Indígenas cercados: ruralistas contra-atacam. Artigo de Gabriel Vilardi

Julgamento do Marco Temporal no STF | Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

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13 Dezembro 2025

Decidirá, por fim, a Corte de uma vez por todas que o desejo de enriquecimento dos latifundiários não está acima dos direitos fundamentais das comunidades indígenas? Ou seguirão os conchavos e as negociatas espúrias para barrar a vontade do constituinte de 1988 e do povo que apoiou fortemente a Constituição Cidadã? O Brasil, um país multicultural e pluridiverso, formado por 391 povos indígenas, não se curvará ao grito arbitrário e excludente da casa grande.

O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos. 

Eis o artigo.

“Não pensem que a floresta está morta, que tenha sido posta ali sem motivo”, ensina o Xamã Davi Kopenawa. “Se estivesse inerte, nós também não nos mexeríamos”, “é ela que nos faz mexer”, porque “está viva”. Continua o líder Yanomami, “não a ouvimos se queixar, mas a floresta sofre, como os humanos” (ALBERT; KOPENAWA, 2023, p. 59). De fato, a derrubada dos vetos à Lei de Licenciamento Ambiental vai gerar muito sofrimento e caos à Natureza. O cerco se estreita também relativamente aos povos indígenas, que dependem de seus territórios para o Bem Viver. Resistirá a Constituição Cidadã à fúria do atraso?

A tão esperada COP30 trouxe pouquíssimos avanços relevantes, pressionada por todos os lados. Cada vez mais parece sucumbir à força do capital fóssil-agroextrativista. Nessa esteira, Ailton Krenak escancara o poder do capital com a lucidez que lhe é própria: “os governos deixaram de existir, somos governados por grandes corporações”. “Quem vai fazer a revolução contra corporações?”, indaga aquele que fez um discurso histórico na Constituinte, enquanto se pintava com jenipapo. “Seria como lutar contra fantasmas”, vaticina. Afinal, “o poder, hoje, é uma abstração concentrada em marcas aglutinadas em corporações e representada por alguns humanoides” (KRENAK, 2020, p. 15-16).

O lobby das corporações interditou quaisquer medidas mais ousadas, substituindo-as por soluções suavizadas e feitas sob medida para aplacar as consciências dos setores menos adormecidos. Acontece que, como aponta Krenak (2020, p. 60), “o combustível fóssil, do qual o mundo depende hoje, já deveria ter sido abandonado na década de 1990 – todos os relatórios da época diziam isso”.

Entretanto, alguns dias antes da conferência do clima, o governo Lula autorizou a exploração de petróleo na Amazônia, em um aceno claro ao presidente do Senado, Senador Davi Alcolumbre do Amapá. O mesmo que patrocinou junto com a rainha dos agrotóxicos, a Senadora Tereza Cristina (PP-MS) a aprovação a jato da PEC 48, uma mortal flechada no coração das comunidades originárias. Referida proposta de emenda constitucional visa restringir os direitos indígenas ao inserir o marco temporal na Constituição Federal. Um evidente retrocesso em matéria de direitos fundamentais!

Como apropriadamente reconhece José Antônio Peres Gediel (2018, p. 115), “a República brasileira, em suas múltiplas crises, sofre transformações ao longo do século XX, mas o direito brasileiro se mantém demarcado por um pensamento que oscila entre o liberalismo econômico e o estatismo, sempre ignorando as populações indígenas”. Isso até a Constituição Federal que pôs fim à ditadura civil-militar de 1964.

“A Constituição de 1988 é, sobretudo, a Constituição possível, sem rupturas, mas que representa uma mudança radical no direito brasileiro” (Gediel, 2018, p. 116). Principalmente em relação aos povos indígenas, pondo fim ao anacrônico regime da tutela estatal. Nestes termos assevera Deborah Duprat sobre a irracionalidade da limitação do direito territorial dos povos originários:

“Ou seja, desde a colônia até a Constituição de 1988, os indígenas brasileiros (i) não tinham acesso, por si próprios, ao sistema de Justiça; (ii) dependiam, para tal fim, de órgãos tutelares; (iii) estiveram sujeitos, desde 1910, ao SPI e à Funai, que atuavam contra seus interesses, especialmente no que diz respeito às suas terras. Nesse cenário, é de se perguntar: quais as possibilidades reais de resistência dos indígenas ao esbulho de suas terras? Não é certamente pela via judicial, pois não tinham como acioná-la. A lei os impedia. E aqueles designados para fazê-lo em seu nome permaneciam intencionalmente inertes. Seria pelo enfrentamento direto? [...] O primeiro, e talvez mais óbvio, era a inegável desproporção de forças e poder entre os indígenas e aqueles que vinham ocupar as suas terras. Estes contavam com o total apoio do Estado, inclusive do órgão tutelar” (DUPRAT, 2018, p. 68).

Diante disso, restringir o direito à terra das comunidades originárias, além de uma insensatez eivada de forte insensibilidade, revela total ignorância histórica ou má-fé cruel contra tais povos. Isso porque apenas quem desconhece inteiramente o sanguinário processo de colonização do Brasil pode pretender impor o absurdo ônus de comprovar o “renitente esbulho”, na época da promulgação da Carta Fundamental de 1988. Conforme observado por Duprat (2018, p. 56), “não faz muito sentido ver em uma Constituição de viés emancipatório, que trata com tamanho cuidado as terras indígenas, a desconsideração dos direitos territoriais adquiridos, validando expulsão e esbulho”.

Para um dos maiores constitucionalistas do país, José Afonso da Silva (2018, p. 40), “não é correto interpretar a atual Constituição como se ela tivesse limitado os direitos ordinários dos povos indígenas às suas terras ao estado da ocupação em 5 de outubro de 1988, impedindo demarcação para etnias que só conseguiram retornar a suas terras depois dessa data”. Como ensina, se se tivesse de falar em marco temporal deve-se retroceder para a Carta Régia de 30 de junho de 1611, do Rei Felipe III ou então à Constituição de 1934. Assim explicita o consagrado jurista:

“A Constituição de 1988 é muito importante na continuidade desse reconhecimento constitucional, mas é o último elo da cadeia; portanto, não é o marco, e deslocar o marco temporal da data da promulgação da Constituição de 1934 para ela corresponde a fazer um corte violento nessa continuidade, deixando milhares de índios e suas comunidades ao desamparo, o que, no fundo, é um desrespeito às próprias regras e princípios constitucionais que dão garantia aos direitos indígenas” (AFONSO DA SILVA, 2018, p. 41).

No mesmo sentido defende Manuela Carneiro da Cunha (2018, p. 302): “é na Assembleia Constituinte de 1934 que, pela primeira vez, a questão da terra indígena passa a ser matéria constitucional”. Ao comentar o seu art. 129, a antropóloga afirma que “o fundamento, portanto, do dispositivo constitucional era o reconhecimento dos direitos originais dos índios sobre suas terras, como ‘seus primitivos donos’” (CUNHA, 2018, p. 303).

Ainda que sejam fatos históricos já repetidos inúmeras vezes, há uma maioria que segue ignorando as terríveis práticas criminosas perpetradas contra as comunidades indígenas. Nunca é demais recuperar a brutalidade do tratamento dispensado aos povos originários, mesmo que alguns insistam em acreditar na “cordialidade do brasileiro”. Escandalosamente, a violência atravessa a realidade cotidiana de milhares de famílias indígenas ao redor do país.

Apenas a título de ilustração, no ano passado, o “jovem Neri Ramos da Silva, Guarani Kaiowá de 23 anos [...] foi morto com um tiro na cabeça durante uma operação policial na TI Ñanderu Marangatu, em Antônio João (MS)”. Isso se sucedeu em uma operação violenta “contra a retomada realizada pelos indígenas na Fazenda Barra, sobreposta à terra indígena homologada há quase duas décadas” (RELATÓRIO, 2025, p. 160). Ou seja, o Estado continua a serviço da elite latifundiária em detrimento das minorias indígenas.   

Como fica claro por meio deste relato de Tonico Benites, seu povo Guarani Kaiowá foi – e continua sendo – barbaramente perseguido pelos donos do capital agrário, que sob o sangue indígena plantam soja e criam gado. Vale conferir o excerto abaixo:

“Foi principalmente nas décadas de 1950 a 1970, período marcado tanto pelo fim do monopólio da Companhia Matte Larangeira quanto pela intensificação do loteamento da região para a instalação de fazendas privadas sobre os tekoha guarani e kaiowá, que teve início uma nova ‘situação histórica’, um período de expulsão e dispersão das famílias indígenas de seus territórios. Os novos ocupantes se apossaram das terras também por meio de relações com agentes políticos locais, contando com a atuação de missionários, militares e de funcionários dos órgãos indigenistas do Estado – tanto do antigo SPI quanto da Funai. Operava-se com grande violência para expulsar os indígenas. Foi dessa maneira que, ao longo de boa parte do século XX, o Estado brasileiro passou a comercializar os territórios tradicionais guarani e kaiowá localizados no atual Cone Sul de Mato Grosso do Sul” (BENITES, 2023, p. 54).

A situação acima narrada se estende a centenas de outras comunidades originárias, que foram caçadas, massacradas e vilipendiadas nos seus direitos mais básicos. Querer abolir o direito ao território tradicional, sob o argumento de que esses povos não estavam na posse de suas terras em 1988, significa premiar a barbárie e a violação sistemática dos Direitos Humanos. Óbvio que não estavam, porque foram dispersados com violência ou forçados a fugir para poderem sobreviver ao extermínio dos senhores do agronegócio.

Em outro caso chocante que aconteceu em 2024, cerca de 200 jagunços, pertencentes ao Movimento Invasão Zero – milícia privada do agronegócio –, promoveram um massacre no sul da Bahia. Segundo o Relatório do Cimi, “os fazendeiros invadiram a área retomada pelos indígenas, fortemente armados, e dispararam contra a comunidade; além de Nega [executada], outros indígenas foram feridos por tiros, entre eles o cacique Nailton Pataxó Hã-Hã-Hãe, irmão dela” (RELATÓRIO, 2025, p. 160).   

Carlos Frederico Marés de Souza Filho afirma que as comunidades originárias são sujeitos de direitos coletivos. Um direito dessa natureza “não tem valor econômico, valor de troca, de mercadoria”. “Quer dizer, o sistema econômico e jurídico pode atribuir valor à sua proteção ou pode transformá-lo em mercadoria, enquanto expressão individual, mas não pode diminuir, restringir ou causar dano ao objeto coletivo do direito” (SOUZA FILHO, 2018, p. 82). Neste sentido pontua o jurista sobre a rasteira político-jurídica que implica sufragar o tolhimento dos direitos indígenas:

“especialmente essa interpretação da existência do marco temporal para o reconhecimento de direitos em 5 de outubro de 1988 é ardilosa em relação aos direitos coletivos porque levaria a concluir que, ao contrário do que diz a Constituição, a OIT, a Declaração da ONU e da OEA, os direitos coletivos dos povos, populações, grupos, comunidades ou sociedades indígenas, tradicionais ou tribais são constituídos pela vontade dos Estados Nacionais, nascendo, portanto, no momento da demarcação de terras. É claro que isso inverte o direito que deve ser formulado da seguinte forma: se o povo existe, tem direito a um local para viver coletivamente. O ardil do marco temporal seria: se o povo estava fora da terra em 5 de outubro de 1988, não existe” (SOUZA FILHO, 2018, p. 98).

Mas esses povos existem! Podem criar subterfúgios e abstrações jurídicas, negações absurdas e falácias políticas, ainda assim centenas de comunidades indígenas lutam pelo reconhecimento do direito ao território tradicional. E mesmo que a Lei 14.701/23 continue em vigor, ou ainda seja aprovada na Câmara dos Deputados a PEC 48 – ambas flagrantemente inconstitucionais – os povos do Bem Viver seguirão lutando por suas terras ancestrais. E sangue indígena continuará jorrando Brasil afora. Terão os ministros do STF as mãos limpas ou se deixarão convencer pelo poder da bancada ruralista e das entidades patronais do “ogronegócio”?

Capitular diante da persistente e indecente pressão da parte fascista dos fazendeiros será um retrocesso não só aos direitos indígenas, mas aos Direitos Humanos em sua integralidade. Ademais, existe um princípio, o da vedação de retrocesso, que seria triturado no caso em tela e criaria um perigosíssimo precedente. Conforme esclarecem Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer (2010), essa garantia visa “preservar o bloco normativo [...] já construído e consolidado no ordenamento jurídico, especialmente naquilo em que objetiva assegurar a fruição de direitos fundamentais, impedindo [...] a supressão ou restrição dos níveis de efetividade vigentes dos direitos fundamentais”.

De acordo com Souza Filho (2018, p. 84), “os direitos coletivos dessas comunidades ou povos nascem quando nasce o povo ou a comunidade, por isso, quando o Estado e os organismos internacionais [...] reconhecem seus direitos coletivos, inclusive sobre a terra”, o fazem “de forma atemporal”. Nesta esteira desenvolve:

“É claro que o Estado pode discutir se a terra a ser reconhecida será esta ou aquela, mas não pode não reconhecer terra nenhuma e o critério a ser discutido será de mérito, de fundamento, e não de tempo [...] Os direitos coletivos das comunidades e povos nascem com a comunidade ou povo e com elas morrem. O marco temporal, assim, é uma decretação de morte da comunidade ou povo por ele atingido, portanto, é uma violação aos direitos coletivos reconhecidos nacional ou internacionalmente” (SOUZA FILHO, 2018, p. 99).

Mas o Congresso Nacional não pode alterar a Constituição, como ameaça fazê-lo? Em tese sim, conquanto observados os requisitos do art. 60 do Diploma Constitucional. Referido dispositivo estabelece no § 4º, IV que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir” “os direitos e garantias individuais”. Então, por que não se poderia inserir o marco temporal no Texto Fundamental? Porque o art. 231 trata exatamente dos direitos fundamentais dos povos indígenas e isso é cláusula pétrea. Quer dizer, a Carta da República veda quaisquer retiradas de mencionados direitos – esses formam o núcleo mínimo e inatingível do Estado Constitucional brasileiro.

Ao Supremo Tribunal Federal cabe apenas uma só coisa, como guardião máximo da Carta Magna, declarar tais mudanças inconstitucionais e garantir a efetividade dos direitos indígenas. Evidente que a Corte deve estar submetida às mais atrozes pressões, tanto do Congresso anti-indígena quanto do poderoso lobby agroextrativista. Em meio às ameaças e ataques ao próprio Estado Democrático de Direito, pode parecer à primeira vista legítimo ceder algo em troca da preservação das instituições.

Nesse caso, renunciar aos direitos indígenas seria o “mal menor e necessário” para evitar deteriorações mais graves. Ledo engano! Diante das chantagens antidemocráticas dos inimigos da Constituição Federal só resta a firmeza e higidez da Suprema Corte. Não se pode jamais transigir com o autoritarismo criminoso e violador dos Direitos Humanos. Ceder a tais extorsões só dará mais poder ao capital agrário e enfraquecerá mortalmente a ordem constitucional vigente, já tão solapada pelo velho golpismo sempre à espreita – aliança entre os quartéis e as sedes das fazendas.

De acordo com Rubens Casara, “a crise de uma racionalidade é uma espécie de interregno de imagens hegemônicas que gera uma espécie de mal-estar” (CASARA, 2024, p. 199). E a atual racionalidade neoliberal fundada na ideologia neoproprietarista – “sacralização do ‘direito de propriedade’” (CASARA, 2024, p. 198) – há muito já faliu. Assim destaca o autor:

“Os processos de idiossubjetivação favorecem a aceitação acrítica daquilo que deveria ser percebido como absurdo. De início, inviabilizam a resistência ao que deveria ser percebido como inaceitável ou contraditório de um ponto de vista ético. Se a pessoa é fechada ao outro, não há reflexão ética possível. Passa-se a ignorar que a vida é potência de afirmação do que vale e do que não vale a pena ser vivido. Mais do que isso, a mutação da subjetividade nega que o valor mais alto é o do pensamento e, ao mesmo tempo, busca ocultar que todos são capazes da verdade, ou seja, de refletir e de agir a partir do valor verdade (e não da mentira), de identificar o que é certo e o que é errado, o que prejudica e o que não prejudica o outro” (CASARA, 2024, p. 196).

Caso a Suprema Corte entregue os territórios indígenas para os senhores do agro, o que virá depois? Os direitos das pessoas negras, dos LGBTs, das mulheres? Não se pode esquecer que “a cadela do fascismo está sempre no cio”, como avisou Bertolt Brecht. A Corte já decidiu sobre a inconstitucionalidade do marco temporal em setembro de 2023 e seria uma desmoralização total se finalmente fosse vencida pelos setores mais retrógrados do país. Se a bancada ruralista triunfar, nenhuma minoria estará segura e as conquistas democráticas de 1988 estarão à mercê da elite do atraso.

“Somos nós a praga que veio devorar o mundo”, denuncia Krenak. “Alguns têm consciência disso e gritam desesperadamente”, continua o pensador indígena. “Chico Mendes, por exemplo, morreu gritando” (KRENAK, 2020, p. 64), assim como o Ir. Vicente Cañas e a Ir. Dorothy Stang. O que está em disputa na mais alta corte do Judiciário é se o Estado de Direito se verga ao capital ou se coloca limites à selvageria capitalista. Nesta lógica assevera Krenak:

“O capitalismo quer nos vender até a ideia de que nós podemos reproduzir a vida. Que você pode inclusive reproduzir a natureza. A gente acaba com tudo e depois faz outro, a gente acaba com a água doce e depois ganha um dinheirão dessalinizando o mar, e, se não for suficiente para todo mundo, a gente elimina uma parte da humanidade e deixa só os consumidores. Uma espécie de Big Brother governando o mundo ao gosto do capitalismo. Algumas pessoas sugerem que quem sabe viver no mundo são os ricos, que a pobreza é responsável pela destruição do meio ambiente. Essa afirmação, além de ser racista e classista, é assassina. Porque alguém que está no lugar do rico dizendo que os pobres – que são 80% da população mundial – estão destruindo o planeta pode acabar sugerindo também que os pobres não precisam mais viver. A verdade é que nós não precisamos de nada que esse sistema pode nos oferecer, mas ele nos tira tudo o que temos” (KRENAK, 2020, p. 66-67).

Retirar o direito ao território tradicional das comunidades originárias além de imoral e inconstitucional significa decretar o fim desses povos e dessas culturas ancestrais. A Lei 14.701/23 aprovada semanas após o julgamento no STF, que rejeitou os artifícios anti-indígenas, já representa por si só uma inconcebível afronta ao Poder Judiciário e à própria Constituição. No mesmo sentido a PEC 48, recém chancelada pelo Senado e aguardando tramitação na Câmara dos Deputados.

Decidirá, por fim, a Corte de uma vez por todas que o desejo de enriquecimento dos latifundiários não está acima dos direitos fundamentais das comunidades indígenas? Ou seguirão os conchavos e as negociatas espúrias para barrar a vontade do constituinte de 1988 e do povo que apoiou fortemente a Constituição Cidadã? O Brasil, um país multicultural e pluridiverso, formado por 391 povos indígenas, não se curvará ao grito arbitrário e excludente da casa grande.

Os povos indígenas não irão renunciar aos seus territórios. Jamais! Porque suas tradições, suas espiritualidades e suas vidas não possuem preço. Por mais que matem, destruam, ameacem, queimem, humilhem e imponham o terror, os ruralistas perderão. A História os colocará ao lado dos piores facínoras e genocidas mais abjetos. Vencerão as comunidades originárias, vencerão as minorias, vencerão os Direitos Humanos! Vencerá a Constituição Federal e o Estado Democrático de Direito!

            

Referências

ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. O espírito da floresta. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.

AFONSO DA SILVA, José. Parecer. In: CUNHA, Manuela Carneiro da; BARBOSA, Samuel (Orgs.). Direitos dos Povos Indígenas em Disputa. São Paulo: Editora Unesp, 2018. p. 17-42.

BENITES, Tonico. Rojeroky hina ha jevy tekohape. In: CARNEVALLi, Felipe (org.). et al. Terra: antologia afro-indígena. São Paulo: Ubu Editora, 2023. p. 45-56.

CASARA, Rubens. A construção do idiota: o processo de idiossubjetivação. Rio de Janeiro: Da Vinci Livros, 2024.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Terra Indígena: história da doutrina e da legislação. In: CUNHA, Manuela Carneiro da; BARBOSA, Samuel (Orgs.). Direitos dos Povos Indígenas em Disputa. São Paulo: Editora Unesp, 2018. p. 281-317.

DUPRAT, Deborah. O marco temporal de 5 de outubro de 1988: TI Limão Verde. In: CUNHA, Manuela Carneiro da; BARBOSA, Samuel (Orgs.). Direitos dos Povos Indígenas em Disputa. São Paulo: Editora Unesp, 2018. p. 43-73.

GEDIEL, José Antônio Peres. Terras Indígenas no Brasil: o descobrimento da racionalidade jurídica. In: CUNHA, Manuela Carneiro da; BARBOSA, Samuel (Orgs.). Direitos dos Povos Indígenas em Disputa. São Paulo: Editora Unesp, 2018. p. 101-124.

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

RELATÓRIO Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil-Dados de 2024. Conselho Indigenista Missionário. 22 ed. Brasília: Cimi, 2025.

SARLET, Ingo; FENSTERSEIFER, Tiago. Breves considerações sobre os deveres de proteção do Estado e a garantia da proibição de retrocesso em matéria ambiental. Revista de Direito Ambiental, n. 58, abr.-jun. 2010.

SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Marco Temporal e Direitos Coletivos. In: CUNHA, Manuela Carneiro da; BARBOSA, Samuel (Orgs.). Direitos dos Povos Indígenas em Disputa. São Paulo: Editora Unesp, 2018. p. 75-100.

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