13 Novembro 2024
"É necessário entender o ódio de Paulo pelos primeiros cristãos em toda a sua profundidade: se Jesus tinha se considerado ciente da novidade de sua vida e de sua pregação, a ponto de afirmar: 'Felizes são aqueles que não se sentem ofendidos por minha causa' (Mt 11,6), Paulo experimenta esse escândalo ao máximo, o que pode ser resumido em seu profundo horror por um Messias que morre como um 'maldito pendurado no madeiro' ", escreve o monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado em La Repubblica, 04-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ele é considerado, com ou sem razão, o fundador do cristianismo, mas o que é certo é que o cristianismo nunca teria decolado se ele não tivesse chegado: Saulo, depois universalmente conhecido como o Apóstolo Paulo. “Saulo, também conhecido como Paulo” (Atos 13,9), é um judeu da diáspora, nascido em Tarso por volta do ano 5 d.C., descendente da tribo de Benjamim, e sua formação é a de um fiel observador da Lei Mosaica; é um homem bem formado do ponto de vista intelectual e religioso, um refinado conhecedor das Escrituras e da tradição oral de seu povo, pertencente à corrente farisaica. Mas o traço que certamente o distingue - e que também marcará sua experiência cristã - é a intensidade com que vive sua pertença religiosa: tem uma relação apaixonada com o Deus vivo, o Deus dos pais, é, por assim dizer, consumido pela fé no único Deus, é “zeloso para com Deus” (Atos 22,3), tanto que às vezes parece radical, rigorista, muito exigente consigo mesmo e com os outros.
Portanto, é fácil entender como, ao entrar em contato com o movimento de Jesus, sua primeira reação é odiá-lo, considerando-o uma ameaça às tradições dos pais; Paulo sente horror pelos primeiros seguidores de Jesus e sente o dever de perseguir obstinadamente a nova “via” e seus seguidores. É necessário entender o ódio de Paulo pelos primeiros cristãos em toda a sua profundidade: se Jesus tinha se considerado ciente da novidade de sua vida e de sua pregação, a ponto de afirmar: “Felizes são aqueles que não se sentem ofendidos por minha causa” (Mt 11,6), Paulo experimenta esse escândalo ao máximo, o que pode ser resumido em seu profundo horror por um Messias que morre como um “maldito pendurado no madeiro”.
E é aqui que, por volta do ano 35 d.C., nessa situação de aversão radical por parte de Paulo, nessa distância intransponível do Senhor Jesus, é o próprio Senhor que se aproxima dele na estrada de Damasco, jogando-o no chão e cegando-o com uma luz fulgurante: “Saulo, Saulo, por que me persegues? E eu respondi: Quem és, Senhor? E disse-me: eu sou Jesus Nazareno, a quem tu persegues” (Atos 22,7-8).
Como comentar os relatos que tentam balbuciar a experiência inexprimível da morte de Saulo de Tarso e o concomitante nascimento de Paulo, “apóstolo dos gentios” (Rm 11,13), livre prisioneiro de Jesus Cristo? Uma excelente interpretação é oferecida pelo Cardeal Gianfranco Ravasi na última de suas inúmeras publicações: Ero un blasfemo, un persecutore e un violento, Biografia di Paolo [Eu era um blasfemador, um perseguidor e um violento. Biografia de Paulo]. O livro, que é um itinerário evocativo e original através da figura e dos escritos de Paulo, não poderia deixar de começar com a famosa cena da queda do cavalo na estrada para Damasco, que marca um antes e um depois na vida do homem que, de Saulo, o perseguidor dos cristãos, se tornará Paulo, o apóstolo dos gentios.
A conhecida habilidade narrativa de Ravasi, aliada a uma exegese refinada e à capacidade de fazer os textos bíblicos dialogarem com a literatura de cada época e com as obras de grandes artistas, acompanha o leitor pela mão à realidade daquele que, para o cristianismo, não é um dos apóstolos, mas o apóstolo por excelência.
Ravasi evoca a atualização singular do apóstolo que Pierpaolo Pasolini esboçou em um rascunho de roteiro para um filme sobre São Paulo que nunca teve oportunidade de realizar. Pasolini escreveu: “Paulo está aqui, hoje, entre nós. Ele destrói revolucionariamente, com a simples força de sua mensagem religiosa, um tipo de sociedade fundada na violência de classe, no imperialismo e na escravidão”.
Gianfranco Ravasi retoma a provocação de Pasolini que visava sacudir, provocar e interrogar o cristianismo atual com a mensagem ao mesmo tempo teológica e pastoral de Paulo.
“O apóstolo”, escreve o autor, ”sacudiu o cristianismo nascente com o poder criativo de seu pensamento e a paixão de sua ação”. Paulo, “o outro”, o apóstolo diferente, colocado ao lado de Pedro em sua alteridade, quase para garantir desde o início que a igreja cristã seja sempre plural e nutrida pela diversidade.
Judeu da diáspora, originário de Tarso, capital da Cilícia, subiu a Jerusalém para se tornar escriba e rabino no séquito de Gamaliel, um dos mais famosos mestres da tradição rabínica, Paulo era um fariseu, especialista e zeloso da lei de Moisés, que não conheceu Jesus nem seus primeiros discípulos, mas que se destacou na oposição e na perseguição ao nascente movimento cristão. Na estrada para Damasco, no entanto, um encontro com Jesus ressuscitado, a conversão e a revelação também ocorreram para Paulo, pois, como o próprio Paulo confessa, “quando aprouve a Deus, me chamou pela sua graça a revelar seu Filho em mim” (Gl 1,15-16).
Paulo se define um “abortivo” (1Cor 15,8) em comparação com os outros apóstolos que tinham visto o Senhor Jesus ressuscitado, mas pedia para ser considerado um enviado, um servo, um apóstolo de Jesus Cristo igual a eles, porque tinha colocado sua vida a serviço do Evangelho, tinha se feito imitador de Cristo até mesmo em seus sofrimentos, tinha se desdobrado em viagens apostólicas por todo o Mediterrâneo oriental, era habitado por uma solicitude por todas as igrejas de Deus. Sua paixão, sua inteligência e seu empenho com a proclamação do Senhor Jesus transparecem em todas as suas cartas, e os Atos dos Apóstolos também dão testemunho sincero disso. Ele é, por sua própria definição, “o apóstolo dos gentios”, assim como Pedro é “o apóstolo dos circuncisos” (Gl 2,8).
Não é por acaso que a tradição litúrgica latina uniu em uma única celebração a festa de Paulo e Pedro unidos no martírio em Roma, ambos discípulos e apóstolos de Cristo, e ainda assim tão diferentes: Pedro um pobre pescador, Paulo um intelectual rigoroso; Pedro um judeu palestino de um vilarejo obscuro, Paulo um judeu da diáspora e cidadão romano; Pedro lento em entender e agir em consequência, Paulo consumido pela urgência escatológica... Um prefácio gaulês do século VII diz: “Pedro negou para crer melhor, Paulo foi cegado para ver melhor... um abre, o outro deixa entrar: ambos recebem o Reino eterno”.
Sugestivas são as páginas dedicadas por Ravasi à expressão autobiográfica paulina “fui conquistado por Cristo Jesus” (Fl 3,12). Paulo experimenta ser amado e chamado por Deus, por meio de Jesus, justamente quando o odeia com todas as suas forças, e esse evento abala todos os seus mecanismos de defesa, a ponto de torná-lo uma pessoa diferente: ele se converte e começa a amar com paixão Jesus Cristo, “seu Senhor” (cf. Fl 3,8). Ser amado na própria capacidade para o bem, na própria parte de luz, é possível e humanamente bastante comum, mas ser amado no próprio pecado, na própria escuridão, aliás, no exato momento em que se odeia o outro, é algo inédito: no entanto, é exatamente isso que a relação de Paulo com Jesus lhe permitiu experimentar, é isso que o perturbou a ponto de mudá-lo! Isso é o que ele se empenhará a testemunhar com toda a sua vida, o verdadeiro e próprio fundamento de sua evangelização, assim expresso pelo apóstolo em sua plena maturidade.
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Ele odiou Cristo com todas as suas forças, mas depois fundou o cristianismo. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU