"Não podemos tolerar um sistema de apartheid nuclear em que se considera legítimo alguns Estados possuírem armas nucleares, mas inaceitável que outros tentem obtê-las. Essa moral dupla não serve de base para a paz e segurança mundial", escreve
Desmond Tutu, bispo anglicano, vencedor do prêmio Nobel da Paz e defensor da Campanha Internacional de Abolição das Armas Nucleares (www.icanw.org), em artigo publicado no jornal
Valor, 01-07-2011.
Eis o artigo.
Eliminar as armas nucleares é o desejo democrático da população mundial. Ainda assim, nenhum país com armas nucleares atualmente parece preparar-se para um futuro sem esses terríveis artefatos. Na verdade, todos desperdiçam bilhões de dólares para modernizar suas forças nucleares, zombando das promessas de desarmamento na
Organização das Nações Unidas (ONU). Se permitirmos que essa loucura continue, o uso eventual de algum desses instrumentos de terror parece quase inevitável.
A crise da energia nuclear na
usina de Fukushima, no Japão, serviu como terrível lembrete de que eventos considerados improváveis não só podem acontecer como, de fato, acontecem. Foi preciso uma tragédia de grandes proporções para levar alguns líderes a agir para evitar calamidades similares em reatores nucleares em outras partes do mundo. Não podemos deixar que seja preciso outra
Hiroshima ou
Nagasaki - ou um desastre ainda maior - antes de finalmente acordar e admitir a necessidade de desarmamento nuclear.
Nesta semana, ministros de Relações Exteriores de cinco países com armamentos nucleares - Estados Unidos, Rússia, Grã-Bretanha, França e China - se reunirão em Paris para discutir os avanços na aplicação dos compromissos de desarmamento nuclear assumidos em 2010 na conferência de revisão do
Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) de 2010. Será uma prova de sua determinação para tornar realidade a ideia de um futuro livre de armas nucleares.
Caso pensem seriamente em evitar a disseminação dessas armas monstruosas - e em evitar seu uso - trabalharão com vigor e rapidez para eliminá-las completamente. O mesmo padrão deve ser aplicado a todos os países: zero. As armas nucleares são perversas, independente de quem as possua. O indescritível sofrimento humano que infligem é o mesmo, não importa qual bandeira possam ostentar. Enquanto essas armas existirem, existirá a ameaça de seu uso - seja por acidente ou por ato de pura insanidade.
Não podemos tolerar um sistema de apartheid nuclear em que se considera legítimo alguns Estados possuírem armas nucleares mas evidentemente inaceitável que outros tentem obtê-las. Essa moral dupla não serve de base para a paz e segurança mundial. O
TNP não é uma licença para as cinco potências nucleares originais se aferrarem a essa armas nucleares indefinidamente. A
Corte Internacional de Justiça determinou que são obrigadas a negociar de boa-fé a completa eliminação de suas forças nucleares.
O
Novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas (Start, na sigla em inglês) acertado entre EUA e Rússia, embora seja um passo na direção certa, apenas arranhará superficialmente os grandes arsenais nucleares dos antigos inimigos da Guerra Fria - que representam 95% do total mundial. Além disso, a modernização das atividades desses e de outros países não podem ser compatíveis com seu apoio declarado a um mundo livre de armas nucleares.
É profundamente perturbador que os EUA tenham destinado US$ 185 bilhões para ampliar seu arsenal nuclear nos próximos dez anos, além do orçamento anual habitual para armamentos nucleares, superior a US$ 50 bilhões. Tão preocupante quanto, é a investida do Pentágono para o desenvolvimento de aviões não tripulados com armas nucleares: bombas H entregues em domicílio por controle remoto.
A Rússia, também, revelou um plano de modernização de armas nucleares em grande escala, que inclui vários novos sistemas de lançamento. Políticos britânicos, paralelamente, querem renovar a envelhecida frota de submarinos Trident de sua Marinha - a um custo estimado em 76 bilhões de libras esterlinas (US$ 121 bilhões). Ao fazê-lo, estarão deixando passar uma oportunidade histórica para assumir a liderança no desarmamento nuclear.
Cada dólar investido na expansão do arsenal nuclear de um país é um desvio de recursos de suas escolas, hospitais e outros serviços sociais e representa um roubo dos milhões de pessoas pelo mundo que passam fome ou não têm acesso a medicamentos básicos. Em vez de investir em armas de aniquilação em massa, os governos deveriam destinar recursos para atender as necessidades humanas.
O único obstáculo à nossa frente para abolir os armamentos nucleares é a falta de vontade política, que pode - e precisa - ser superada. Quase 70% dos países-membros da ONU defendem uma convenção para as armas nucleares similar aos tratados existentes que proíbem outras categorias de armamentos de ação indiscriminada ou particularmente desumanos, desde artefatos biológicos e químicos a minas terrestres antipessoais e munições de fragmentação. Tal tratado é viável e precisa ser buscado com urgência.
É claro que não se pode voltar atrás na invenção das armas nucleares, mas isso não significa que o desarmamento nuclear é um sonho impossível. Meu próprio país, a África do Sul, abriu mão de seu arsenal nuclear nos anos 90, ao perceber que estaria melhor sem essas armas. Por volta da mesma época, os novos estados independentes da Bielorrússia, Cazaquistão e Ucrânia abriram mão voluntariamente de suas armas nucleares e se juntaram ao
TNP. Outros países abandonaram seus programas nucleares, reconhecendo que nada de positivo poderia sair dali. O arsenal mundial caiu de 68 mil ogivas no auge da Guerra Fria para 20 mil hoje.
No devido tempo, cada governo acabará aceitando a desumanidade básica que significa a ameaça de obliterar cidades inteiras com armas nucleares. Trabalharão para chegar a um mundo em que tais armas não existam mais - em que o domínio da lei, e não o domínio da força, reine supremo e a cooperação seja vista como a melhor avalista da paz internacional. Tal mundo, no entanto, será possível apenas se as pessoas, de todas as partes, se levantarem para contestar a insanidade nuclear.
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Para acabar com o mal nuclear - Instituto Humanitas Unisinos - IHU