18 Fevereiro 2008
“Eu, pessoalmente, não creio que o perigo mais imediato venha de nanorobôs, que ainda são uma possibilidade teórica nunca efetivada, mas da crescente e invisível ‘nano poluição’”, afirmou o professor Marko Monteiro em entrevista, por e-mail, à IHU On-Line. Focado em temas como a relação entre as biotecnologias e o corpo, Marko falou sobre o desenvolvimento das nanotecnologias e o impacto sobre as sociedades contemporâneas.
Marko acredita ser dificil prever o futuro e, assim, compreender a presença das nanotecnologias na sociedade do futuro, mas, como estudioso do assunto, pensa nas tendências pelas quais as nanotecnologias vão avançando para entender e preparar-se enquanto parte desta sociedade. “A idéia de que todos podemos ser ciborgues não é tão difícil de imaginar, se pensarmos em coisas como cirurgias plásticas, vacinas, lentes de contato, próteses de todos os tipos, tratamentos de saúde, malhação, entre tantas outras práticas de alteração corporal comuns em nossa sociedade. Mesmo se reduzirmos a definição de ciborgue para interações entre máquinas artificiais e nossos corpos, como marca-passos, ainda assim temos muitos exemplos do cotidiano de tecnologias que permitem uma certa ‘ciborguização’”, declarou.
Marko Monteiro é doutor em Ciências Sociais, pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Atualmente, realiza o pós-doutorado na Universidade do Texas, nos Estados Unidos, onde também atua como professor e pesquisador. Também é membro do grupo de pesquisas do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo. É autor de Tenham piedade dos homens! Masculinidades em mudança (Juiz de Fora: Ed. Feme, 2000).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Alguns estudiosos acreditam que todo ser humano é potencialmente um ciborgue, resultado da união entre nanotecnologias e engenharia genética. Para o senhor, o desenvolvimento avançado das tecnologias nano altera o modo de vida da sociedade atual? E como ele deverá atuar na sociedade do futuro?
Marko Monteiro - Primeiramente, é difícil dizer com qualquer precisão como será o ser humano do futuro. O máximo que podemos fazer é imaginar os futuros possíveis e, especialmente, como estudiosos, tentar antecipar tendências, a fim de ficarmos melhor preparados enquanto sociedade. A idéia de que todos podemos ser ciborgues não é tão difícil de imaginar, se pensarmos em coisas como cirurgias plásticas, vacinas, lentes de contato, próteses de todos os tipos, tratamentos de saúde, malhação, entre tantas outras práticas de alteração corporal comuns em nossa sociedade. Mesmo se reduzirmos a definição de ciborgue para interações entre máquinas artificiais e nossos corpos, como marca-passos, ainda assim temos muitos exemplos do cotidiano de tecnologias que permitem uma certa “ciborguização”. Ou seja, esse fenômeno independe de tecnologias mais recentes, como a nano e a biotecnologia. A novidade dessas duas é a de trazer a promessa de alterações no nível molecular, seja em seres vivos (como animais transgênicos) ou objetos inanimados (nano partículas de ouro e prata), que começam a ter impactos importantes em áreas como agricultura e saúde. Esse tipo de controle cada vez mais completo dos processos “naturais” promete tornar essa dualidade (natureza e cultura) cada vez mais dificil de perceber, e promete multiplicar o número de ciborgues com os quais ja lidamos atualmente, tornando-os ainda mais uma parte inseparável do nosso cotidiano.
IHU On-Line - Por mais que as nanotecnologias possam se desenvolver muito mais, elas estão bastante presentes no nosso cotidiano atual. Caminhamos para uma sociedade pós-moderna? Como o senhor define essa sociedade pós-moderna?
Marko Monteiro - Bom, ainda que seja dificil definir o que seja pós-moderno, esse termo refere-se geralmente a um movimento intelectual que influenciou a arquitetura, as artes e disciplinas acadêmicas das humanidades desde a teoria literária até as ciências sociais. Os pós-modernos questionam as formas de pensar ditas modernas, baseadas em meta-narrativas abrangentes (como religião, ciência) e postulam que os universais do modernismo (sujeito, objetividade, sociedade) devam ser desconstruídos, como forma de revelar relações de poder e pressupostos ocultos. As nanotecnologias, atualmente, começam a ter impacto especialmente no desenvolvimento de novos materiais (como a incorporação de nanotubos de carbono em metais e cerâmicas), na miniaturização de componentes eletrônicos e começa a ser utilizado na medicina e química também. Creio que, com o desenvolvimento maior da nanotecnologia e do crescente controle que possuímos sobre processos naturais, o tipo de pensamento que muitos chamam de pós-moderno pode iluminar essa quebra de fronteiras entre humano/não-humano e entre natural/artificial.
IHU On-Line - Se o homem tem uma tendência cada vez maior de transformar-se em ciborgue, que tipos de reinvenções do corpo já estão sendo feitas na sociedade tecnológica contemporânea? Que conseqüências essa transformação poderá ter na sociedade?
Marko Monteiro - Alterações corporais são comuns na maior parte das sociedades humanas. Desde tatuagens, escarificações, exercícios fisicos, piercings, até as alterações tecnológicas mais comuns a nossa sociedade ocidental e tecnocientífica. Os impactos que as nanotecnologias podem ter em termos de alterar o corpo ainda não estão totalmente claras, mas muitos teóricos prevêem que poderemos corrigir com precisão seqüências de DNA defeituosas ou criar nano-máquinas que podem efetuar intervenções cirúrgicas antes impossíveis. Além disso, já existem testes para a criação de novas drogas que se beneficiam dos conhecimentos das interações entre moléculas e células no nível nanométrico. Assim como promessas de uma revolução na área da saúde, muitos teóricos alertam para os perigos de uma nanotecnologia que fuja ao controle da ciência, espalhando novas particulas tóxicas no meio ambiente e alterando a espécie de forma irreversível. Pensadores como Bill Joy (1) já vêm alertando para o perigo de nano-máquinas auto-replicantes que podem fugir ao nosso controle e movimentos ambientalistas vêm clamando por uma moratória a algumas pesquisas.
IHU On-Line - Depois de tantas transformações e criações, poderá o homem perder seu espaço para os nanorobôs?
Marko Monteiro - Alguns intelectuais, como o já citado Bill Joy, acreditam que máquinas super inteligentes podem um dia ameacar a espécie humana, um alerta que também refere-se à crescente velocidade do desenvolvimento tecnológico e à nossa inabilidade de adaptação. Eu, pessoalmente, não creio que o perigo mais imediato venha dos nanorobôs, que ainda são uma possibilidade teórica nunca efetivada, mas da crescente e invisível “nano poluição”. Refiro-me ao contato que podemos ter com nanopartículas que podem atravessar as membranas celulares e afetar nossos organismos de formas desconhecidas. Novas disciplinas, como a nanotoxicologia, estão começando a investigar os potenciais perigos para o meio ambiente de substâncias na nanoescala que começam a ser despejadas na água e em depósitos de lixo. Ou seja, temos tarefas muito mais imediatas a cumprir do que temer os nanorobôs!
IHU On-Line - Como o ciborgue pode ser utilizado como um recurso heurístico, em sua opinião?
Marko Monteiro - O ciborgue serve como recurso heurístico na medida em que permite que percebamos processos que desrespeitam as tradicionais divisões entre natural e artificial. As nano e biotecnologias, por exemplo, conseguem atuar de forma “artificial” em processos que entendemos como “naturais”. Seria uma planta de milho transgênica completamente natural ou completamente artificial? O que dizer da ovelha Dolly (2)? Com a multiplicação dessas capacidades, as ciências sociais precisam desenvolver ferramentas teóricas que permitam a análise das interações entre tecnologias e sociedades para além de entendimentos mais tradicionais. As novas tecnologias reprodutivas são um exemplo marcante desse tipo de processo: com o avanço de tecnologias de seleção de embriões ou de definição de doenças em nível genético, como podemos entender escolhas reprodutivas, novas formas de família e percepções acerca da saúde? Em termos raciais, discursos científicos começam a alterar as formas pelas quais os brasileiros entendem-se como “brancos” e “negros”, entre outras categorias. Nenhum desses processos pode ser entendido de forma adequada se deixarmos de questionar as tecnologias que participam desses processos; processos que são, antes de tudo, sociais.
IHU On-Line - Com o desenvolvimento das nanotecnologias e engenharia genética modificando as sociedades, como fica a ética?
Marko Monteiro - Disciplinas como a bioética deverão levar em conta essa multiplicação de ciborgues e de processos que são possibilitados por novas tecnologias. Creio que questões éticas que envolvem a tecnologia, como aquelas relativas à agricultura transgênica e à pesquisa com células-tronco, por exemplo, são desde já assuntos importantes e polêmicos no Brasil. O que faltam são compreensões mais ricas desses processos que possam informar tanto o público em geral quanto os tomadores de decisão.
IHU On-Line - A genética, a nanotecnologia, a clonagem, a cibernética e as tecnologias de computador são parte de uma visão pós-humana, que não acredita que a biologia seja um destino, porque não existiria uma "lei natural". Que tipos de discussões devem ser feitas para que possamos distinguir entre as transformações que são edificantes e as que são destrutivas?
Marko Monteiro – A figura do ciborgue seria útil para dar mais corpo a discussões sobre o que seria pós-humano. Quem definirá o que é destrutivo ou produtivo serão os atores sociais envolvidos, e não um padrão universal que possa servir de bula ou guia neutro. O que é indispensável é um debate público mais informado e mais claro a respeito de como as tecnologias estão participando de processos sociais, para que, de forma democrática, tais definições possam ocorrer.
IHU On-Line - A sociedade atual está cada vez mais dependente das máquinas e das tecnologias para acompanhar o desenvolvimento do mundo. No entanto, essa mesma sociedade nega essa dependência. Por que a pessoa humana precisa fazer essa negação para afirmar sua humanidade, em sua opinião?
Marko Monteiro - Temos dificuldade de imaginar a condição humana como algo “artificial” ou “tecnológico”. A divisão entre natural e artificial ainda permeia as nossas visões a respeito do mundo, ainda que ela esteja sendo subvertida em diversas instâncias. Talvez as gerações futuras não sintam essa mesma necessidade, mas não há modo de saber ao certo.
IHU On-Line - Para o senhor, o desenvolvimento da tecnociência e das nanotecnologias são uma distopia ou uma utopia? Viveremos num mundo diferente do que conhecemos?
Marko Monteiro - Estou certo de que o mundo dos nossos filhos será bem diferente daquele em que vivemos agora. A velocidade do desenvolvimento científico e tecnológico está aumentando e isso vem tendo efeitos dramáticos na forma como vivemos. O exemplo da Internet é um dos muitos: tecnologia bem recente, ela já revolucionou diversos aspectos da nossas interações com o mundo e com outras pessoas. Com o desenvolvimento de nano e biotecnologias, tais mudanças prometem ser ainda mais drásticas, mas se serão utópicas ou distópicas depende do nosso esforço de compreender e definir que tipo de futuro queremos.
Notas:
(1) Bill Joy é um cientista da computação estadunidense. Mostrou-se preocupado com os efeitos das tecnologias emergentes em seu artigo "Why the future doesn`t need us", publicado na revista Wired, impactado pelos escritos de Theodore Kaczynski. Posteriomente, fundou um fundo de capital de risco destinando a inverter as fortunas tecnologicas a partir de um enfoque de prevenção secundária.
(2) A ovelha Dolly foi o primeiro mamífero a ser clonado com sucesso a partir de uma célula adulta. Dolly foi criada por investigadores do Instituto Roslin, na Escócia, onde viveu toda a sua vida. Os créditos pela clonagem foram dados a Ian Wilmut, mas este admitiu, em 2006, que Keith Campbell seria na verdade o maior responsável pela clonagem. Dolly foi gerada a partir de células mamárias de uma ovelha adulta com cerca de seis anos, através de uma técnica conhecida como transferência somática de núcleo. Apesar das suas origens, Dolly teve uma vida normal de ovelha e deu à luz dois filhotes, sendo cuidadosamente observada em todas as fases. Em 1999, foi divulgado na revista Nature que Dolly poderia ter a desenvolver formas de envelhecimento precoce, uma vez que os seus telómeros eram mais curtos que os das ovelhas normais. Esta questão iniciou uma acesa disputa na comunidade científica sobre a influência da clonagem nos processos de envelhecimento, que está ainda hoje por resolver. Em 2002, foi anunciado que Dolly sofria de um tipo de artrite degenerativa, o que foi interpretado por alguns sectores como sinal de envelhecimento. Dolly foi abatida em fevereiro de 2003, para evitar a sua morte dolorosa por uma infecção pulmonar incurável.
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Somos ciborgues? Nanotecnologias e as conseqüências na sociedade. Entrevista especial com Marko Monteiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU