14 Março 2008
O feminino mudou. Passaram-se os anos e a inserção das tecnologias no nosso dia-a-dia fez com que a estética e a construção do corpo mudassem também. Trata-se de um movimento que atinge, conseqüentemente, a sociedade e o que vem a ser o masculino. Sua estética é radicalmente modificada pelo fácil acesso às cirurgias plásticas, por exemplo, que criam certa exaltação e supervalorização do corpo. “O indivíduo (homem ou mulher) aparece como o responsável por sua aparência física por meio das várias formas de construções corporais hoje presentes no mercado – como as dietas, exercícios físicos, tratamentos de beleza e cirurgias plásticas estéticas. Neste sentido, o corpo distintivo, ou seja, aquele que se encontra em consonância com os padrões de beleza contemporâneos que associam juventude, beleza e saúde apresenta-se como um valor fundamental na sociedade ocidental”, afirma a socióloga Andrea Tochio.
Em entrevista à IHU On-Line, realizada por e-mail, Tochio fala sobre a importância do estudo do corpo a partir dessa transformação permitida pelo livre acesso às mudanças, ou seja, às cirurgias plásticas. “O que a Antropologia nos ensina é olhar a sociedade por meio dos corpos de seus indivíduos, isto é, o corpo é a imagem da sociedade da maneira que o corpo é construído culturalmente”, responde.
Andrea Tochio é graduada em Ciências Sociais, pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), e mestre em Antropologia Social, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como se dá a construção do feminino e da estética concebida a partir das cirurgias plásticas hoje no imaginário das próprias mulheres? E no dos homens?
Andrea Tochio – Atualmente, as cirurgias plásticas encontram-se conjugadas e associadas a um ideal de “supervalorização” e exaltação do corpo, sendo que o indivíduo (homem ou mulher) aparece como o responsável por sua aparência física por meio das várias formas de construções corporais hoje presentes no mercado – como as dietas, exercícios físicos, tratamentos de beleza e cirurgias plásticas estéticas. Neste sentido, o corpo distintivo, ou seja, aquele que se encontra em consonância com os padrões de beleza contemporâneos, que associam juventude, beleza e saúde, apresenta-se como um valor fundamental na sociedade ocidental.
Além da adequação a uma forma de corpo propagada pelos padrões de beleza atuais, as cirurgias plásticas demarcam distintivamente quais seriam propriedades dos homens e quais seriam das mulheres. Isto é: os modos como as feminilidades e masculinidades são moldadas no corpo por meio da experiência de realizar cirurgia plástica a partir das noções de diferenças entre o corpo feminino e o corpo masculino, diferenças estas historicamente construídas como inatas pelo discurso médico que envolve tais práticas, pois partem do pressuposto biológico da diferença entre os “sexos” como essência inata dos indivíduos.
Assim, por meio das diversas cirurgias plásticas realizadas no mesmo local do corpo de homens e mulheres, comparativamente, vê-se como as noções do que seria próprio das mulheres e dos homens vão sendo construídas. Por exemplo: operar as mamas em homens e mulheres há grandes diferenças. No caso das mulheres, as mamas são vistas como um “aspecto de ser mulher”, sendo associadas às noções do feminino como a “sensualidade feminina”, ou com a gravidez, pois é por intermédio delas que as mães amamentam seus filhos. A justificativa para colocar uma prótese de silicone, muitas vezes, está no fato de a mulher achar ser um “defeito” possuir pouca mama. Já, no caso dos homens, o “defeito” ou a “patologia” está em possuir mamas protuberantes, e a ginecomastia aparece como uma opção nos casos dos homens.
IHU On-Line – A preocupação com o corpo e a estética é um sinal da expressão da cultura ocidental?
Andrea Tochio – Desde o final do século XX e início do XXI, ocorreu uma verdadeira explosão de trabalhos científicos, em diferentes áreas do conhecimento (como a Sociologia, Antropologia, História, Psicanálise e Educação), que possuem como objetivo central discutir a centralidade do corpo em determinados segmentos sociais na cultura ocidental. Este momento histórico poderá ser lembrado como aquele em que o “culto ao corpo” se tornou significativo, podendo ser visto como uma espécie de estilo de vida, em especial, entre as mulheres das camadas médias urbanas.
Porém, a centralidade do corpo e a preocupação com a estética não podem ser tomadas como significativas apenas da cultura ocidental, pois não se deve esquecer da preocupação que o corpo e a estética possuem ou possuíam em outros períodos históricos e em outras culturas, como a valorização da beleza e adornos estéticos entre os egípcios, a importância de possuir um determinado tipo de corpo entre os gregos, a centralidade que o corpo ainda toma em algumas sociedades indígenas brasileiras do Alto Xingu (1).
O que a Antropologia nos ensina é olhar a sociedade por meio dos corpos de seus indivíduos, isto é, o corpo é a imagem da sociedade da maneira que o corpo é construído culturalmente. Pensando assim, cada cultura ou sociedade constrói os corpos de seus indivíduos. O que deve ser analisado são as especificidades que a “supervalorização” de um determinado tipo de corpo toma na cultura ocidental e suas aplicações para esta cultura e seus indivíduos.
IHU On-Line – Como você analisa a construção do corpo na sociedade contemporânea?
Andrea Tochio – O antropólogo Marcel Mauss (2) define as “técnicas corporais” como “as maneiras como os homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional, se servem de seus corpos”. Assim, o corpo humano, em todas as sociedades, seria um objeto privilegiado de investimentos culturais, e, por meio do conceito de habitus, o autor evidencia que toda a expressão corporal é apreendida e que o corpo nunca poderia ser encontrado num “estado natural”, pois seria por intermédio dele que a cultura molda e inscreve, criando as diferenças culturais. Dessa maneira, refletir acerca da construção do corpo na sociedade contemporânea é pensar quais valores, discursos e convenções sociais estão fabricando este tipo de corpo ou corpos.
No que diz respeito às cirurgias plásticas, elas se encaixam muito bem aos valores básicos das sociedades de consumo contemporâneas pelo fato de prover o máximo de resultados com o mínimo de esforço, priorizar menos o processo e mais os resultados obtidos e consumir constantemente mudanças, ou seja, uma valorização do corpo jovem, saudável, magro e belo, sem a necessidade de ficar horas numa academia de ginástica para perder a “barriga saliente” ou “aumentar o volume das nádegas”. O que está em jogo também são os discursos médicos e as convenções sociais a respeito do corpo que estão sendo acionadas pelos pacientes e pelos cirurgiões plásticos. O corpo humano é visto como uma matéria plástica e flexível às expectativas pessoais.
IHU On-Line – Antropologicamente, depois da cirurgia plástica a que um corpo é submetido, como se dá a relação desse corpo com sua natureza e cultura e entre esse indivíduo e a sociedade?
Andrea Tochio – A partir dos casos dos pacientes acompanhados em minha pesquisa de campo no Hospital das Clínicas da Unicamp, no que diz respeito ao corpo e aos efeitos da cirurgia plástica, há uma variedade de discursos, cada um ressaltando o quanto a intervenção em seus corpos lhes trouxe características como “bem-estar”, “alegria”, “renovação”, “aumento da auto-estima”, “melhora dos relacionamentos pessoais com amigos, marido, esposa, no trabalho”. Discursos estes que se contrapõem à concepção de corpo anterior às cirurgias plásticas que enfatizam as dores físicas ou doenças associadas como a obesidade mórbida e anorexia ou, então, as queixas centradas em aspectos psicológicos, como “vergonha”, “infelicidade”, “discriminações” e “preconceitos”.
Neste sentido, deparei-me com casos em que a concepção de corpo exposta pelos informantes antes da cirurgia seria uma espécie de “máscara” que acarreta preconceitos, discriminações, vergonha, e por isso, impediria o reconhecimento das qualidades de cada um. O aperfeiçoamento e embelezamento corporal, promovidos pelas cirurgias plásticas, propiciariam o dever e o desejo de mostrar no que consiste o “eu verdadeiro”, retirando esta “máscara” que o esconde. Houve também casos em que o “eu verdadeiro” seria fabricado pela experiência da cirurgia plástica, uma maneira de reafirmar novas identidades, novos “eus” adquiridos por meio das cirurgias plásticas. Assim, estes informantes afirmam sua “natureza” como o produto da intervenção cirúrgica em seus corpos, e o “eu verdadeiro” se dá a partir das transformações em seus corpos propiciadas pelas cirurgias plásticas, como corpos fabricados.
Numa sociedade como a brasileira, na qual a beleza e o corpo são vistos como valores fundamentais nas diversas classes sociais, o “aumento da auto-estima” aparece como uma das justificativas mais recorrentes para a realização de uma cirurgia plástica. Pude verificar, em minha pesquisa de mestrado, que a “auto-estima” apresenta-se como um valor moral, uma ética relacionada com o dever dos indivíduos de sentirem-se bem consigo mesmos e não apenas a uma busca de beleza estética. A estética, aqui, vem acoplada à ética envolvida na luta para sentir-se bonita, com boa aparência, como parte de uma obrigação moral de sentir-se bem e portar-se de uma determinada maneira no mundo.
IHU On-Line – Como se dá a construção social do corpo hoje? Que evoluções essa construção teve?
Andrea Tochio – Conforme foi mencionado, o corpo é culturalmente construído por meio dos valores morais, padrões estéticos, de comportamento, convenções sociais e discursos científicos de cada período histórico e diferentes culturas. Atualmente, o corpo “malhado”, “trabalhado”, “magro”, “belo”, “jovem”, e, portanto, “saudável” aparece como um “ideal estético” a ser conquistado pelos indivíduos numa espécie de luta, uma verdadeira batalha individual pela conquista da aparência desejada, na qual a obesidade e a velhice são vistas como formas de negligência em relação ao próprio corpo, e por isso devem ser combatidas.
O corpo é socialmente construído de maneiras distintas de acordo com o período histórico e cultura a que pertence. Dessa maneira, o que é específico, atualmente, são alguns fatores e novas exigências no que diz respeito às formas de embelezamento e construções corporais. No caso das mulheres, o movimento de liberação a partir dos anos 1960, baseados na contracultura, vieram favorecer uma concepção de mulher moderna, ou seja, uma condição feminina que aponta para certo grau de liberdade nos comportamentos e atitudes femininas no que diz respeito a indumentária, sexualidade, a família, questões como individualidade e independência da mulher em relação ao seu próprio corpo. Há um desenvolvimento da publicidade, da indústria da beleza e um contexto do fortalecimento do discurso psicológico dirigido à mulher pautados no “auto-conhecimento”, no “prazer e necessidade de se cuidar”.
O que também é bastante característico atualmente são as inúmeras tecnologias de construção corporal existentes no mercado que são apresentadas ao público como que “estando ao alcance de todos”, bastando o esforço individual e financeiro para utilizá-las na batalha pela aparência desejada e socialmente formulada como a ideal.
IHU On-Line – Como a Antropologia vê a cirurgia plástica propagada através da mídia?
Andrea Tochio – O papel da mídia escrita – revistas femininas ou masculinas, cartazes nas ruas, “outdoors”, propagandas e programas de televisão – é inquestionável, na propagação de valores e atributos voltados para as noções de corpo que aparecem vinculadas ao padrão estético de beleza. Valores estes que dão ênfase ao corpo belo, jovem, magro, à necessidade de praticar exercícios físicos, ao cuidado com a alimentação, à aquisição de hábitos saudáveis e de produtos adequados, à modelagem da aparência. Em especial, em relação às cirurgias plásticas, a mídia refere-se, na maioria das vezes, aos “milagres” que estas transformações corporais realizam, propagandeando as ditas facilidades de se realizar as cirurgias, não mostrando ao grande público os cuidados específicos que cada cirurgia requer, além dos problemas que podem ocorrer nas mesas cirúrgicas, que dependem de cada organismo físico e também do bom preparo dos hospitais e da equipe médica, bem como os problemas de anestesia e cicatrização. Ocultando os casos que não foram bem-sucedidos, a mídia acaba por passar uma idéia simplista e ilusória das cirurgias plásticas.
Notas:
(1) Esta área faz parte do sul do Parque Indígena do Xingu e é integrada pelos Aweti, Kalapalo, Kamaiurá, Kuikuro, Matipu, Mehinako, Nahukuá, Trumai, Wauja e Yawalapiti. A despeito de sua variedade lingüística, esses povos caracterizam-se por uma grande similaridade no seu modo de vida e visão de mundo. Estão ainda articulados numa rede de trocas especializadas, casamentos e rituais inter-aldeias. Entretanto, cada um desses grupos faz questão de cultivar sua identidade étnica e, se o intercâmbio cerimonial e econômico celebra a sociedade alto-xinguana, promove também a celebração de suas diferenças.
(2) Marcel Mauss foi um sociólogo e antropólogo francês, nascido quatorze anos mais tarde e na mesma cidade que Émile Durkheim, de quem é sobrinho. É considerado como o "pai" da etnologia francesa. O grupo de Durkheim, matriz da chamada Escola Sociológica Francesa, visava a constituir uma ciência propriamente social. Leituras mais contemporâneas a respeito de Marcel Mauss, entretanto, apontam para vários desvios deste, frente ao método racionalista de seu tio.
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A cirurgia plástica sob um olhar antropológico. Entrevista especial com Andrea Tochio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU