14 Março 2024
“É muito bom que Lula critique o genocídio em Gaza, mas não deveria se ocupar com igual ênfase em enfrentar os fazendeiros que criam grupos paramilitares contra os indígenas e os sem-terra?”, questiona Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por Desinformémonos, 11-03-2024. A tradução é do Cepat.
Segundo ele, "ou o PT não quer enfrentar o agronegócio, que é parte significativa da base social de Bolsonaro, tornando-se cúmplice dos paramilitares, ou então não pode, ainda que desejasse colocar limites ao grande capital agrário".
"Com qual objetivo a esquerda quer ser governo? - pergunta o analista político -. Porque no caso hipotético de que realmente anseie fazer mudanças (algo que os fatos desmentem, por certo), não poderá fazê-las, pois as instituições que pretende dirigir não permitem, foram criadas para outra coisa.
No dia 4 de março, o cacique Merong foi encontrado morto com sinais de estrangulamento. Era integrante da recuperação de terras Kamakã Mongoió, em Brumadinho, região metropolitana de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Esta recuperação enfrenta a multinacional Vale do Rio Doce, que proibiu que o cacique fosse enterrado na terra recuperada. A mineradora Vale é responsável pela morte de 272 pessoas, quando uma barragem com águas residuais da mina Córrego do Feijão rompeu e derramou lama tóxica que soterrou o povo.
Merong pertencia ao povo Pataxó-hã-hã-hãe, originário do sul da Bahia (nordeste), povo que sofreu o assassinato da líder María de Fátima Muniz de Andrade, Nega Pataxó, no dia 21 de janeiro.
Nega foi a 31º indígena assassinada, desde 2012, naquele território. Os crimes apresentam o mesmo padrão, ainda que se pretenda tratar a morte de Merong como suicídio. Seus responsáveis são membros do grupo Invasão Zero, criado em março de 2023 por fazendeiros do estado da Bahia para reverter ou impedir ocupações de terras por povos indígenas e camponeses sem terra reunidos no MST.
Invasão Zero é um grupo paramilitar rural que se formou após a ocupação da Fazenda Ouro Verde, em Santa Luzia, interior da Bahia. Organizaram-se por meio de grupos de WhatsApp, conseguiram o apoio de 5.000 ruralistas e inspiraram grupos semelhantes em pelo menos nove estados, além da criação de uma Frente Parlamentar com o mesmo nome no Congresso, de cujo lançamento Jair Bolsonaro participou.
Segundo o jornal Brasil de Fato, o Invasão Zero tem inclusive um estatuto, conta com o apoio de empresários e associações do agronegócio, uma equipe de jornalistas que contribui para melhorar a sua imagem e distribui cartilhas entre os fazendeiros para orientá-los na “proteção das propriedades” (Brasil de Fato, 30 de janeiro de 2024).
Em abril de 2023, membros do Invasão Zero, juntamente com policiais militares, cercaram famílias do MST em uma área destinada à reforma agrária na Bahia. Isto demonstra, assim como com o assassinato de Nega Pataxó, que os fazendeiros e as polícias militares trabalham juntos, como costuma acontecer com todos os grupos paramilitares do Brasil e da América Latina.
O defensor regional dos Direitos Humanos da Bahia, Erik Boson, disse ao jornal O Globo que a situação é “caótica” no sul do estado, devido ao confronto entre fazendeiros e povos indígenas. “Falta presença do Estado e demarcação das terras indígenas. O caos é total, com ausência e omissão dos governos estadual e federal” (O Globo, 22 de janeiro de 2024).
O defensor afirma que a situação não mudará, porque apesar das cobranças feitas às instituições federais, não há sinais de mudanças. “Diversos territórios indígenas na região do conflito já finalizaram o processo de demarcação e aguardam a decisão do Ministério da Justiça, que está atrasada por razões não identificadas, o que leva a crer que se trata de razões meramente políticas”, conclui Boson.
O governo baiano está nas mãos do Partido dos Trabalhadores - PT desde 2007. O governo federal é presidido por Lula, também do PT, e a ministra dos Povos Indígenas é Sônia Guajajara, integrante do Partido Socialismo e Liberdade - PSOL, que dizem defender os povos indígenas. Por isso, vale se perguntar: o que fazem os governos do PT, em nível federal, e da Bahia? O que faz o Estado que eles administram para prevenir esses crimes escandalosos?
É muito bom que Lula critique o genocídio em Gaza, mas não deveria se ocupar com igual ênfase em enfrentar os fazendeiros que criam grupos paramilitares contra os indígenas e os sem-terra?
Neste ponto, penso que cabem duas grandes opções. Ou o PT não quer enfrentar o agronegócio, que é parte significativa da base social de Bolsonaro, tornando-se cúmplice dos paramilitares, ou então não pode, ainda que desejasse colocar limites ao grande capital agrário.
A primeira questão é lembrar que Lula chegou ao governo apoiado por uma aliança de centro, na qual o agronegócio tem o seu peso, como aconteceu nos governos anteriores de Lula e Dilma Rousseff. O atual ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, foi vice-presidente da Associação dos Produtores de Soja do Brasil. Contou com o apoio de pessoas como o ex-ministro da Agricultura do governo Dilma, Blairo Maggi, o maior produtor individual de soja do mundo, batizado como “O Rei da Soja”.
É verdade que o agronegócio apoiou em massa Bolsonaro, mas Lula está fazendo tudo o que é possível para evitar o mínimo confronto com o setor. A tal ponto que lançou o Plano Zafra 2023/2024 que oferece 27% a mais de recursos do que no ano anterior, um total de 364 bilhões de reais em empréstimos para grandes, médios e pequenos produtores.
A segunda questão é que qualquer governo latino-americano se choca, hoje, com instituições que foram sequestradas pelo capital, do governo federal aos governos estaduais, do aparelho de justiça à polícia e às forças armadas.
O jornalista Jeferson Miola, do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica - CLAE, sustenta, com base em investigações da Polícia Federal do Brasil, que na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, quando grupos ligados a Bolsonaro entraram violentamente no Congresso em Brasília, houve um claro “envolvimento institucional das Forças Armadas com o golpe” (Rebelión, 5 de março de 2024).
Acrescenta que o motim foi um empreendimento “estruturado e desenvolvido na hierarquia militar”, que os acampamentos dos bolsonaristas foram financiados por empresários e contaram “com infraestrutura garantida nas próprias áreas”, embora o Supremo Tribunal Federal os considerasse “ilegais e criminosos”.
Conclui: “o acampamento do Quartel-General do Exército funcionou como logística estratégica da e para as ações terroristas e golpistas”.
Isso nos diz que não houve um alto comando, um general ou um tenente-coronel associado a um golpe para evitar que Lula ascendesse à presidência assumida em 1º de janeiro de 2023, mas, sim, houve uma instituição envolvida no golpe. Isto explica as razões pelas quais a Polícia Militar atua ao lado dos fazendeiros formando comandos paramilitares. São instituições que fazem parte de um Estado colonial/patriarcal a serviço da acumulação por espoliação ou roubo.
O preso político mapuche Héctor Llaitul, que em breve será julgado pela justiça do Estado chileno, disse isto: “Sob a atual institucionalidade, com um Estado capitalista e de natureza profundamente colonial, prevalecerão sempre as posições conservadoras, racistas e os interesses econômicos da oligarquia” (Rádio Kurruf, 3 de março de 2024).
Se é assim, com qual objetivo a esquerda quer ser governo? Porque no caso hipotético de que realmente anseie fazer mudanças (algo que os fatos desmentem, por certo), não poderá fazê-las, pois as instituições que pretende dirigir não permitem, foram criadas para outra coisa.
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Invasão Zero: paramilitares sob o progressismo. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU