02 Mai 2017
Embora o Papa Francisco tenha evitado uma citação polêmica associando o Profeta Maomé à violência que atiçou protestos quando dita pelo Papa Bento XVI em Regensburg, na Alemanha, em 2006, ele fez um discurso semelhante aos líderes religiosos islâmicos, insistindo que a violência é uma “negação de toda religiosidade autêntica”.
A reportagem é de John L. Allen Jr, publicada por Crux, 28-04-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Os papas são muitas coisas, incluindo estadistas e diplomatas, e às vezes entender a mensagem que eles verdadeiramente querem passar exige ler nas entrelinhas. Em outras vezes, no entanto, um pontífice pode decidir que uma situação é tão urgente, ou inevitável, que simplesmente dá a sua mensagem de forma clara, sem empregar os jogos linguísticos usuais.
Esta sexta-feira, no Egito, pareceu capturar o Papa Francisco um destes momentos de franqueza.
Com efeito, o que ele falou em seu primeiro dia de visita ao país foi quase a sua versão da polêmica fala proferida pelo Papa Bento XVI em 2006 em Regensburg, na Alemanha, a qual resultou numa onda de protestos por citar uma frase que associava o Profeta Maomé à violência.
Francisco evitou a citação polêmica, mas fez um pedido claro aos líderes religiosos – que, no contexto egípcio, significa o Islã em primeiro lugar – para rejeitarem a violência em nome de Deus.
“Vamos dizer, mais uma vez, um firme e claro ‘não!’ a toda forma de violência, vingança e ódio realizado em nome da religião ou em nome de Deus”, declarou o papa. “Juntos afirmarmos a incompatibilidade entre a fé e a violência, entre acreditar e odiar”.
Dirigindo-se a um país marcado pelo aumento do extremismo islâmico, e no qual a Irmandade Muçulmana governava até 2013, Francisco insistiu ser urgente “desmascarar o mal que se disfarça como santidade”.
“Somos obrigados a denunciar as violações que ameaçam a dignidade humana e os direitos humanos, a denunciar as tentativas de justificar todas as formas de ódio em nome das religiões e condená-los como uma falsificação da idolatria de Deus”, falou.
“Nenhuma violência pode ser perpetrada em nome de Deus”, continuou, “porque profanam o seu nome”.
Francisco discursou num encontro internacional sobre a paz organizado pela mesquita e universidade do Cairo chamada Al-Azhar, o mais prestigiado centro de aprendizagem do islamismo sunita.
Vários analistas compararam a atmosfera na Al-Azhar desta sexta-feira aos encontros inter-religiosos lançados por São João Paulo II em Assis, na Itália, no ano de 1986, com imãs e xamãs, rabinos e bispos cristãos, todos reunidos numa demonstração de causa comum.
Luis Badilla, diretor do sítio noticioso italiano “Il Sismografo”, observou que vários representantes judaicos foram convidados para o evento na Al-Azhar, ainda que representando a Jordânia e o restante do Oriente Médio, em oposição a Israel.
Os cristãos compõem uma parcela significativa da população egípcia, e frequentemente se veem sob risco com o aumento da militância islâmica. Há duas semanas, no Domingo de Ramos, bombas explodiram duas igrejas coptas, uma em Tanta, no Delta do Nilo, e a outra em Alexandria, deixando 45 mortos.
Ahmad al-Tayeb, o Grande Imã da Al-Azhar, pareceu capturar o que o Papa Francisco estava querendo dizer, ao começar o seu próprio discurso convidando os presentes a ficarem de pé para um momento de silêncio em nome das vítimas do terrorismo e em consolo a seus familiares.
Embora o Vaticano e a Al-Azhar tenham uma comissão mista voltada ao diálogo inter-religioso e embora tenham desenvolvido uma parceria nos últimos anos após interrupção nas relações sob o papado de Bento XVI, os críticos têm acusado o establishment clerical islâmico de estarem fazendo um jogo ambivalente: pregando a tolerância e o pluralismo, por um lado, mas, por outro, apoiando tendências extremistas na cultura egípcia.
Neste contexto, Francisco pediu que todos os líderes religiosos se ponham contra ao que descreveu como a “lógica incendiária do mal”, declarando que chegou a hora de transformar o “ar contaminado de ódio em oxigênio de fraternidade”. A violência em nome de Deus, falou Francisco, é “a negação de toda religiosidade autêntica”.
Este trecho de seu discurso foi aplaudido pelos presentes no encontro, assim como foram outras declarações feitas por ele nesse mesmo tom.
“Do mal vem somente o mal e da violência somente a violência, numa espiral que termina por aprisionar”, disse ele, enfatizando em particular a importância de educar os jovens na paz.
A educação é um tema polêmico no Egito, na medida em que o presidente Abdel Fattah al-Sisi propôs uma revisão do currículo escolar no intuito de resistir ao aumento do fundamentalismo religioso, sugestão que sofre resistência por alguns do establishment islâmico no país.
Rejeitando o que descreveu como uma atitude de “se enrijecer e se fechar”, Francisco convidou os egípcios a “valorizar o passado e colocá-lo em diálogo com o presente”, aprendendo a incluir os outros como uma “parte integrante” da sociedade egípcia.
Francisco sabe que, embora a Constituição do país teoricamente proteja a liberdade religiosa, e embora al-Sisi subiu ao poder em 2014 prometendo proteção aos cristãos e outras minorias religiosas, na realidade a vida está cada vez mais precária para os cristãos nesta sociedade de maioria esmagadoramente muçulmano-sunita.
Portanto, Francisco não pareceu retroceder na defesa da liberdade religiosa e dos direitos humanos. “[Reconhecer] os direitos e as liberdades fundamentais, especialmente a religiosa, é a melhor maneira para edificar juntos o futuro, para ser construtores de civilização”, disse.
Sustentando que a religião tem uma vocação intrínseca para a promoção da paz, Francisco afirmou que os líderes religiosos não podem simplesmente expressar lealdade ao diálogo e à tolerância, sem que suas ações sejam coerentes com a retórica.
“Com efeito, de pouco ou nada serve levantar a voz e correr ao rearmamento para se proteger”, disse. “Hoje há necessidade de construtores de paz, não de armas; hoje há necessidade de construtores de paz, não de provocadores de conflitos; de bombeiros e não de incendiários; de pregadores de reconciliação e não de arautos de destruição”.
Ele também advertiu contra os “populismos demagógicos”, que, no contexto do Oriente Médio, geralmente é interpretado como líderes políticos e religiosos carismáticos que lucram com conflitos sectários. Ao mesmo tempo, denunciou “ações unilaterais” que tipicamente se referem às potências mundiais que voltam os seus interesses para a região, “um presente aos proponentes do radicalismo e da violência”.
Francisco igualmente propôs fazer-se uma distinção clara entre religião e política.
“Confundem-se, não as distinguindo adequadamente, as esferas religiosa e política”, falou. “A religião corre o risco de ser absorvida pela gestão de assuntos temporais e tentada pelas adulações de poderes mundanos que, na realidade, a instrumentalizam”.
Por fim, Francisco insistiu que a paz verdadeira provavelmente permanecerá distante se não se puser um fim à “proliferação de armas”.
“Só tornando transparentes as turvas manobras que alimentam o câncer da guerra é que será possível impedir as suas causas reais”, concluiu o pontífice.
Al-Tayeb concordou, declarando o que pensa sobre o comércio de armas.
“O comércio de armas que garante a operação contínua de mortes e o enriquecimento extraordinário resultantes de acordos suspeitos apoiados por resoluções internacionais” é o responsável pelos conflitos globais, segundo ele.
“Para o bem deste comércio odioso, criam-se focos de tensões e inflamam-se sedições religiosas, conflitos e diferenças raciais e sectárias entre os cidadãos de um mesmo país, transformando a vida humana num inferno miserável”, disse.
Al-Tayeb insistiu que o Islã em si não é o responsável pelas atrocidades realizadas em seu nome. “O Islã não é uma religião terrorista para um grupo de seguidores que manipulam textos islâmicos e os interpretam erroneamente de forma ignorante”, acrescentou. “E então, derramam sangue, matam e espalham destruição. Infelizmente, eles encontram fontes disponíveis de financiamento, armamento e treinamento”.
“Da mesma forma, o cristianismo não é uma religião terrorista só porque um grupo de seguidores carrega uma cruz e dizima pessoas sem distinção entre homens, mulheres, crianças, combatentes e prisioneiros”, disse. “O judaísmo não é uma religião terrorista só porque um grupo de seus seguidores emprega os ensinamentos de Moisés, ocupando terras e extirpando milhões de cidadãos civis indefesos do povo palestino”.
O Grande Imã também agradeceu o Papa Francisco por repetidamente defender o Islã “contra a acusação de violência e terrorismo”. Os dois deram-se um abraço forte quando al-Tayeb concluiu a fala, e Francisco se referiu a ele por “meu irmão”.
Francisco chegou ao Egito na sexta-feira, encontrando-se com Sisi no palácio presidencial no Cairo e, em seguida, participando de um evento sobre a paz na Universidade de Al-Azhar. Mais tarde, discursou a autoridades políticas e civis, e depois reuniu-se com o Papa Tawadros II, chefe da Igreja Ortodoxa Copta.
No sábado, o papa presidirá uma missa e encontrar-se-á com o clero, religiosos/as e seminaristas antes de retornar a Roma.
Embora não haja números exatos, algo entre 10 e 20% da população egípcia é cristã, o que significa em torno de 10 e 20 milhões de pessoas. É a comunidade cristã mais significativa no Oriente Médio.
Embora seja um país com quase 90% de muçulmanos, houve sinais de entusiasmo com a visita do Papa Francisco nesta sexta-feira. As ruas do Cairo, por exemplo, estiveram alinhadas com pôsteres declarando que o “papa da paz” está visitando o “Egito da paz”.
O governo local tem interesse em promover a visita do papa ao país, na medida em que se lança como um baluarte secular contra o fundamentalismo religioso. Esta tática, no entanto, tem atraído a atenção dos críticos, que dizem ser uma forma de desviar a atenção para o histórico contestado do governo para com os direitos humanos e dissidentes políticos.
Gihane Zaki, diretora da Academia Egípcia da Itália, disse que, dado o papel da Al-Azar no mundo islâmico, a visita de Francisco terá consequências para além das fronteiras do Egito.
“E não somente no Oriente Médio”, disse ela. “Alunos da África e da Ásia estudam aqui também, e se podem dizer que possuem formação pela Al-Azhar, portas se abrem para eles”.
“O Egito é um pilar do Oriente Médio e do mundo islâmico como um todo, e o que acontece aí tem importância”, acrescentou Zaki. “Ver o papa e o grande imã juntos debaixo deste domo e dando as mãos (...) é uma nova página para o futuro”.
“O cenário inteiro do Oriente Médio será posto em questão durante estes dois dias de visita”, disse.
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No Egito, Francisco profere o seu “discurso de Regensburg” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU