04 Janeiro 2024
"O que aconteceu em Ruanda há três décadas e o que acontece nos dias de hoje na Palestina são situações tão diferentes e díspares que qualquer comparação entre uma e outra seria, do meu ponto de vista, um erro crasso. Geograficamente, culturalmente, politicamente e socialmente, falamos de duas situações diametralmente opostas, que, no entanto, guardam uma coincidência dolosa: o ensurdecedor silêncio da comunidade internacional.", escreve Diego Gómez Pickering, escritor e jornalista mexicano, em artigo publicado por ctxt, 03-01-2024.
Na semana da Páscoa de 1994, a vida de Alice Nsabimana deu uma guinada de 180 graus, assim como a de seu irmão Maurice e de seus outros quatro irmãos, sua mãe, tios, primos, vizinhos, amigos e avós. Uma mudança radical que, com a mesma violência, alterou a vida de Eddie, Agathe, Patrick, Fred, Claudine, Yvonne e suas respectivas famílias, a vida de centenas de milhares de ruandeses, hutus e tutsis, que entre abril e julho daquele ano testemunharam pessoalmente o significado da palavra genocídio.
Este ano marca três décadas desde o abate do avião presidencial que transportava o então presidente de Ruanda, Juvénal Habyarimana, seu homólogo burundês, Cyprien Ntaryamira, e suas respectivas comitivas, incluindo Déogratias Nsabimana, pai de Alice. O atentado que ceifou as vidas da classe governante da antiga colônia belga foi o ponto de inflexão na guerra civil ruandesa e na queda moral da nação montanhosa do leste africano, do continente e do resto do mundo, com o assassinato premeditado e sistemático de cerca de um milhão de pessoas, em sua maioria pertencentes à etnia tutsi. Um genocídio nas últimas décadas do século XX. Um crime imperdoável que juraram, como tantas vezes antes, não repetir, mas que, no entanto, às vésperas do segundo quarto do século XXI, está mais presente do que nunca.
O termo cunhado pelo advogado polonês de ascendência judaica Raphael Lemkin apareceu pela primeira vez no livro de sua autoria "O Domínio do Eixo na Europa Ocupada", publicado em 1944. Ele tem duas raízes etimológicas – génos, do grego estirpe, e cide, do latim matar – e, de acordo com a definição da Real Academia Espanhola, constitui "o extermínio ou eliminação sistemática de um grupo humano por motivo de raça, etnia, religião, política ou nacionalidade". Seus sinônimos incluem etnocídio, holocausto, pogrom, massacre, entre outros. Uma palavra que, em vez de ser relegada, como deveria, à descrição de capítulos antigos da história, é usada, neste 2024 que se inicia, para descrever situações muito próximas e presentes.
No final de dezembro, a denúncia do governo sul-africano contra Israel perante a Corte Internacional de Justiça, alegando violação de suas obrigações como Estado signatário da Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, devido às suas ações militares contra a população palestina de Gaza, trouxe de volta, com razão, o debate público sobre o termo concebido por Lemkin oitenta anos atrás para descrever o indescritível. O curso legal que o tribunal máximo das Nações Unidas, sediado em Haia, dará à ação de Pretória contra Tel Aviv, paradoxalmente dá vida a um termo que serve para retratar a morte.
Quando Alice, Maurice, seus quatro irmãos, sua mãe, avós, primos, tios, vizinhos e amigos conseguiram escapar do genocídio em Ruanda, o fizeram a pé, furtivamente, para países vizinhos e além das fronteiras do continente. Assim como Eddie, Agathe, Patrick, Fred, Claudine, Yvonne e os familiares que sobreviveram ao massacre que encharcou de sangue as bucólicas colinas de seu país natal. Trinta anos se passaram desde aquele exílio involuntário que lhes salvou a vida, mas, como reconhece Alice, aquela experiência dantesca continua a assombrá-los como se fosse ontem.
Quem realmente comete os crimes que clamam aos céus, os crimes contra a humanidade? A quem devemos chamar de genocidas, exterminadores, lapidadores? Aos que instruem a partir da segurança de seus escritórios governamentais o deslocamento forçado de milhões de pessoas, aos que ordenam disparar indiscriminadamente contra civis e bombardear hospitais, locais de culto e escolas ou àqueles que, diante de tal acumulação de horrores, guardam um silêncio tão mortal quanto tudo isso.
O que aconteceu em Ruanda há três décadas e o que acontece nos dias de hoje na Palestina são situações tão diferentes e díspares que qualquer comparação entre uma e outra seria, do meu ponto de vista, um erro crasso. Geograficamente, culturalmente, politicamente e socialmente, falamos de duas situações diametralmente opostas, que, no entanto, guardam uma coincidência dolosa: o ensurdecedor silêncio da comunidade internacional.
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Genocídio e o ensurdecedor silêncio da comunidade internacional. Artigo de Diego Gómez Pickering - Instituto Humanitas Unisinos - IHU