21 Agosto 2024
"A sequência de ensaios se orienta em uma trilogia que vai da mística propriamente dita, em suas variegadas articulações à devoção mais geral e à poesia, onde brilham figuras que hoje pertencem ao cânone literário", escreve Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 18-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mulheres e mística. Dois livros oferecem retratos de religiosas dedicadas à escrita e a narrativa de objetos e situações daquele mundo intransponível que é a clausura.
É uma das pessoas mais cultas e criativas que já conheci: estou falando de Giovanni Pozzi, um frade capuchinho do Ticino, grande estudioso da literatura religiosa, de suas estruturas teóricas, de sua gramática e retórica e de sua qualidade estética. Da vizinha Lugano, ele vinha com frequência à Biblioteca Ambrosiana de Milão, que eu então dirigia, e era sempre um verdadeiro prazer intelectual conversar com ele. Um dos primeiros textos que me presenteou foi uma admirável antologia que havia preparado com outro grande especialista, Claudio Leonardi, do emblemático título Scrittrici mistiche italiane (Escritoras místicas italianas, em tradução livre, Marietti 1988).
De fato, o Pe. Pozzi tinha se dedicado de modo original ao estudo de um patrimônio literário ignorado ou marginalizado, aquele feminino, indo além das figuras já conhecidas, como Clara de Assis, Ângela de Foligno, Catarina de Siena e Maria Maddalena de' Pazzi. Era um horizonte denso de presenças contemplativas dotadas de uma sutileza e até mesmo de uma genialidade de escrita e de temas. Ele havia, entre outras coisas, desmitificado a ideia de que a mística feminina era apenas uma mística nupcial aberta à união amorosa com Jesus, saturada de excessos sentimentais. Na realidade, além dessa dimensão, descobriam-se sistematicamente intuições de natureza teológica, às vezes sofisticadas, que entrelaçavam reflexão e paixão, essência e existência, teoria e experiência. O Padre Pozzi morreu em 20 de julho de 2002 (tinha nascido em 1923) e, em um de nossos últimos encontros - dessa vez em Lugano, na esplêndida biblioteca dos frades, criada por nosso amigo comum, o arquiteto Mario Botta -, ele me presenteou com outra sua coletânea de ensaios, de título igualmente significativo, Grammatica e retorica dei santi (Gramática retórica dos Santos, em tradução livre, Vita e Pensiero 1997), onde novamente brilhavam as figuras femininas.
Foto: divulgação
Esta longa premissa é apenas para apresentar dois livros que pertencem à mesma genealogia de pesquisa e que são colocados sob a égide da série “Donne fedi culture” dentro daqueles “Temi e testi” (Temas e textos) que as prestigiosas Edizioni di Storia e Letteratura (criada em homenagem a outro extraordinário eclesiástico do século XX, Dom Giuseppe De Luca) vêm desenvolvendo há anos.
O primeiro tem o título Rivelazioni (Revelações) e, portanto, abre um vislumbre sobre a iluminação mística em todas as suas nuances. As protagonistas são mulheres escritoras, ativas na Itália entre os séculos XVI e XVII; no entanto, no final, aparecem também rostos masculinos que dirigem suas páginas para clarissas, viúvas ou para um público feminino, por assumirem uma ideal cítara dos divinos louvores. A sequência de ensaios se orienta em uma trilogia que vai da mística propriamente dita, em suas variegadas articulações à devoção mais geral e à poesia, onde brilham figuras que hoje pertencem ao cânone literário, como Vittoria Colonna e Gaspara Stampa. Não faltam curiosidades evocativas, como a Tortore Smarita, da monja beneditina do século XVII Pietra Margherita del Sale, páginas “imbuídas de sentimentos culpa, nutridas com o sofrimento de Cristo”, que aspiram a embalar o menino Jesus e sublimar os instintos femininos e maternais. Também surpreendentes são os Hieróglifos Morais da veneziana Maria Alberghetti, pertencente à congregação religiosa das Dimesse, autora de várias composições poéticas.
Interessante também é penetrar no mundo das freiras milanesas Angélicas, que respiram a atmosfera borromeana, enquanto uma estudiosa eslovena nos apresenta a oração contemplativa de duas elevadas figuras, como a já mencionada Maria Maddalena de' Pazzi e Caterina de Genova.
Dezessete estudiosas e cinco estudiosos estão reunidos nessa operação de escavação de um impressionante repertório espiritual, enquanto mais de vinte são aqueles que constroem a segunda coleção de estudos no outro livro com o sugestivo título Fra le mura del chiostro (Entre os muros do claustro). Trata-se de uma espécie de “filme” de micro-histórias e histórias da vida cotidiana ocorridas nos mosteiros femininos de clausura entre os séculos XV e XIX. Mais especificamente, o contexto no qual essa pesquisa floresceu é o do “Museu da Cotidianidade” no mosteiro de Santa Rosa em Viterbo. Poderíamos, portanto, quase falar de uma galeria de pinturas com cenas coloridas que retratam eventos, situações e até mesmo objetos daquele mundo intransponível que é a clausura.
Aqui também, diante de uma vasta documentação acompanhada por uma deliciosa série de imagens fotográficas, é possível - dentro dos limites desta que é apenas uma evocação – assinalar algumas sugestões. Pensemos, por exemplo, nos admiráveis relicários feitos de tecido e papel, reveladores de uma extraordinária habilidade manual, nos trabalhos em cerâmica personalizados com grafite, na apurada contabilidade que se transforma em memorialística, nos cardápios e nas receitas das mesas monásticas que permitem vislumbrar a passagem dos dias da semana e festivos, nos registros de arquivo que revelam não apenas a contabilidade, mas também os pequenos e grandes eventos por trás delas.
Por meio das meticulosas pesquisas dos vários ensaios dessa antologia, se escancaram as portas e se superam os muros da clausura, e conseguimos acompanhar a vida das monjas que rezavam, trabalhavam, cozinhavam, costuravam, escreviam e ficavam em silêncio. Sim, porque cada ato e palavra eram rodeados por um halo de silêncio “branco” que - como essa cor - unia em todo outro som ou voz de maneira inefável.
Erminia Ardissino e Elisabetta Selmi (orgs.), Rivelazioni, Edizioni di Storia e Letteratura, pp. 486.
Paola Pogliani e Eleonora Rava (orgs.) Fra le mura del chiostro, Edizioni di Storia e Letteratura, pp. 348.
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O conforto fecundo do silêncio. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU