25 Junho 2024
“Quase um século depois, a França vive a angústia de ter a extrema-direita latindo à sua porta e a reação da esquerda é a mesma de antes”, analisa Rudá Ricci, sociólogo, com larga experiência em educação e gestão participativa, diretor do Instituto Cultiva.
Eis o artigo.
Uma das novidades à esquerda para enfrentamento da extrema-direita vem da França, justamente o país onde o extremismo parece estar em ascensão. A vida é assim: resolvemos começar a fazer exercícios quando estoura a nossa taxa de colesterol ou glicemia.
As frentes populares não são saídas novas para a esquerda europeia. Durante a ascensão do fascismo, Espanha e França criaram suas frentes de esquerda e desfecharam programas reformistas tendo a intervenção estatal na economia e a adoção de legislação laboral progressista seus motes principais. Em 1936, a Frente Popular francesa articulou socialistas e comunistas e conseguiu 376 lugares no parlamento (contra Frente Nacional, de direita, que obteve 222 lugares).
A Frente Popular francesa formou, então, um governo sob a liderança de Léon Blum que montou um gabinete formado pelo Partido Socialista e o Partido Radical, incluindo três mulheres. O Partido Comunista optou por não integrar o governo.
Outra Frente Popular foi formada nas eleições legislativas de 2022, chamada NUPES (Nouvelle Union Populaire Écologique et Sociale) e foi uma união provisória que obteve 179 cadeiras, bem distante da metade das 577 cadeiras, recheada de diferenças e desacordos. Os ataques do Hamas à Israel geraram forte reação na opinião pública que acabaram para apelidar Mélenchon e a França Insubmissa de “antissemitas”.
Quase um século depois, a França vive a angústia de ter a extrema-direita latindo à sua porta e a reação da esquerda é a mesma de antes. Evidentemente que desperta curiosidade entre analistas políticos.
Consultei minha principal fonte na França, o franco-brasileiro Rafael Laboissière, vereador numa localidade próxima de Grenoble, sudeste francês. A região está localizada no sopé das montanhas entre os rios Drac e Isère e é conhecida pelos esportes de inverno, museus, universidades e centros de pesquisa. A localização não tem relação direta com o tema, mas revela que Rafael é um privilegiado.
Perguntei sobre os motivos e pertinência da Nova Frente Popular francesa. Sua resposta começa com um alerta: “era a única opção possível para a esquerda francesa. Era isto ou eles desapareciam de vez”.
O resultado imediato, analisado pelos especialistas franceses, é que a bancada de Macron (uma espécie de Eduardo Leite que deu certo) deve desidratar, como normalmente ocorre quando a Terceira Via é esmagada pela polarização ideológica. Rafael explica que como o sistema de eleições legislativas na França é distrital com dois turnos, deve ocorrer vários duelos de segundo turno entre o Front Populaire (de esquerda) e o Rassemblement National (extremista de direita).
E é aí que Macron se perde já que seu eleitorado se posiciona como centro burguês e detesta os “extremos”, tendendo a se abster ou votar em branco.
Rafael projeta a formação de três blocos após as eleições parlamentares que se detestam, o que poderá levar à forte instabilidade institucional que durará ao menos um ano (o intervalo legal entre duas dissoluções).
Mas, retornando à Nova Frente Popular, parece não existir certezas em relação à sua força eleitoral ou mesmo, em caso de vitória, a capacidade de definição de um gabinete minimamente coeso. Cogita-se, ainda, que os extremistas tendem se aliar à direita tradicional, Les Républicains, que hoje tem grandes chances de se tornar um partido nanico.
A França tem, ainda, entraves constitucionais para conter avanços da extrema-direita. A Constituição Francesa de 1958, parida por De Gaulle, dá amplos poderes ao Presidente, o que o torna uma pessoa potencialmente perigosa para as próprias instituições. Se os extremistas de direita, liderados por Marine Le Pen, emplacarem um primeiro-ministro e um presidente logo mais, as chances da França seguir o caminho da Hungria passam a ser muito fortes.
De qualquer maneira, a esquerda francesa parece mais atenta que a brasileira. No preâmbulo do programa do Nouveau Front Populaire se destacam:
1. O Nouveau Front Populaire reúne mulheres e homens de organizações políticas, sindicais, comunitárias e cívicas que estão unidos na construção de um programa para romper com as políticas de Emmanuel Macron, respondendo a questões sociais, ecológicas, democráticas e de paz urgentes;
2. Lutamos contra o projeto racista e socialmente destrutivo da extrema-direita e queremos impedir que ela chegue ao poder;
3. Rejeitamos os ataques às nossas liberdades democráticas e a repressão às forças e associações sociais, que foram particularmente pisoteadas nos últimos anos;
4. E, por isso, nossos parlamentares estão comprometidos com a defesa desses princípios éticos durante todo o mandato, rejeitando a disseminação de informações falsas, calúnias, cyberbullying e incitação ao ódio, inclusive na Internet.
Vale a pena acompanharmos a evolução desta iniciativa da esquerda francesa. É algo que eu denominaria de “resistência ativa” porque dá a cara da esquerda para a população de seu país. Se esconder numa ampla coalizão de governo embaça a identidade do eleitor porque pode parecer que todos estão por lá, mas se percebe que alguém sai ganhando mais que outros. Normalmente, quem ganha são os poderosos de sempre.
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A alternativa da Nova Frente Popular francesa. Artigo de Rudá Ricci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU