08 Outubro 2024
Atena Beauvoir (PSOL) e Natasha Ferreira (PT) fizeram mais de 4 mil votos cada.
A entrevista é de Betina Gehm, publicada por Sul21, 07-10-2024.
Somando 8,9 mil votos, Atena Beauvoir (PSOL) e Natasha Ferreira (PT) são as primeiras candidatas travestis a se elegerem como vereadoras de Porto Alegre. As duas estão entre as 26 pessoas trans eleitas para as Câmaras Municipais do Brasil nas eleições de 2024. Apesar do pioneirismo na capital gaúcha, o número nacional ainda é menor que o de 30 pessoas trans eleitas em 2020.
As vereadoras recém-eleitas falaram com o Sul21 sobre como emplacar projetos em meio a um parlamento majoritariamente conservador e sobre os planos para a Capital.
Qual a importância de haver, pela primeira vez, uma Bancada Trans na Câmara Municipal?
Natasha: Acho que é uma necessidade. Em 2018, tivemos a eleição de Jair Bolsonaro e uma onda de ódio. A gente vê, na Câmara, as pessoas falando de ideologia de gênero, que crianças trans não existem, que crianças não podem frequentar a parada LGBTQIA+. O movimento LGBTQIA+ é um motor que a extrema direita utiliza para espalhar fake news. A sociedade dá uma resposta a isso quando consegue eleger duas travestis de uma tacada só. Pessoas como nós nunca estiveram nesses espaços de tomada de decisão. Somos nós que agora, por quatro anos, estaremos tomando decisões sobre a vida das pessoas. Quando nós falamos de educação, essa não é uma disputa sobre banheiro unissex; é para dizer que quase 30% das escolas na cidade não têm banheiro.
Atena: Acho que a importância é da mesma magnitude quando se tem uma Bancada Negra ou quando temos vereadores vinculados com o que acontece na rua. Existe uma história nova sendo escrita em Porto Alegre na temática LGBTQIA+. Um dos primeiros efeitos da Bancada Trans é a influência positiva sobre uma sociedade que também é influenciada pelo povo LGBTQIA+. Todo o negacionismo levantado pela extrema direita é corruptivo, é para nos desumanizar.
Dizem que Atena vai falar só de hormônio e banheiro unissex, mas vou falar também sobre como o Plano Diretor tem que estar vinculado às pessoas. Não se pode colocar, no centro do Plano Diretor, prédio, estrada, tijolo. Quando se começa a vincular a questão urbanística ao processo de ampliação de prédios, em um momento em que a reduzimos a população, é uma contradição. Quem ganha com isso? Não tem como pensar que sai do nada a ideia de empresários construir prédio onde não temos pessoas morando, onde temos impacto político e social por conta da marginalização da vida pública. Vivencio, enquanto travesti e moradora do Centro Histórico – mas já morei na Cidade Baixa, na Lomba do Pinheiro, no Rubem Berta –, que o que se quer fazer é extinguir a possibilidade de uma identidade juvenil de vivenciar a cidade.
O que vocês acreditam que podem realizar numa Câmara de maioria conservadora?
Natasha: Precisamos de muita unidade. Nossos corpos são alvos de ódio e pautas como a chamada ideologia de gênero mobilizam a extrema direita. Precisamos focar em debates mais sérios, na reconstrução da cidade. A Câmara está falando de banheiro unissex, mas não está falando do horror que está o transporte público. Acho que os conservadores têm pautas morais como a grande cartada, e na surdina votam em projetos que tiram direitos dos trabalhadores. Agora vai ser mais difícil falar sobre ideologia de gênero, comigo e com a Atena lá dentro. Uma coisa é falar para quem é simpatizante, outra coisa é dizer para duas pessoas trans que crianças trans não existem. E nosso poder de voto na Câmara é o mesmo.
A gente precisa falar da reconstrução da Porto Alegre. Tenho um projeto sobre centros de referência em atendimento psicológico para as vítimas da enchente. A nossa cidade adoeceu, porque a rede [de saúde mental] está completamente desmontada. Toda vez que chover, agora, a gente vai ter medo. Esse medo não pode ser o motor da cidade.
Atena: A principal articulação que se pode ter num parlamento conservador é auxiliar as pessoas que estão fora da Câmara. O parlamento é tão conservador, é tão classista, que o horário de trabalho dos parlamentares é quando boa parte da população está trabalhando. Além de conservador, é elitista. Nosso papel é fazer com que as pessoas que votaram em nós, e não somente elas, possam acessar e influenciar o debate público no parlamento. Que as nossas vozes possam dar continuidade às experiências vividas na rua. Tem um ditado que diz assim: existem portas que só se abrem por dentro. Nosso papel é abrir as portas por dentro.
A Bancada Negra fez isso em 2020. Em 2022, se elegeu a Bancada Negra a nível estadual, e, se não fosse, isso não teríamos denúncias explícitas de trabalho análogo à escravidão. Quantas violências eu e Natasha vamos descobrir? E o grande desafio é como solucionar esses problemas. Acredito que a gente tenha esse duplo trabalho, especialmente por sermos de partidos de esquerda: estarmos com pessoas na rua e levarmos [à Câmara] o que as pessoas desejam.
O que mudou desde as outras eleições em que vocês se candidataram mas não foram eleitas? É possível traçar um paralelo com a eleição da Bancada Negra em 2020?
Atena: Acredito fortemente que a Bancada Negra influencia, sim, a dinâmica eleitoral e a discussão da quantidade de votos que se pode ter uma figura pública negra, LGBTQIAP+ ou com deficiência. Mas o que mais influenciou essa categoria especial, que é a eleição do que tenho chamado de ‘Bancada do Arco-Íris’, é a eleição da Erika Hilton (PSOL) em 2022 e seu trabalho no Congresso Federal desde aquele ano. Em dois anos, a gente sente o impacto positivo aqui em Porto Alegre de uma travesti negra de São Paulo sem ela não ter pisado os pés aqui ainda.
Natasha: A política é feita de ondas. Em 2020, tivemos a Bancada Negra, mas essa pauta anda lado a lado com a pauta LGBTQIAP+. As opressões sociais são muito parecidas, então a gente acaba dividindo esses espaços. A Erika Hilton tem um trabalho de nacionalização de uma travesti operando a política, e isso acaba criando um efeito cascata. Tem também a Duda Salabert (PDT) em Minas Gerais. Existe um mapa de pessoas trans e travestis nesse momento. Acho que a sociedade, de quatro em quatro anos, vai começar a fazer um balanço mais crítico sobre quem votou contra o povo, quem apresentou projetos relevantes. As pessoas perderam o medo. Antigamente, votar numa travesti era quase um voto de protesto, como votar no Tiririca. Hoje, as pessoas veem como um voto sério.
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“Não é sobre banheiro unissex”: Porto Alegre elege primeiras travestis para a Câmara. Entrevista com Atena Beauvoir e Natasha Ferreira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU