brasil ainda é muito refém das hidrelétricas? Por que, se existe a possibilidade de diversificar a matriz, o país insiste no modelo hidráulico?
Ildo Sauer – Na área elétrica, o Brasil dispõe de um potencial eólico e hidráulico enorme. No caso do potencial hidráulico, cerca de 256 mil megawatts, dos quais somente 100 mil já estão desenvolvidos ou estão em desenvolvimento. Há também um potencial eólico que tem crescido rapidamente segundo as avaliações. Em 2001, a estimativa oficial para a tecnologia disponível de velocidades médias, principalmente no Nordeste e no Sul, era da ordem de 143 mil megawatts. Agora, com as torres na ordem de 100 a 150 metros de altura, esse potencial já é estimado em 300 mil megawatts, superior ao próprio hidráulico. O consumo médio brasileiro hoje dá 2.500 quilowatts/hora por ano, média por habitante. Na Espanha e na Itália o consumo é dobrado, em média 5.000 quilowatts/hora por ano; na Inglaterra e na Alemanha, é três vezes isso, ou seja, 7.500 quilowatts/hora por ano. Nos Estados Unidos é muito maior.
Se o Brasil aproveitar metade do potencial hidráulico e eólico identificados hoje, daria para dobrar o consumo brasileiro tendo acesso a um padrão de consumo semelhante ao europeu, italiano e espanhol ou até o padrão alemão e inglês. Não é necessário para isso desenvolver todos os recursos hidráulicos, nem todos os recursos eólicos, porque muitos deles não têm condições de serem desenvolvidos por razões sociais ou por questões ambientais.
IHU On-Line – Por que isso não acontece na prática? Os motivos são políticos?
Ildo Sauer – Além desses recursos de grande monta, que são as usinas de grande porte, as usinas eólicas apenas recentemente passaram a ser aceitas como importantes em razão do desenvolvimento precursor na Europa, nos Estados Unidos e também na China. Nos últimos três ou quatro anos, também no Brasil se materializou essa hipótese, que foi objeto de muitos estudos.
Para diversificar a matriz energética, o Brasil ainda pode investir nas pequenas centrais hidrelétricas, usar os resíduos de biomassa, especialmente o bagaço de cana-de-açúcar, a casca de arroz e outros que podem ser usados para gerar cerca de 10 a 15 mil megawatts. Também existe a possibilidade de usar combustíveis que são queimados para gerar calor e vapor na área de serviços e na área industrial, gerando enorme potencial da ordem de 10 a 20 mil megawatts.
Para um país que tem essa carteira de recursos, é possível escolher uma trajetória que melhor equilibrasse os atributos. Infelizmente, até agora o único atributo analisado historicamente pelo governo é o interesse econômico a partir da perspectiva do empreendedor. Foi assim que aconteceu no planejamento, antigamente, quando haviam os chamados engenheiros economistas para o planejamento – eles eram muito mais ortodoxos. Esse critério foi muito utilizado nos últimos anos para atender à pressão dos grupos econômicos e empreendedores, especialmente nos governos Lula e Dilma. De forma que aquele que tem o lobby mais forte acaba influenciando o “lobbynho” e satisfazendo o “lobbão”, acabando por impor sua trajetória. Foi isso que aconteceu em vários leilões. O governo, em contra partida, anuncia que isso é feito para criar o desenvolvimento tecnológico em benefício de indução que vai ter resultados positivos no futuro para a sociedade brasileira. Mas nem sempre é assim.
A reorganização energética
O fato é que, com essa carteira de recursos, em 2001 e 2002, depois do apagão e do racionamento no governo Fernando Henrique Cardoso, os técnicos que assessoraram inclusive o então candidato Lula, diziam que era possível reorganizar a forma de planejar a produção de energia no país. Uma forma seria reavaliar todo o potencial hidráulico brasileiro, cujos estudos são da década de 1950, e foram aprofundados pelo sistema Eletrobrás nas décadas de 1960, 1970 e 1980 parcialmente, e depois foram abandonados.
Em 2002, dizíamos que a solução para o Brasil seria mapear os recursos hidráulicos, reavaliar os inventários feitos e definir três atributos para cada aproveitamento possível: o técnico-econômico, o ambiental e o social. Seria, então, necessário fazer os estudos ambientais aprofundados em cada região, levando em conta os biomas, os ecossistemas. Era preciso separar disso – embora de forma integrada – os estudos sociais, que são diferentes, são complementares, mas que têm uma natureza própria. Tendo esses três atributos, muitos dos projetos seriam descartados, porque eles seriam barreiras intransponíveis, ou do ponto de vista técnico-econômico, ou do ponto de vista social, ou ainda do ponto de vista ambiental. Aqueles projetos que passassem por esses atributos seriam ordenados conforme um seguro de mérito, e os melhores seriam feitos por primeiro.
Por que isso não foi feito? Porque houve a sobra de energia do racionamento de 2001/2002. Os governos Lula e Dilma ficaram deitados em berço esplêndido achando que haveria sobra de energia. Acontece que essa sobra de energia se esfumaçou quando a economia começou a crescer em 2005. Então, foram feitos novos leilões. Os vencedores do leilão foram usinas a carvão importado, usinas a óleo, óleo diesel, óleo combustível, como usinas a gás, entre outras. Isso fez com que, quando houve a crítica dos movimentos sociais e ambientais a esses projetos, o governo – como não fez o dever de casa – lançou mão do que tinha na prateleira: um projeto feito no governo FHC, de energia elétrica no rio Madeira e em Belo Monte, que foi um projeto gestado no tempo da ditadura, desenvolvido naquele tempo visando à exportação de alumínio, ou seja, energia empacotada sob essas commodities.
Reprodução do modelo energético
Então, rasgaram-se todas as análises e avaliações. Jogou-se tudo no lixo e voltou-se a repetir o que era antigamente. O governo Lula usou o seu prestígio e impôs esses projetos “goela a baixo” dos camponeses e dos indígenas. Costumo repetir que, aparentemente, o governo democrático popular tomou emprestada a espada dos militares para cravá-la nos peitos dos camponeses e índios, e impor projetos que têm atributos naturais favoráveis, no caso de Belo Monte, mas não deu tempo ao processo político social, e aos estudos ambientais, os quais permitiriam desenvolver ou descartar os projetos hidrelétricos.
Recursos naturais não faltam. No entanto, as escolhas feitas não têm correspondido a essa qualidade de recursos por causa do planejamento e da gestão inadequados.
IHU On-Line – Como foram elaborados os contratos de concessão de energia no governo Lula? Que revisões deveriam ter sido feitas nos contratos de concessões do setor elétrico?
Ildo Sauer – Um dos riscos que levaram ao racionamento foi a ausência de contratos de longo prazo. Então, adotou-se a metodologia de estabelecer contratos de duração de 15 anos para usinas termoelétricas, 30 anos para usinas hidrelétricas, com antecedência mínima de três a cinco anos, que é o prazo necessário para construir os projetos. Isso foi feito só para o mercado cativo. O mercado livre, que responde hoje por 1/4 da energia brasileira, tem se beneficiado de aparentes sobras, não tem contratado e tem especulado com o excedente de água que existe.
O governo criou um mecanismo de subterfúgio pelo qual uma figura de mérito é utilizada para orientar a operação do sistema hidrelétrico e hidrotérmico, operação que serve apenas para dizer se a água de hoje deve ser poupada queimando-se combustível ou utilizada. Por fim, converteram isso no preço. Esse preço ironicamente também é um paradoxo, pois determinaram que ele é um mercado de contração livre. Esse setor de mercado livre é composto por menos de mil consumidores, que são responsáveis por 1/4 da energia, os quais, na maior parte do tempo, compram energia a mais ou menos 20% do custo real. É por isso que o mercado consegue receber mais energia do que mandar. Nesses casos, o valor da água e do custo parcial da operação é muito baixo, e este mercado dito livre, que não é livre, privilegia um grupo muito pequeno de consumidores de alto poder econômico e de alta influência política. Esse setor está organizado em associações nacionais que, então, impõe uma assimetria enorme e faz com que o mercado regulado brasileiro, que atende a mais de 50 milhões de consumidores – mais de 75% do consumo –, seja penalizado com as tarifas elétricas mais caras do mundo.
Infelizmente o setor de energia tem esse condão de ser beneficiado e, ao mesmo tempo, maleficiado pelo que se chama de rendas, setores onde com menos capital de trabalho se consegue obter um produto e ter maior valor econômico. E esse excedente econômico é disputado por todos aqueles que têm poder de barganha no seio do governo. E o governo, nas últimas três décadas, têm sido muito generoso com aqueles que conseguem se organizar, fazer pressão e impor suas soluções.
Governo democrático
Como a população não participa da discussão, o debate na imprensa é muito precário, enviesado, estigmatizado, porque aqueles que criticam esse modelo são marginalizados, como aconteceu nos debates do Congresso Nacional. Na ocasião da CPI das tarifas elétricas, Pinguelli Rosa, Roberto Araújo e eu mostramos o erro de cálculo do custo da energia para os deputados, e os parlamentares do governo disseram que somos professores ressentidos.
Então, o governo democrático popular faz acertos entre os grandes grupos econômicos. Por isso é ironia dizer que esse mercado de energia seja livre. Se ele fosse livre, todos teriam acesso. Se a energia fosse vendida a preço tão baixo, ela deveria primeiramente ser vendida ao mercado regulado, à população que é na verdade dona daqueles recursos naturais.
IHU On-Line – O senhor propõe a criação de uma estatal, a Hidrobrás, para resolver essa questão mercadológica do custo da energia?
Ildo Sauer – Proponho a criação da Hidrobrás por outra questão. A Constituição brasileira determina, em seu artigo 6º, que todo brasileiro tem direitos sociais. O primeiro deles é a educação, o segundo é a saúde, a moradia, a alimentação e outras coisas mais. O artigo 20, diz que pertence ao povo brasileiro todos os recursos naturais, incluindo os potenciais hidráulicos, os recursos do subsolo, como os minérios de ferro, ouro e as jazidas de petróleo e gás natural. Mas muitas usinas foram construídas desde a década de 1940, 1950 para cá com contrato de concessão. Diz a lei também que, quando a concessão vence, os recursos retornam ao Tesouro Nacional.
Depois de muitas prorrogações, como as feitas no governo Fernando Henrique Cardoso, quando houve uma assimetria, aquelas usinas que foram privatizadas tiveram a sua concessão prorrogada, ampliada para 35 anos, com possibilidade de estender por mais 20. Isso foi feito para efetivar a privatização e a fruição privada dos benefícios do excedente econômico da renda hidráulica, resultando em aproveitamento de recursos naturais com características muito especiais que, com baixo custo, permitem gerar energia de alto valor. E as demais usinas estatais só foram prorrogadas por até 20 anos.
Vencimento de concessões
Agora essas concessões estão vencendo. São cerca de 22 mil megawatts de potência instaladas, correspondendo a 20% da capacidade brasileira de gerar energia. Além disso, para aqueles investimentos feitos, que não foram inteiramente amortizados, existe a reserva global de reversão criada em 1957, e que todo ano o pessoal paga cerca de 2,5% do valor dos investimentos anuais amortizados para fazer um fundo. O governo tem utilizado esse fundo para muitas coisas: para o Programa Luz para Todos, etc. Mas ainda resta mais de 15 bilhões de reais.
Portanto, se um daqueles projetos de mais de 22 mil megawatts ainda não tiver recuperado os seus investimentos, esse dinheiro deveria ser usado para isso. Significa, então, que nos próximos anos, de 2013 a 2018, cerca de 20% da capacidade brasileira das usinas melhor localizadas, próximas ao centro de consumo – as primeiras que foram construídas no Brasil –, estarão em mãos de empresas estatais, que são somente parcialmente públicas. Essas usinas produzem cerca de 100 milhões de megawatts/hora por ano de energia. Se o preço médio da energia for de 100 reais, elas produzirão na ordem de 10 bilhões de reais por ano. Se usarmos essas usinas, e vendêssemos energia para o mercado cativo a um preço da ordem de 70% ou 80% do valor, teríamos uma redução na previsão futura da energia nova, muito embora no passado o governo tenha utilizado as estatais para vender energia a um preço menor a fim de permitir que os investidores privados fizessem usinas térmicas e de vários tipos a um preço mais elevado.
Proposta
Minha proposta é muito simples: se os primeiros donos de todos os recursos nacionais são os brasileiros, e se dentro da nação brasileira há um conjunto de cidadãos que ainda não teve acesso aos direitos sociais básicos, como a educação pública, a saúde pública, proponho que cerca de 70% ou 80% da renda hidráulica – algo em torno de 10 bilhões de reais – seja utilizado com os consumidores cativos, e que cerca de 6 a 7 bilhões por ano sejam destinados para um fundo público para financiar a educação e a saúde pública. Essa seria uma forma de retribuir aos brasileiros que são, desde a origem, os donos dos potenciais hidráulicos. Muitos deles nunca tiveram acesso à iluminação pública, à energia elétrica, como até hoje. Apesar de muita propaganda e das obras do Programa Luz para Todos, cerca de 2,5 milhões de brasileiros estão às escuras. Em geral, são aqueles que vivem nas periferias urbanas e rurais, que nunca se beneficiaram de nada e que, mais uma vez, estão sendo excluídos, porque há uma enorme disputa por essa fatia do mercado.
O empresariado de grande porte está dizendo que a energia elétrica brasileira é muito cara. Então, eles querem que a energia que, conforme a legislação, irá pertencer ao governo brasileiro a partir de 2013, 2014, 2015, 2016 e 2017, algo em torno de 20% da energia nacional, seja utilizado para subsidiar a produção, sem reduzir o preço das mercadorias que vão servir à população, apenas para aumentar os lucros ou o que eles chamam de competitividade. Há uma disputa em torno dos benefícios que a apropriação dos recursos naturais permite e, em geral, quem ganha essa disputa têm sido os que têm maior poder de pressão econômica.
IHU On-Line – Diante desse quadro, por que ainda se propõe a construção de usinas nucleares?
Ildo Sauer – Há muitos anos, em função do quadro energético que descrevi, percebi que a energia nuclear, a ciência e a técnica são extremamente importantes para desenvolver uma sociedade mais avançada, que possa se beneficiar desse recurso, especialmente nas áreas da medicina, agricultura, diagnóstico, terapia, etc. No entanto, o caso brasileiro não precisa do urânio para fazer energia elétrica, porque o custo do urânio é muito superior aos demais recursos.
Como disse, em 2042 ou 2043, o Brasil poderá dobrar o consumo atual usando uma parte dos recursos disponíveis. Não há necessidade de fazer usinas nucleares que custem mais de 10 bilhões, como Angra III. As outras opções que estão disponíveis custarão a metade desse valor, sem deixar como herança toneladas de combustíveis irradiados, rejeitos de baixa radiatividade, expondo a região e a população a riscos. No caso da energia nuclear, a possibilidade do acidente não é desprezível, como se revelou em Fukushima. Sempre algo que não estava previsto acaba acontecendo.
IHU On-Line – Por que o governo insiste em retomar a construção de Angra III?
Ildo Sauer – No caso particular de Angra III, retomaram a obra por pressão do lobby. Por isso dizem que o Brasil precisava ampliar a matriz energética para ter mais capacidade. Ampliar a capacidade tecnológica significa projetar, construir e operar reatores. Proponho que se faça isto: um reator de alto fluxo de nêutrons para produzir radioisótopo, que são necessários para fazer imagem do cérebro, fazer imagens do coração. A área nuclear pode dar uma contribuição para a medicina, biologia e agricultura.
A minha proposta é simples: abandonar o projeto de Angra III, poupar os 10 bilhões de reais, investir em energia alternativa na combinação das que citei antes: hidráulica, eólica, biomassa, complementação térmica. Esse modelo custaria 5 bilhões de reais. Depois, seria possível utilizar um bilhão daqueles cinco que forem poupados para fazer o reator de pesquisa.
Investir em energia nuclear é a negação total do desenvolvimento sustentável, porque o desenvolvimento sustentável permite atender às necessidades da geração atual, sem prejudicar a possibilidade das gerações futuras de fazê-lo.
IHU On-Line – Quais as implicações do sítio de Angra? É possível ocorrer um acidente como o de Fukushima?
Ildo Sauer – Angra III, Angra II e Angra I estão situadas numa região da Baía de Itaorna, que quer dizer “pedra podre”, “pedra precária” em tupi-guarani. A região está cercada de montanhas que, desde as décadas 1840, 1850, 1860 têm registros periódicos de deslizamentos. Portanto, a região está suscetível a um tsunami de terra, que pode inviabilizar a possibilidade de evacuação de pessoas se houver um acidente, ou uma tragédia maior ainda. Embora seja improvável, não é impossível eventualmente um deslizamento para dentro do sítio e das usinas.
Ironicamente, na época do governo militar, quando se iniciou o Programa Nuclear Brasileiro, houve um debate mais aberto e esclarecedor sobre energia nuclear. Hoje, a imprensa faz um debate cerceado, não dá espaço ou considera irrelevante a discussão.
O governo disse que está reavaliando a construção de novas usinas nucleares, e provavelmente a única opção seja concluir Angra III.
IHU On-Line – E o que fazer com a Angra I e a Angra II?
Ildo Sauer – Bom, Angra I e Angra II estão lá. Nós só temos que cuidar. Não podemos abrir mão de um recurso natural disponível, que científica e tecnologicamente pode ser desenvolvido, desde que se construam reatores mais avançados.
Há outro problema que não pode ser separado disso: a proliferação de armas nucleares. Nós criamos um mundo extremamente desigual como resultado da Segunda Guerra Mundial, com a criação do bloco socialista, do bloco capitalista, dos impérios que criaram armas nucleares capazes de destruir o planeta várias vezes. Essas armas estão nas mãos de apenas alguns países. Um país como o Brasil deve tomar a liderança e exigir o desarmamento nuclear de todos os países, especialmente dos Estados Unidos, da Rússia, da Inglaterra, da França, de Israel, e da África do Sul (se ela tiver armas), do Irã, da Índia, do Paquistão, da Coreia do Norte e todos os demais que poderiam fazê-lo.
Controle nuclear
O ciclo do combustível nuclear para usinas civis deveria ser feito por uma empresa sobre o controle da ONU, de maneira que todo o enriquecimento e reprocessamento de energia nuclear seriam feitos em escala global por uma entidade controlada por todos os países conjuntamente. O Brasil pode ter um papel importante, porque é um país que tem capacidade de tecnologia nuclear, inclusive de fazer bombas se quiser, num prazo relativamente curto, como a Argentina também, mas deveria se tornar o precursor no sentido de exigir uma mudança no status quo.
Já não podemos descartar os benefícios que a energia nuclear permite para a medicina, para a agricultura, para a biologia e para a ciência, nem eventualmente para a energia. Porém, é preciso aproveitar as lições do acidente de Fukushima, de Chernobyl, entre outros.
IHU On-Line – Qual será o custo das usinas nucleares para o Brasil?
Ildo Sauer – O Brasil decidiu investir em um reator nuclear cuja a tecnologia é dos anos 1950, que foi top de tecnologia nos anos 1970. Esse modelo atualmente está ultrapassado, mas o país insiste em gastar o dobro do que custariam outras formas de energia. O investimento nas usinas nucleares atuais deixará como herança, além dos rejeitos radiativos, que exigem cuidado por dez, quinze, vinte ou trinta anos, mil toneladas para cada reator de Angra I e Angra II.
É preciso criar um consórcio mundial para dar conta de todos os combustíveis, elementos e rejeitos radiativos dos programas de produção de energia elétrica e dos programas que produziram as armas nucleares.
A Agência Internacional de Energia Atômica, que hoje está servindo muito aos americanos para perseguir o Irã e outros países, deveria mudar de papel, e perceber que a presença de armas nucleares, de reatores, de tecnologia ultrapassada constitui ameaça à segurança da população mundial. Ainda que o risco seja pequeno, ele existe e precisa de uma solução. A Agência Internacional de Energia Atômica atua ingenuamente como lobista a favor de reatores convencionais, alguns deles com risco acima do necessário, como o caso dos três reatores de Angra, o reator de Fukushima e muitos que estão operando na França e em outros países, e perde a chance de se tornar uma organização que trabalhe em favor da humanidade.
(Por Patricia Fachin e Luana Nyland)
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Proposta simples: "Abandonar o projeto de Angra III, poupar os R$ 10 bi, investir em energia alternativa". Entrevista especial com Ildo Sauer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU