02 Março 2024
“Os Estados Unidos continuarão a dar prioridade às suas preocupações econômicas, sociais, ambientais e de segurança nacional, e a China não abandonará o seu modelo econômico impulsionado pelo Estado. A cooperação não estará na ordem do dia. Mas poderá ficar um pouco mais fácil se os países reconhecerem que suas políticas não são muito diferentes ou necessariamente prejudiciais para o outro lado”. A reflexão é de Dani Rodrik, economista turco e professor de Economia Política da Fundação Ford e da Universidade Harvard, em artigo publicado por El Economista/Project Syndicate, 27-002-2024. A tradução é do Cepat.
É comum pensar que as tensões entre os Estados Unidos e a China são o resultado inevitável das suas gritantes diferenças. Os Estados Unidos têm uma economia de mercado totalmente capitalista, enquanto o governo chinês mantém uma mão firme sobre o leme econômico. Apesar de todas as suas lacunas, os Estados Unidos são uma democracia, enquanto a China é um regime de partido único que não tolera desafios políticos. Embora os Estados Unidos continuem a ser o país mais poderoso do mundo, o crescente poder econômico e geopolítico da China ameaça a hegemonia estadunidense.
Mas embora tudo isto seja verdade, muitos conflitos entre os Estados Unidos e a China surgem de seus crescentes pontos em comum. O declínio relativo dos Estados Unidos tornou-os mais inseguros, o que os levou a implementar políticas econômicas e de segurança nacional que refletem a própria estratégia de décadas da China de dar prioridade à fortaleza econômica nacional e à renovação em detrimento das exigências de uma economia aberta e “liberal”. Paradoxalmente, à medida que os Estados Unidos emulam estratégias que serviram muito bem à China, as tensões na relação bilateral multiplicam-se.
Embora a China tenha se voltado para os mercados depois de 1978 e liberalizado significativamente a sua economia, as políticas do Partido Comunista Chinês refletiram mais do que apenas a procura do crescimento econômico. Faziam parte de um projeto nacional de rejuvenescimento destinado a restabelecer a China como uma grande potência. Consequentemente, a China jogou o jogo da globalização segundo as suas próprias regras, protegendo e promovendo as suas próprias indústrias, ao mesmo tempo que tirava partido dos mercados externos. O Estado nunca teve vergonha de intervir e subsidiar o que considerava indústrias estratégicas (seja do ponto de vista comercial ou de segurança nacional).
Ouvi certa vez um político chinês descrever esta estratégia como “abrir a janela, mas colocar uma tela”. A economia chinesa receberia ar fresco (tecnologias estrangeiras, acesso aos mercados globais, fatores de produção críticos), mas impediria a entrada de elementos prejudiciais, como os fluxos de capital desestabilizadores a curto prazo, a concorrência excessiva que poderia prejudicar as suas capacidades industriais nascentes ou as restrições às ações do governo e a capacidade de conduzir a política industrial.
O fenomenal crescimento econômico da China foi, em última instância, uma bênção para a economia global, uma vez que criou um enorme mercado para as empresas e os investidores de outros países. Além disso, as suas políticas industriais verdes deram uma contribuição substancial para a transição global para uma economia de baixo carbono ao reduzir os preços da energia solar e eólica.
Naturalmente, outros países queixaram-se das práticas intervencionistas e mercantilistas da China. Mais importante ainda, a rápida expansão das exportações chinesas – o chamado choque da China – causou estragos econômicos e sociais nas comunidades industriais mais atingidas e nas regiões mais atrasadas das economias ocidentais, o que criou um terreno fértil para a eventual ascensão de populistas autoritários de direita, como Donald Trump. No entanto, embora as políticas das economias avançadas tenham sido impulsionadas por uma lógica consumista e fundamentalista de mercado, estes efeitos não causaram uma enorme tensão nas relações com a China.
Pelo contrário, muitas elites intelectuais e políticas pensavam que as abordagens econômicas ocidentais e chinesas eram complementares e apoiavam-se mutuamente. Os historiadores Niall Ferguson e Moritz Schularick cunharam o termo “quimérica” para descrever a relação aparentemente simbiótica em que a China subsidia as suas indústrias e o Ocidente consome alegremente os produtos baratos que a China lhe envia. Embora esta concepção tenha reinado no Ocidente, os trabalhadores e as comunidades que perderam receberam pouca ajuda ou simpatia; foi-lhes dito que deveriam se recapacitar e mudar para áreas com melhores oportunidades.
Mas a situação tornou-se insustentável e os problemas colocados pelo desaparecimento de bons empregos, pelas crescentes disparidades regionais e pelo aumento da dependência externa em indústrias estrategicamente importantes tornaram-se relativamente grandes para serem ignorados. As autoridades estadunidenses começaram a prestar mais atenção ao lado produtivo da economia, primeiro sob Trump e mais sistematicamente sob Joe Biden, cuja administração abraçou um conjunto diferente de prioridades que favorece a classe média, a resiliência da cadeia de abastecimento e o investimento verde.
A nova estratégia gira em torno de políticas industriais que não são muito diferentes daquelas que a China pratica há muito tempo. As novas tecnologias e as atividades de produção avançada são subsidiadas, assim como as tecnologias renováveis e as indústrias limpas. Os fornecedores locais e o conteúdo nacional são incentivados, enquanto os produtores estrangeiros são discriminados. Os investimentos de empresas chinesas nos Estados Unidos estão sob intenso escrutínio. Ao abrigo da doutrina do “pequeno quintal, muro alto”, os Estados Unidos procuram restringir o acesso chinês a tecnologias consideradas críticas para a segurança nacional.
Se estas políticas conseguirem produzir uma sociedade americana mais próspera, coesa e segura, o resto do mundo também se beneficiará, assim como as políticas industriais chinesas beneficiaram os seus parceiros comerciais, expandindo o mercado chinês e reduzindo o preço das energias renováveis. A implicação, então, é que estas novas políticas e prioridades não necessitam de um aprofundamento do conflito entre os Estados Unidos e a China, mas requerem um novo conjunto de regras para reger a relação.
Um bom primeiro passo é ambos os lados abandonarem a hipocrisia e reconhecerem a semelhança das suas abordagens. Os Estados Unidos continuam a criticar a China por supostamente aplicar políticas mercantilistas e protecionistas e violar as normas de uma ordem internacional “liberal”, enquanto os políticos chineses acusam os Estados Unidos de virarem as costas à globalização e de travar uma guerra econômica contra a China. Nenhum dos lados parece estar consciente da ironia: a China colocou uma tela na sua janela aberta; os Estados Unidos estão erguendo um muro alto ao redor de um pequeno quintal.
Um segundo passo importante é procurar maior transparência e melhor comunicação sobre os objetivos das políticas. Em uma economia global interdependente, é inevitável que muitas políticas que visam o bem-estar econômico nacional e as prioridades sociais e ambientais nacionais tenham alguns efeitos secundários indesejáveis sobre outras. Quando os países adotam políticas industriais para corrigir grandes falhas do mercado, os seus parceiros comerciais devem ser permissivos e compreensivos. Estas medidas devem se distinguir daquelas que procuram explicitamente empobrecer o outro (o que significa que geram benefícios em casa precisamente porque prejudicam a outros).
Em terceiro lugar, é importante garantir que as políticas restritivas de segurança nacional sejam bem direcionadas. Os Estados Unidos caracterizam os seus controles às exportações como medidas “cuidadosamente adaptadas” a “uma pequena porção” de tecnologias avançadas que levantam preocupações “diretas” de segurança nacional. Estas limitações autoproclamadas são louváveis, mas há dúvidas sobre se a política real para os semicondutores se enquadra nesta descrição e como poderão ser medidas adicionais. Além disso, os Estados Unidos tendem a definir a sua segurança nacional em termos excessivamente expansivos.
Os Estados Unidos continuarão a dar prioridade às suas preocupações econômicas, sociais, ambientais e de segurança nacional, e a China não abandonará o seu modelo econômico impulsionado pelo Estado. A cooperação não estará na ordem do dia. Mas poderá ficar um pouco mais fácil se os países reconhecerem que suas políticas não são muito diferentes ou necessariamente prejudiciais para o outro lado.
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A emulação dos EUA com a China exige novas regras. Artigo de Dani Rodrik - Instituto Humanitas Unisinos - IHU